“Imposição de uma das variantes é confusão lançada para impedir pessoas de se concentrarem no que importa”

PorAndré Amaral,16 mar 2025 11:21

Em entrevista ao Expresso das Ilhas, Eleutério Afonso aborda a questão da padronização da língua cabo-verdiana e explica do que se fala quando se faz referência à sua didactização.

Padronização e didactização da Língua cabo-verdiana. Do que estamos a falar?

Esses dois termos remetem para duas das várias dimensões da língua, e que estão interligadas: língua como sistema de signos e como comportamento humano. Como sistema, possui regras estruturais previsíveis, permitindo, por exemplo, programar computadores para traduções automáticas e correcções de textos. Como comportamento, é sujeita a mudanças influenciadas pelo uso social, e arbitrariedade do comportamento humano, podendo gerar variações extremas que rompem com a norma e até originam novas línguas. Essas transformações afectam as visões de mundo dos falantes, sem necessariamente resultar em melhorias. Essa dinâmica linguística divide-se em três níveis: o sistema de signos, as variações dentro da norma e as formas extremas que fogem da norma e do sistema. A padronização busca estabelecer uma norma comum, sendo uma questão de Política linguística, que em Cabo Verde deveria ser conduzida pelo Ministério da Cultura, responsável pelas línguas no país. Já a didactização é uma operação pedagógica, conduzida por professores, pedagogos e curriculistas em parceria com linguistas. Relaciona-se indirectamente à política cultural de longo prazo, pois estende-se além dos ciclos eleitorais e tem impacto no desenvolvimento cognitivo dos aprendizes, favorecendo processos de reflexão e análise da própria língua. Em Cabo Verde, optou-se por uma abordagem didactizadora, valorizando todas as variedades linguísticas para garantir uma aprendizagem mais ampla e consciente (a mais elevada que se tem, é o tal metaprocesso que, em línguas, seriam operações de metalinguagem). Um exemplo prático dessa necessidade pode ser observado na forma como os alunos lidam com estruturas como:

Português: "Já tens carro para me vires buscar?"

Berdiánu (grafia não reflectida, usada até em obras literárias): "Djo ten karu po ben buskam?"

Berdiánu (transcrição correcta da fala): "Dj’o te’ káru p’o ben buska-m?"

Berdiánu (variedade mais sistemática e elaborada, tomando Santiago como referência, mas podia ser de São Vicente ou qualquer outra ilha):

"Dja bu tene káru pa bu ben buska-m/toma-m?"

"Já bo ten kór pa bo ben bxka-m?"

Reflectir sobre essas diferenças permite aos alunos falantes de crioulo berdiánu reforçar sua identidade, melhorar a saúde psicoemocional, muito importante, hoje, mas compreender, também, as suas dificuldades, por exemplo, ao posicionar pronomes em português e explorar como outras variedades do berdiano e do português (como no Brasil e Angola) lidam com fenómenos semelhantes. Esse processo de contraste e análise é essencial para uma educação linguística eficaz, permitindo que os alunos desenvolvam maior consciência sobre as estruturas e usos das línguas materna, segunda e até línguas estrangeiras. Não há necessidade de estarmos a esperar mais. É esse o processo que deveria estar em curso e o que está na Lei.

Qual a primazia de uma em relação à outra?

Convém dizer que os resultados imediatos dessas duas operações são muito diferentes e os actores, também, como já referimos. Da padronização, espera-se uma proposta, que, se operada in vitro, pode ser implementada via didactização. A didactização, por seu turno, pode, também, oferecer insumos para uma eventual padronização. Só que seria uma padronização participada, como resulta do regime democrática do país hoje, contrariamente àquilo que aconteceu com as línguas coloniais que destruíram visões de mundo em nome de uma variedade considerada superior. Então, qual a primazia? Não existe. Mas no quadro sociopolítico e cultural cabo-verdiano, a didactização mostra merecer ter primazia tendo em conta os avanços no domínio da identidade jurídico institucional do país. Cabo Verde avançou bastante no quadro dos direitos, liberdades e garantias que hoje constam na sua Constituição, mas também nas Convenções e Tratados de que o país é parte (por exemplo, o Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais), que tornam certas operações algo que deve ser amplamente participado. Daí, ser mais sensato dar ao Cabo-verdiano a sua língua no estado actual para que ele possa participar conscientemente em qualquer operação que venha a ser feita dentro dela. Inclusive, decidir adoptar uma variedade exemplar de referência ou… gerar uma nova variedade.

Como se fará a padronização? Faço esta pergunta porque quando se ouve falar em padronização associamos à ideia de que haverá a dominância de uma variante sobre as outras.

