Governo defende carácter experimental do manual de Língua e Cultura Cabo-verdiana do 10.º ano

PorEdisângela Tavares*,19 jul 2025 8:50

Na sequência das críticas que consideram um “atentado linguístico”, uma tentativa de “engenharia artificial” e de “criação de uma nova variedade linguística”, o Ministério da Educação esclareceu que o manual da disciplina de Língua e Cultura Cabo-verdiana, introduzida de forma opcional no 10.º ano, tem carácter experimental e visa fomentar a construção de consensos pedagógico-científicos sobre o ensino da língua cabo-verdiana.

A nota de esclarecimento, enviada esta segunda-feira, 14 de Julho, na sequência de críticas públicas ao manual da disciplina de Língua e Cultura Cabo-verdiana, o Ministério da Educação afirma que todos os interessados são livres de apresentar críticas e sugestões, desde que baseadas em fundamentos científicos.

“Estaremos atentos e faremos os ajustes que se mostrarem adequados”, refere o Ministério, sublinhando que não vê sentido em judicializar a questão, ainda que reconheça o direito constitucional dos cidadãos em exercerem a sua liberdade de expressão.

A equipa responsável pela elaboração do manual justificou os fundamentos (socio)linguísticos, pedagógicos e didáticos que sustentam o trabalho desenvolvido, sustentando-se em décadas de investigação e nas boas práticas internacionais de ensino em contextos de ecologia linguística semelhante à cabo-verdiana.

O Manual

O Manual, segundo os autores, parte do princípio de que a Língua Cabo-verdiana (LCV) é composta por nove variedades dialetais, todas com igual valor linguístico e identitário, e recusa qualquer tentativa de hierarquização entre elas. Defendem, por isso, uma abordagem pedagógica baseada na “competência multidialetal”, onde cada aluno e professor utiliza a sua própria variedade, promovendo-se a intercompreensão e o respeito pela diversidade.

Nesse sentido, adoptaram uma ortografia pandialetal nos comandos e textos explicativos do manual, com base no Alfabeto Cabo-verdiano oficial. Esta ortografia é descrita como uma ferramenta inclusiva, que representa todas as variedades sem suprimir a especificidade de nenhuma, e que permite a leitura e compreensão por qualquer falante.

“As variedades regionais continuarão a existir. Cada ilha continuará com a sua própria expressão dialetal. Apenas a língua oficial utilizada no ensino e na administração oficial, particularmente através da escrita, será a variedade unificada”, citam, evocando o linguista Manuel Veiga.

A proposta, frisam, não se trata de padronizar a LCV, mas de viabilizar a prática pedagógica durante a fase experimental da disciplina, prevista no Decreto-Lei n.º 28/2022, de 12 de Julho.

A equipa reitera ainda que o manual não recomenda o ensino da ortografia pandialetal aos alunos, que continuam expostos a textos orais e escritos autênticos grafados no Alfabeto Cabo-verdiano (AC) das diferentes variedades. Essa proposta, sublinham, está aberta a revisão fundamentada por parte dos docentes e da comunidade científica, mas recusam críticas assentes em discursos “pseudocientíficos ou preconceituosos”.

Reações

De relembrar que o escritor José Luiz Tavares anunciou que vai interpor uma acção judicial para suspender o manual do 10.º ano de Língua Cabo-verdiana, que considera ser “um atentado grave, crime contra a língua cabo-verdiana e aberração linguística”. Segundo o autor, o manual viola o decreto que institui o alfabeto cabo-verdiano (2009) e o decreto-lei que introduz a disciplina no sistema educativo.

O escritor afirmou que a norma utilizada no manual foi criada sem base legal nem científica, desrespeitando consensos anteriormente construídos, e acusa as autoridades de inércia, apesar de todos os órgãos de soberania já terem sido informados.

Sublinha que pretende levar o caso à justiça ainda este mês, seja por providência cautelar, denúncia ao Ministério Público ou acção popular, com o objectivo de travar os efeitos da norma imposta, aproveitando a pausa lectiva.

O escritor defende que a língua cabo-verdiana deve preservar a sua pluralidade dialetal “de Santo Antão à Brava”, e critica a tentativa de “engenharia de laboratório” para impor uma norma única. Refere também que a padronização só poderá surgir naturalmente, com o convívio entre falantes de diferentes ilhas.

“Inexistente na prática oral ou escrita cabo-verdiana”

Por sua vez, o escritor e ensaísta José Luís Hopffer Almada criticou o manual da nova disciplina de LCV, considerando preocupante a utilização de um “crioulo interdialectal” que, segundo afirma, é artificial e inexistente na prática oral ou escrita cabo-verdiana.

Num texto publicado no Facebook, reconhece que a introdução da disciplina pode ser vista como positiva, mas contesta a forma como o manual foi redigido, alegando que este ignora o consenso social sobre o ensino da língua materna na variedade dialectal de cada aluno e introduz regras contrárias ao Alfabeto Unificado da Língua Cabo-verdiana (ALUPEC), como a eliminação da acentuação.

Hopffer Almada acusa ainda os autores do manual de tentarem impor uma norma baseada sobretudo em estruturas do Barlavento, que considera linguística e fonologicamente inadequadas para servir de base padrão, segundo críticas já feitas por Baltasar Lopes da Silva. Para resolver a situação, propõe duas soluções: uma revisão profunda do manual, eliminando o chamado crioulo interdialectal, ou a elaboração de um novo manual com outra equipa técnica, composta por linguistas e professores nacionais, eventualmente com apoio de especialistas estrangeiros.

“Na prática, acaba por criar uma nova variedade linguística”

O investigador Eleutério Afonso, em entrevista ao Expresso das Ilhas (12 de Março de 2025) , considera que o manual introduz uma proposta de escrita pandialectal que não está prevista na lei nem no programa da disciplina, e que, na prática, acaba por criar uma nova variedade linguística. Segundo explica, a didactização da língua cabo-verdiana, e não a padronização, é o caminho legal e pedagógico adoptado para a disciplina, sendo a abordagem correcta num país com grande diversidade dialectal.

Eleutério Afonso afirma que o manual viola princípios fundamentais estabelecidos no Decreto-Lei n.º 28/2022, nomeadamente a valorização das diferentes variantes da língua e o respeito pela diversidade linguística. A proposta de ortografia pandialectal, além de não ter base científica sólida, reforça o preconceito linguístico e afasta os alunos da sua variedade nativa, indo contra o objectivo de promover a identidade e o desenvolvimento cognitivo através da língua materna.

*Com Inforpress

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1233 de 16 de Julho de 2025.

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Autoria:Edisângela Tavares*,19 jul 2025 8:50

Editado porDulcina Mendes  em  19 jul 2025 23:22

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