Como recebeu a homenagem de que foi alvo?
Com regozijo. Pensei, finalmente alguém valorizou todo o trabalho feito. No início foi penoso. Imagine o que é trabalhar sem orçamento, sem pessoal qualificado, e com as mínimas condições de trabalho. A partir do momento em que a Biblioteca foi dotada de orçamento, ela começou a andar pelos próprios pés, e aí realizamos várias actividades e ela tornou-se numa instituição cultural de referência no país. Portanto, a homenagem foi recebida com satisfação, muita satisfação, e fiquei muito emocionado quando me entregaram o galardão de homenageado. É sempre bom saber que o trabalho que fizeste foi apreciado por outros que vieram depois.
A homenagem vem 10 anos depois da sua aposentação. Peca por ser tardia?
Eu não acho que seja tardia, até porque eu não esperava, nunca esperei ser homenageado. Quando me foi comunicado que seria homenageado, fiquei sensibilizado, porque o meu trabalho na Biblioteca Nacional foi feito pelo profissionalismo e pela paixão que eu tenho pela área, pelos livros, pela cultura. Eu sentia-me reconfortado todos os dias, quando regressava a casa com o sentimento de trabalho feito. Eu nunca pensei em homenagens, de maneira que fiquei surpreso. Nós sabemos que em Cabo Verde há muitas instituições que nascem e morrem logo depois. Felizmente não foi o caso da Biblioteca Nacional, nem do Arquivo Nacional que são instituições da República, não de governos. Aliás, um dado curioso é que quando fizemos o primeiro carimbo da Biblioteca Nacional, que então se chamava Instituto da Biblioteca Nacional, isso por uma questão de lei, porque naquela altura instituições que fossem dotadas de autonomia financeira e administrativa teriam de ser ou fundações ou institutos. Então, eu pessoalmente aconselhei que fosse Instituto da Biblioteca Nacional e não Fundação, como acontece no Brasil.
Afirmou no acto de comemoração dos 25 anos da criação do Instituto da Biblioteca Nacional de Cabo Verde que a instituição começou do nada. Podia explicar como foram os primeiros passos?
De facto, pode ser que eu tenha dito do nada, mas a ideia com que fiquei é que disse quase do nada, porque o edifício já existia. Aliás, aquando da inauguração eu fiz questão que ficasse escrito na placa que se tratava da inauguração do edifício, e não propriamente da Biblioteca Nacional porque, por exemplo, nós inauguramos em São Nicolau a Biblioteca Municipal, mas era uma biblioteca já montada e funcional. Na Assomada, a mesma coisa. A Biblioteca Nacional ajudou a criar a Biblioteca Municipal de Santa Catarina que foi inaugurada funcionando, com tudo: equipamentos para as salas de leitura e de escritório, material informático e outros, o que não foi o caso da Biblioteca Nacional, porque ela foi entregue com três salas de leitura equipadas com estantes, mesas e cadeiras, mas a parte administrativa e o hall de entrada, estavam vazios. De livros não havia nenhum, nem uma folha de papel sequer. De maneira que, de facto, começamos quase do nada. E foi difícil, porque nós não tínhamos orçamento. A Biblioteca Nacional foi criada em Novembro de 1999 e, portanto, não podia caber no orçamento de 1999, nem no do ano 2000, porque 2001 seria ano de eleições. De maneira que nós fomos vivendo na Biblioteca Nacional com pequenos pacotes financeiros doados pelo Ministério da Cultura. E aí eu devo enaltecer a postura do então Ministro da Cultura, arquitecto António Jorge Delgado, que, de facto, foi