Padronização como imposição de uma das variantes sobre as demais em Cabo Verde é uma confusão lançada para impedir as pessoas de se concentrarem naquilo que deveras importa. Embora a adopção de uma variedade de referência não estaria fora de cogitação, pois, os Testemunhas de Jeová já fazem isso na produção dos seus materiais religiosos em Cabo Verde, convém sublinhar que neste momento, de acordo com o Decreto-Lei n.º 28/2022, art.º 15.º, que cria a disciplina, não se pode operar nenhuma operação de padronização, como acabou acontecendo com a tal escrita pandialetal que, pelas suas características, acaba produzindo uma nova variedade linguística. O conteúdo da Lei, quando bem interpretado, remete para a didactização, como explicado no ponto 1 e 1.1. Mas, um modelo de padronização interessante seria o modelo de estandardização de Žarko Muljačić (modelo indicado, também, por Jürgen Lang, eminente estudioso do berdiánu há mais de 40 anos). Nesse modelo, a estandardização não ocorre à revelia do contexto sociocultural, pois que ele se processa e quatro etapas não necessariamente hierarquizadas. Eu prefiro chamar essas etapas de micro processos que se guiam sob a influência de dois polos: um social e outro mais de cariz técnico. Essas etapas ou microprocessos são: Escolha, Codificação, Normação e Elaboração. Os nomes subentendem o micro processo pretendido. No polo técnico, temos agentes linguistas e pedagogos que já elaboraram gramáticas, dicionários que podem actuar (São para mais de uma dezena de pessoas com mestrado e doutoramento de entre nacionais e estrangeiros com obras publicadas). No polo social, também, temos ainda mais agentes: Alguns exemplos: Marciano Nha Ida (articulista de um dos jornais de Cabo Verde, em berdiánu), Tomé Varela (escritor, contista e ensaísta), Daniel Spínola (poeta-ensaísta), Manuel Veiga (que é do polo técnico e social, pois tem obra literária) e todos os outros sujeitos apontados por José Luís Hopffer Almada no artigo “A ABERRAÇÃO LINGUÍSTICA CONSTANTE DO MANUAL DE LÍNGUA E CULTURA CABOVERDIANAS”. Mas a sociedade, de um modo geral, precisa aprender mais sobre a sua língua antes deste processo ser desencadeado pelo Ministério da Cultura, até para se poder acompanhar o processo de modo mais efectivo. Por isso, indico a didactização como prioridade absoluta, pois, todas as tentativas iniciadas por técnicos e escritores se redundam em discussões que resultam da falta de informações por parte dos sujeitos. Até porque, a ideia de padronização parte, um bocado, de uma crença de que o berdianu hoje é menos língua que as outras por carecer de alguma característica que viria pelo processo de padronização… e que por isso precisa ser corrigida. Não é nada disso. É a sociedade que está atrasada em termos de apropriação de informações sobre a sua língua.

No seu artigo refere que "há dois instrumentos que andam a ser violados". Quais são e por que andam a ser violados?

O Berdianu chegou à escola por meio de uma petição pública liderada por estudiosos e cidadãos conscientes da importância da língua. Como resultado, foram implementadas: A Lei instituindo a disciplina de Língua e Cultura Cabo-Verdiana no 10º ano, com três horas semanais, em regime opcional e experimental por três anos (Decreto-Lei n.º 28/2022, art.º 15.º, que cria a disciplina); O programa para o 10º ano, elaborado por especialistas cabo-verdianos membros da petição. Tanto a lei como o programa indicam que se deve preservar as variedades e não as uniformizar. Princípios violados:

Diversidade Linguística: Em vez de promover a familiaridade com as variantes, a escrita pandialectal pode distanciá-las.

Compreensão Interdialectal: Os textos deveriam aparecer em diferentes variedades, não em um padrão artificial imposto.

Padronização Democrática: O processo deveria ser participativo, não decidido de forma unilateral.

Abordagem Descritiva e Contrastiva: O ensino deveria focar na compreensão das variações e regras do idioma antes de qualquer padronização.

Constituição da República e demais leis que determinam que a tutela da política linguística e do Ministério da cultura. A introdução da "escrita pandialectal" é inadequada e prematura, violando a proposta original da disciplina e o processo científico da didactização. O foco agora deve ser a compreensão e o respeito às variedades linguísticas, preparando a sociedade para um futuro processo de padronização inclusivo e democrático. Tecnicamente, os princípios e valores acima referidos estão muito bem e recomendo. Faço uso aqui dos meus estudos tanto ao nível das ciências da educação (doutoramento em educação linguística) e de linguística (doutorando em linguística) para afirmar que as línguas reflectem modos de ser e estar. Dou um exemplo: as variedades do Berdianu possuem especificidades fraseológicas que traduzem a identidade cabo-verdiana:

Santiago: agropecuarismos (dos sabidu ka ta poi buru karga), referências ao relevo (kanba kutelu, dixi rubera, sapa txada), cristianismo (Déus ki djuda, Jesus é antis kéda).

Ilhas planas: realidades específicas de seu ambiente.

São Vicente: urbanização e história portuária.

A preservação dessas variedades é essencial, e seu ensino escolar é urgente. Com a crescente produção literária em crioulo, cabe ao Estado garantir o direito das comunidades à sua própria língua, na sua diversidade actual. No futuro, se outras transformações forem necessárias, a população poderá decidir com consciência, sem manipulações de grupos de interesse. O princípio da participação popular deve ser resguardado, conforme consagrado na Constituição da República. Eis o modo como o contexto sociocultural actual determina o uso do conhecimento científico em matéria do crioulo berdianu, hoje. Uma escrita (variedade) pandialectal foge a estes propósitos e remetem o processo para aquilo que seria da alçada do Ministério da Cultura.

