“Porque não vemos o que está tão perto de nós?”

PorSara Almeida,13 out 2024 18:26

O que se passa entre quatro paredes? A casa, que deveria ser um espaço de amor e protecção, por vezes é um lugar onde ocorrem as maiores atrocidades. É esta problemática silenciada, verdadeiras histórias de terror que, muitas vezes, ocorrem tão perto de nós e que Miriam Medina traz à luz no seu terceiro livro: “Filhas da Violência”.

“Filhas da violência” é brutal. São “relatos com requinte de crueldade, que meninas e adolescentes sofreram por parte, do pai, mãe, irmãos, padrasto, tios, avôs, dentro da própria casa”, define a própria autora.

Relatos como aquele de uma menina a quem a mãe queimou a mão, por ter roubado 10 escudos para comprar fresquinha. Disse a mãe que cometeu tal acto por querer “educar” a filha. “Para que nunca mais ela venha a roubar”.

Relatos também como o daquela outra menina que foi abusada pelo próprio irmão. “Dormiam na mesma cama e no mesmo quarto que os pais, em que as camas eram separadas apenas por uma cortina. A menina justifica este acto, pelo facto de ela e o irmão escutarem os pais a terem relações sexuais, o que acabou por estimular o irmão a abusar dela”.

Ou como a estória de ainda outra menina, abusada sexualmente pelo padrasto. Quando a mãe descobriu, acusou a filha de seduzir o seu namorado e expulsou-a de casa.

“São relatos que nos remetem para um filme de terror da vida real…”, reconhece Miriam Medina.

O livro

A violência no seio das famílias é o fio condutor de todos os testemunhos aqui compilados. Um fenómeno de “alta complexidade” e múltiplas causas, cujos impactos são profundos e deixam marcas permanentes nas meninas, conforme destaca a autora. Esses impactos tornam-se ainda mais graves quando se considera quem são os agressores.

É preciso considerar que os adultos no contexto familiar são pessoas significativas do ponto de vista afectivo para as crianças e adolescentes e que, ao agirem de forma violenta, provocam nessas crianças e adolescentes graves sequelas emocionais, como poderão constatar nos relatos plasmados no livro”, observa.

“Filhas da Violência” sucede a “Se causa dor não é amor”, que retrata a violência no namoro e “Uma dor além parto”, em que a Miriam Medina denuncia a violência obstétrica. Seguindo os moldes, o novo livro apresenta testemunhos na primeira pessoa sobre uma problemática muitas vezes silenciada.

É um livro que “nasce” inclusive na sequência do anterior. “Durante as entrevistas para o livro “Se causa dor não é amor”, a autora ouviu vários relatos sobre outros temas que considerou “pertinente e urgente trazer “à tona para conhecimento público e discussão”. Um desses temas, foi precisamente a violência, seja ela psicológica, física e/ou sexual, no contexto intrafamiliar.

Testemunhos, estes e outros

A recolha de testemunhos começa nas palestras que há anos Miriam Medina ministra nas escolas, desde o ensino primário ao secundário. Com a experiência que foi adquirindo, hoje a autora já consegue identificar pela expressão corporal dos jovens, quem já sofreu algum tipo de violência. E são essas mesmas jovens que, no final das palestras, a procuram para partilhar os seus relatos.

“Algumas jovens vêem aquele momento como sendo um ambiente acolhedor e de confiança para a sua escuta sem julgamentos, deixo-as à vontade para falarem comigo depois das palestras”, conta a autora. Muitas vezes são inspiradas pelas colegas que falaram em público. Colegas que também relataram “todas as dores silenciadas”.

E entre essas dores silenciadas há histórias de grande sofrimento. Como aquela menina que numa palestra que Miriam realizou no Sal pediu a palavra e contou “em detalhe” os três abusos sexuais que sofreu por parte de abusadores diferentes. “Foi uma das palestras mais tensas que já ministrei. Algumas alunas sentiram-se mal com o relato da colega, e tiveram de sair da sala com a ajuda dos professores presentes”, recorda, emocionada.