apoiando na medida do possível. Inclusive, ele indigitou dois elementos do seu gabinete para estarem sempre atentos aos meus pedidos. Não tínhamos transporte, a Biblioteca não tinha água canalizada nem electricidade. Era preciso tratar de todo esse processo administrativo para termos água e electricidade, duas peças fundamentais para um trabalho digno. E aí o ministro teve o mérito em atender os nossos pedidos. Durante dois anos o único transporte que nós tínhamos era o meu carro pessoal, com o meu combustível, porque não havendo orçamento, não se pode requisitar combustível. Por isso é que eu digo que começámos praticamente do nada. E, de facto, criámos uma pequena equipa que ao fim de seis meses, mais ou menos, abriu uma sala de leitura, e foi muito emocional ver, no dia seguinte, uma sala com 80 lugares totalmente preenchidos. O próprio ministro ficou surpreso. Bem, depois fomos trabalhando, criando mais uma nova sala de leitura, já agora especializada para técnicos e investigadores, porque a primeira sala era generalista - alunos do ensino secundário, do ensino universitário, técnicos, todos aí misturados. É assim que resolvemos criar uma segunda sala de leitura, precisamente para absorver esse tipo de utilizador mais exigente e mais especializado. Mais tarde criámos a sala multimédia, muito frequentada por estudantes, professores, porque nessa altura já tínhamos Internet. Nessa altura internet era coisa rara e cara, e nós fazíamos um preço muito especial para estudantes. Mais tarde criámos uma sala de leitura para a área infanto-juvenil, também muito frequentada, porque fazia falta. Muitos professores passaram a levar os seus alunos para os indispensáveis contactos com os livros. Mas isso tudo dentro da missão que foi dada à Biblioteca Nacional.
Qual era a missão da Biblioteca Nacional e que actividades foram desenvolvidas nesse âmbito, nos 15 anos em que esteve à frente desta instituição?
Quando eu fui convidado pelo então ministro da Cultura, o arquitecto António Jorge Delgado, eu pedi-lhe que esclarecesse a missão dessa nova instituição. Eu faço isso sempre que sou convidado a assumir algum cargo, de forma a eu saber o que esperam de mim e da instituição. Então o ministro disse-me: olhe, eu quero que você transforme este edifício numa Biblioteca Nacional, mas que também responda à missão de uma biblioteca pública, uma vez que não existe uma biblioteca pública aqui na Praia. E foi nessa base que nós fomos desenvolvendo acções, tanto de uma Biblioteca Nacional, que é uma instituição de recolha, tratamento, conservação e divulgação do património bibliográfico nacional, como de uma biblioteca pública que tem outras funções, nomeadamente de divulgação, e de leitura pública. Nessa altura foi essa a missão da Biblioteca Nacional. Mas depois, em 2001, quando se deu uma nova reestruturação do sector da cultura, a missão que era cometida ao Instituto da Promoção Cultural, em relação ao livro, passou para a responsabilidade da Biblioteca Nacional. E aí a missão da Biblioteca Nacional foi acrescida de uma nova valência, o da promoção da leitura pública. E assim continuamos até 2014, altura em que eu passei à aposentação.
Num memorandum de 2010 enviado à então ministra da Cultura perspectivou a elaboração e implementação do Plano Nacional de Leitura que só na legislatura de 2016/2021 foi criado. Porque é que nem todos os seus objectivos foram alcançados até à data da sua aposentação?