Refere igualmente o excesso de conteúdos no programa do 10º ano. A que se deve esse excesso e qual a solução para o combater?

A construção dos programas, a meio de ensino secundário, é extremamente complicada, sem um quadro de referência para os desempenhos linguísticos deste o 1º ano de escolaridade, por exemplo. Ainda assim, os peritos avançaram com a construção do programa do 10º ano, como foi estabelecido por um contrato assinado com o Ministério da Educação. Essa operação foi realizada na base da boa-fé, na esperança de que seria possível segui-lo. Nada disso aconteceu e as desordens tornaram-se mais evidentes com a vinda de portugueses não especialistas a dar continuidade na elaboração do programa do 11º, sem ter havido seguimento e reformulação do programa do 10º ano. Neste momento, o Ministério da Educação está verdadeiramente perdido, lançando um manual com uma proposta de escrita pandialectal (que na verdade é uma variedade pandialectal escamoteada) que deveria resultar de uma padronização, que não é o caso do processo em curso. Portanto, o processo está comprometido por uma gestão inadequada. A solução passa pela i) contratação de professores formados em Estudos Cabo-verdianos e portugueses em vez de professores de história e geografia, pois trata-se de ensino de uma língua; ii) organizar o seguimento, por parte dos peritos, com foco no manual e programa do décimo ano de escolaridade e diminuir os conteúdos que se mostrarem excessivos; iii) ao mesmo tempo, criar um quadro de referência dos desempenhos do 1º ao 12º ano de escolaridade, para decidir onde vazar os conteúdos em excesso, se em anos anteriores ou subsequentes. Anular o programa do 11º ano e redesenhar o processo como uma verdadeira reforma, pilotada por agentes preparados para isso.

O que é este conceito de escrita pandialectal?

A escrita pandialectal é uma criação que aparece no manual, com a pretensão de superar as diferenças entre as variedades do berdianu. Segundo os autores, numa comunicação proferida durante o fórum da língua materna organizada numa parceria entre a ALMA (associação para a língua materna) e a Presidência da República, a 15 de Fevereiro de 2025, pretende-se fazer face à rejeição que os falantes de uma variedade apresentam em relação às outras. O modo como se deve fazer face a este desafio é apresentando as variedades como elas são, e usar processos pedagógicos de educação para a diversidade linguística, designadamente, técnicas de abordagem contrastiva para promover a compreensão e o respeito mútuo dos falantes das diferentes variedades. Esse processo precisa ser assegurado por um acompanhamento por parte de especialistas em pedagogia linguística e reforço de capacitação de professores em acções de formação contínua. Nada disso foi organizado. Por outro lado, ocorre que essa escrita acaba apresentando, ainda que sem querer, uma nova variedade, uma espécie de língua de ninguém passando a ideia de que de facto as variedades actuais do berdiánu são inadequadas. Isso aumenta ainda mais o preconceito linguístico dos falantes em relação às variedades todas. Devemos referir que em nenhum momento o programa ou a lei apontam a necessidade de experimentação de um novo sistema de escrita. Por outro lado, houve uma certa ligeireza em apresentar algo sem um estudo científico que atestaria, por exemplo, o facto dessa escrita estar, na verdade, a apresentar uma nova variedade da língua como se de um processo de padronização se tratasse. E isso é responsabilidade de outro Ministério.

A aplicação deste conceito não irá contribuir para que as variantes da língua cabo-verdiana desapareçam e acabemos por ter uma língua uniforme falada em todo o país?

Sim. E não é o que se pretende neste momento, tendo em conta as consequências psico-emocionais advenientes de uma operação dessa natureza, imposta de cima para baixo. Como referimos no ponto 3. Mas a língua acaba sempre por variar cedo ou tarde e se diferenciando. Nenhuma operação de laboratório consegue superar o facto de a língua ser um comportamento dos indivíduos e certos esforços para destruir certas características hoje, acabam redundando-se em perdas irreparáveis sem contar com as reacções violentas que as comunidades podem manifestar.

Qual a aceitação que o programa de língua cabo-verdiana está a ter junto de professores e alunos?

Boa pergunta. O Ministério da Educação não organizou o seguimento. Das vezes que os professores me contactaram, pude indagar, visitá-los nas escolas e saber das imensas dificuldades que eles vivem por falta de uma formação contínua para aqueles que fizeram o curso de Estudos Cabo-Verdianos e Portugueses e da falta de formação de base dos que são de história e geografia, (que receberam a disciplina porque se entendeu que no nome da disciplina existe a palavra cultura). Por outro lado, o facto de a língua ter sido colocada como opção, muitos alunos escolhem o Mandarim e a Literatura portuguesa porque as chances de empregabilidade seriam maiores, no seu entendimento.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1215 de 12 de Março de 2025.

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Autoria:André Amaral,16 mar 2025 11:21

Editado porAndre Amaral  em  31 mar 2025 9:20

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