É que, apesar de fazer um trabalho no terreno, sobre todos os “tipos de violência junto aos jovens”, desde 2017, nada a prepara para o que vai encontrar.

“Quando penso que nada mais me vai chocar, pelo nível de barbárie dos relatos, deparo-me sempre com estórias inacreditáveis”, confessa. Vidas ainda tão curtas e já marcadas por tanta violência, em “todas as esferas sociais”.

Dor, respeito e gratidão

Ouvir estes relatos nunca é fácil. Perceber no olhar das jovens a “angústia e a dor que ainda carregam, é doloroso para qualquer ser humano, e quando se é mãe, dói mais ainda”. O sentimento que a percorre, confessa é de impotência. É “extremamente doloroso”.

E Miriam sente essa sensação de impotência crescer quando, por medo, as meninas com quem fala não a “autorizam a falar com a família e/ou com uma Instituição, que pode efectivamente ajudar”. Sente também um aumento da impotência quando o desabafo é feito à distância, por telefone ou mensagem, e nem um abraço de conforto pode oferecer.

Mas, ao mesmo tempo, há também gratidão. “Agradeço a coragem delas em partilhar comigo e em breve com a sociedade, esse flagelo que tem vindo a manchar a nossa sociedade. Mais do que isso, agradeço a confiança em fazer de mim uma ponte, para que sua voz chegue a quem de direito, com o intuito de pôr cobro a essa situação de violência cometida por quem lhes deve protecção”, conta, referindo-se agora em concreto ao testemunhos de “Filhas da violência”.

Quando lhe pedimos para destacar o que a tenha tocado particularmente, Miriam Medina não consegue. “Todos os testemunhos me tocam profundamente, por se tratar de uma violência covarde contra meninas indefesas. Não há como escolher um”, responde.

As partilhas, como reforça, são sempre um momento muito emotivo e por vezes é necessário realizá-las por partes. Cada vítima leva o seu tempo. Às vezes é preciso remarcar a conversa porque no primeiro contacto todo o relato é sufocado pelo choro. Miriam chora junto, e nas suas entrevistas tem, acima de tudo, um papel de “escuta activa”. Poucas perguntas faz. Nem necessário é, face à “riqueza” dos detalhes apresentados.

“Não faço ideia de quantas pessoas já ouviram um relato de abuso sexual na primeira pessoa, mas digo de caras, é uma experiência muito desagradável, que mexe com nosso íntimo. São relatos que me influenciaram e ainda influenciam e muito, que me faz repensar todos os dias o meu papel de mãe, o desafio que é educar minha filha numa sociedade onde violam e matam mulheres. Tenho de educar a minha menina, para ela estar sempre atenta aos riscos que corre pelo facto de ter nascido mulher”, desabafa.

E os “Filhos”?

O livro de Miriam Medina reúne apenas relatos de meninas que sofreram violência. E os meninos? A esta pergunta, que muitas vezes diz já lhe ter sido colocada, a autora garante não ser por “um querer” seu, nem uma escolha deliberada de excluir os rapazes. A questão prende-se com a opção tomada, em todos os seus livros, de relatar as estórias na primeira pessoa.

“Da mesma forma que incentivo as meninas a não sofrerem em silêncio, também incentivo os rapazes, pois nas minhas palestras falo para todos, sem distinção entre meninas e rapazes. Essa distinção só se dá nos tratamentos de dados.”

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Miriam Medina é natural da ilha de Santo Antão, Mestre em Ciências Sociais, Mediadora de conflitos, Embaixadora Urbana da ONU HABITAT e activista social. É mentora, dançarina e presidente do grupo Mon Na Roda, que promove a inclusão de pessoas com deficiência física, por meio da dança desportiva em cadeira de rodas, e que ao longo de vários anos tem representado Cabo Verde em campeonatos Internacionais com excelentes resultados, sendo o único País do continente nessa modalidade. Lançou recentemente a “Fundação Girassol –Passos que mudam vidas” que pretende ser um espaço de apoio, principalmente a nível emocional, para mulheres com doenças oncológicas, através da dança, mas também de rodas de conversa e convívio.