Porque até a Biblioteca passar a ter orçamento próprio, o que só veio a acontecer em Agosto de 2001, vivemos do orçamento do Gabinete dos ministros da Cultura, António Jorge Delgado, Victor Borges e Jorge Tolentino. O apoio desses primeiros três ministros, foi fundamental para que a Biblioteca funcionasse minimamente. Sem esse apoio e compreensão dos referidos ministros não teria sido possível pôr de pé uma biblioteca com as valências de que já referimos. Com as variadas actividades desenvolvidas pela Biblioteca Nacional, ela passou a ser conhecida também no exterior. Já em Setembro de 2004, fomos convidados para a 6ª Bienal Internacional do Livro do Ceará, no Brasil. Levamos dois escritores com nome a nível internacional: Germano Almeida e António Correia e Silva. Estivemos também nos Estados Unidos, numa semana cultural muito participada não só pelos nossos conterrâneos, como também por muitos americanos. Aí também levamos dois escritores cabo-verdianos. Em 2006, começamos a participar na Feira do Livro de Lisboa, uma montra muito boa para a divulgação da nossa literatura, do nosso livro, dos nossos autores. As nossas colecções foram informatizadas, criámos a nossa Base de Dados Bibliográficos que colocámos no nosso site bibnac.cv. Eu acho que tudo isso fez com que a Biblioteca Nacional fosse conhecida no exterior, e não apenas em Cabo Verde. A esse propósito, posso contar-lhe um pequeno fait-divers: um belo dia eu cheguei na Biblioteca Nacional de Lisboa e o director-geral, na altura o dr. Jorge Couto, deu-me os parabéns e disse-me: já somos três. Quis saber o porquê do “já somos três”, ao que ele explicou: estive a consultar a vossa base de dados online, fiquei maravilhado e contente, porque já somos três: Brasil, Portugal e Cabo Verde. De facto, a partir dessa data, passámos a receber do exterior vários pedidos de livros que tinham sido referenciados através do nosso site. Esse arranque, a partir de 2001, foi excelente pois deu-nos muita visibilidade. Passámos a ser convidados para muitas actividades no exterior. Continuámos a participar na Feira do Livro de Lisboa, e, em Fevereiro de 2014, estando eu já de saída, fomos convidados para uma feira internacional do livro africano, em Marrocos. Arábia Saudita e outros países árabes não africanos também estiveram presentes. O nosso stand foi visitado pelo Primeiro-Ministro de Marrocos e foi considerado um dos melhores stands estrangeiros, não comparando, é claro, com o de Marrocos que é um colosso, em termos editoriais. É claro que eu fiquei muito orgulhoso com a nossa prestação e impressão positiva que deixamos aí ficar. Um país pequeno como o nosso, a merecer destaque num grande certame internacional é sempre bom.
Voltando ao Plano Nacional da Leitura que na opinião do actual ministro da Cultura, Augusto Veiga, é um dos maiores projectos culturais materializados pelo governo de Cabo Verde, pois já no seu memorando de 2010 perspectivava a elaboração e implementação deste Plano, que só na legislatura de 2016-2021 foi criado. Porquê não arrancou no seu tempo?
De facto, quando entrou a ministra Fernanda Marques [em 2010], enviei-lhe um memorando em que eu falava do Plano Nacional da Leitura. A partir daí começamos a perspectivar a criação desse Plano Nacional de Leitura. É nesse âmbito que, no final de 2010, fui convidado pela Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas de Portugal a visitar as instalações do Plano Nacional de Leitura de Portugal. Nós já vínhamos realizando acções pontuais de divulgação da leitura, de Horas do Conto, trazendo autores e contadores de história para a Biblioteca, numa interacção com os estudantes. Queríamos sistematizar todas essas acções num Plano elaborado que ia ser seguido de acordo com um calendário a definir. Infelizmente, 2011 foi um ano de viragem na área do livro e da leitura. Nós vínhamos apoiando as bibliotecas municipais públicas, dando formação ao pessoal. Inclusive demos uma formação, na Biblioteca Nacional, especificamente para professores/bibliotecários, isso em concertação com o Ministério da Educação. Esses professores-bibliotecários iriam, em cada escola, funcionar como facilitadores de leitura. Mas o Plano propriamente dito não chegou a ser elaborado. Foi feito apenas um esboço do referido plano.
Trabalhou com seis ministros da Cultura. Como avalia hoje a visão que tinham em prol da promoção do livro e da leitura?
Como já disse, eu tive três ministros no período em que a Biblioteca procurava se afirmar: arrancar e afirmar-se como uma instituição de relevo. E devo dizer que com o primeiro deles, nós não falávamos ainda do livro e da leitura. Nessa altura, essa responsabilidade cabia a uma outra instituição. Só a partir de Agosto de 2001 é que essa responsabilidade passou para a Biblioteca Nacional. Era então ministro o dr. Victor Borges, um grande entusiasta da leitura. No início de 2002, passámos a ter um novo ministro, o dr. Jorge Tolentino, também um grande entusiasta do livro e da leitura. Os outros ministros foram acompanhando e apoiando o desenvolvimento da instituição, de modo que, nessa área, eu fiquei com uma boa impressão de todos eles. Com o ministro Mário Lúcio, a política do livro mudou um pouco. Passou a ter mais intervenção do Gabinete dele... De facto, não chegamos a concretizar algumas tarefas que tínhamos em agenda, nomeadamente o Plano Nacional de Leitura, a Rede Nacional de Bibliotecas Públicas, a Base Nacional de Dados Bibliográficos. No entanto, devo sublinhar que a Base de Dados Bibliográficos da Biblioteca Nacional foi continuada.
Como referiu, no memorandum de 2010 já perspectivava a elaboração e implementação do Plano Nacional de Leitura que, por razões alheias à sua vontade, só na legislatura de 2016/2021, foi criado. Para o actual ministro Augusto Veiga este Plano é um dos maiores projectos culturais materializados pelo governo de Cabo Verde. Como não há leitura sem livros, Augusto Veiga anunciou que a partir do próximo ano já está garantido o financiamento de um prémio editorial reservado às editoras nacionais. Como avalia a criação deste prémio?
Positivamente, porque necessário. Mas devo referir que enquadrado nas feiras do livro português em Cabo Verde havia uma percentagem das receitas que era distribuída às editoras nacionais. Infelizmente, a última feira do livro português que nós realizámos foi em 2010, curiosamente no ano em que celebrámos a 25ª edição da feira do livro português, em Cabo Verde.
Portanto, a criação deste prémio editorial é um grande estímulo, sobretudo para as editoras privadas.
Evidentemente, uma vez que as editoras privadas passam por grandes dificuldades financeiras. Não havendo patrocínio, dificilmente elas se aguentam. Mas gostaria de falar um pouco mais da Feira do Livro de Lisboa…
…Tenha a bondade.
Em 2006, nós começamos a participar na Feira do Livro de Lisboa, com livros de todo o Cabo Verde, inclusive livros de autores cabo-verdianos editados em Portugal. Inicialmente, partilhando um stand com a Cooperação Portuguesa. Já em 2008, tivemos direito a um stand próprio, porque nesse ano fomos o país tema da Feira. Como tal, responsabilizamo-nos pela animação cultural dessa edição da Feira do Livro. Cabo Verde saiu-se muito bem, com a presença de vários escritores e palestrantes cabo-verdianos, uns vivendo em Lisboa, outros que nós conseguimos levar daqui, nomeadamente Corsino Fortes, Germano Almeida, Jorge Carlos Fonseca… A partir de 2008, até a nossa última participação, em 2013, tivemos sempre um stand só nosso. Dentro dos PALOP éramos os únicos a ter um stand próprio, de forma continuada, na Feira do Livro de Lisboa.
Como perspectiva o futuro da Biblioteca Nacional?
Olhe, o futuro tem de ser sempre garantido, porque trata-se de uma instituição da República. Não pode morrer, se me permite o termo. Tem que continuar com o país. Assim como o país vai crescendo, a Biblioteca Nacional também vai continuando a crescer, porque é uma instituição de salvaguarda do património nacional, assim como o Arquivo Nacional. Portanto, eu perspectivo que avance e cada vez melhor. E pelo que eu ouvi do actual ministro da Cultura, Augusto Veiga, tenho sérias razões para acreditar que a Biblioteca Nacional continue sempre evoluindo.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1202 de 11 de Dezembro de 2024.