Embora, no caso deste seu terceiro livro tenha conhecimento de rapazes vítimas de violência, rapazes que inclusive foram abusados sexualmente, estas estórias não foram contadas pelas vítimas. Houve uma excepção. A de um rapaz que conversou com Miriam, mas, apesar dos relatos no livro serem anónimos, o menino ficou com receio de o padrasto ler o testemunho. Não autorizou a divulgação.

“Não posso abordar a violência no masculino se não tiver dados, se não são relatos partilhados na primeira pessoa”, diz, salvaguardando considerar “de extrema importância estudar e investigar a violência no masculino (agressores e vítimas).”

O grito

Este é “um livro muito violento”. Assim, certamente, não será para todos os públicos. Miriam Medina deixa, por isso, a responsabilidade desta “leitura (indigesta) aos pais/encarregados de educação.”

“Só eles sabem a dinâmica do diálogo que têm ou não com os seus educandos, sobre violência/abuso sexual, sexo, sexualidade, doenças sexualmente transmissíveis” e outros conteúdos que estão plasmados no livro.

Quanto ao impacto esperado, a autora acredita que os relatos, por si só, não deixaram ninguém indiferente “face a tanta violência gratuita”.

O intuito é que os leitores tomem consciência da problemática e das suas consequências não só na família como na sociedade como um todo. E que não se coibam de denunciar alegando a “vergonha familiar”, assim como aconteceu com os relatos no livro, que acabaram por não serem denunciados”.

“Somos todos chamados a esta causa, incentivem a denúncia para que meninas e adolescentes não venham a passar por essas situações de violência”, apela.

Além de sensibilizar para a importância da denúncia e trazer mais conhecimentos sobre a problemática, é desejo da autora que “Filhas da Violência” inspire outros trabalhos sobre o tema e promova uma maior conscientização e cuidado com as crianças e adolescentes vítimas de violência familiar.

O objectivo final é, portanto, fomentar a detecção precoce, a intervenção e a prevenção, diz, ressaltando a esperança de que as instituições responsáveis honrem o princípio de que a protecção das crianças e adolescentes deve ser uma prioridade absoluta.

“Por último, deixar uma reflexão aos leitores que me parece ser uma das mais eloquentes: porque é que não vemos o que está tão perto de nós?”, termina.

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Lançamento “Filhas da Violência” já se encontra disponível para pré-venda e conta com uma parceria com a Comissão Nacional para os Direitos Humanos e a Cidadania, a Associação Cabo-verdiana de Luta Contra Violência Baseada no Género e o Instituto do Desporto e da Juventude para a sua edição. A obra, que inclui um prefácio da psicóloga Kika Freyre e um posfácio do jornalista Emerson Pimentel, também apresenta entrevistas com o Procurador da República António Andrade, a Presidente do Instituto de Medicina Legal, Ineida Sena, e o Coordenador do Plano de Acção Nacional de Prevenção e Combate à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, Nilson Mendes. Miriam Medina destaca que esses contributos “tornaram a obra mais enriquecedora”. O lançamento do livro está previsto para o dia 25 de Novembro, dia Internacional da Eliminação da Violência contra as mulheres, e dia em que começam os 16 dias de activismo pelo fim da violência Contra Mulheres e Meninas, na Praia. A apresentação, que decorrerá na sala Beijing da Presidência da República, estará a cargo da Jornalista Carmelita do Rosário e do Psicólogo Nilson Mendes. Está também prevista uma apresentação em São Vicente, a 16 de Novembro, a convite do Observatório da Cidadania, e que será conduzida pelo jornalista Orlando Lima. Segue-se Santo Antão (Ribeira Grande), a 21 de Novembro, a convite da Fundação DEAL, com apresentação da psicóloga Edna Silva. No início de 2025, serão também realizadas apresentações em alguns países da Europa.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1193 de 9 de Outubro de 2024.

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Autoria:Sara Almeida,13 out 2024 18:26

Editado porEdisângela Tavares  em  15 out 2024 8:12

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