Arigatô! Foi marcante

PorSara Almeida,14 ago 2021 8:37

Os Jogos Olímpicos de Tóquio terminaram este domingo e marcaram a história do olimpismo de Cabo Verde. O país levou a maior delegação de sempre, e os seis atletas, conseguiram, nas suas cinco modalidades, orgulhar Cabo Verde. Os objectivos foram cumpridos e embora não tenha havido medalhas, conquistou-se a certeza que em Paris podemos ir ainda mais além… Os atletas e o chefe da missão falam desta experiência, que vai muito além do desporto.

Partiram de vários pontos do globo e encontraram-se do outro lado do mundo, em Tóquio, para integrar aquela que foi a maior delegação olímpica de sempre de Cabo Verde. Seis atletas levaram as cores do arquipélago a essas outras ilhas distantes, que de 23 de Julho a 8 de Agosto receberam mais de 200 nacionalidades para disputar mais de 300 eventos desportivos.

David Pina, pugilista, já saíra de Cabo Verde há cerca de 15 dias, rumo a Portugal onde treinou. E foi em Lisboa que entrou na maior viagem de avião (e não só…) da sua vida. Tão longa que, quando finalmente, e após escala, aterrou em Tóquio, mal sentia o chão.

Estava bem longe de Santa Cruz, onde vive e treina. E também longe vai já 2012 quando, aos 15 anos, começou a praticar boxe. Não mais parou. De 2013 a esta parte já se sagrou campeão nacional, vice-campeão nacional. Já participou em competições internacionais. Já teve vitórias. E também algumas derrotas.

Foi a meio de Junho deste ano, que recebeu um telefonema que não o deixou dormir. Do Comité Olímpico ligaram-lhe a falar da hipótese de ir aos JO “Fiquei contente, cheio de ansiedade, era um sonho que tinha”, mas ainda nada estava certo. No dia seguinte confirmou-se o “wild-card”, um dos dois atribuídos pelo COI a Cabo Verde. (“Os restantes [atletas] qualificaram por cota continental ou por ranking internacional”, explica o chefe da Missão, Leonardo Cunha.)

A outra qualificação por convite já tinha sido entregue. A destinatária era a jovem Márcia Lopes, que com apenas 19 anos, leva já 15 a praticar ginástica rítmica.

“Começou como um “método” de integração/adaptação utilizado pela minha mãe quando nos mudamos [de São Vicente] para a cidade da Praia, mas depois ganhei-lhe o gosto, o amor, e nunca mais parei”, conta ao Expresso das Ilhas. Até Tóquio.

Márcia, que está a estudar em Lisboa saiu, não daí, mas primeiramente da Rússia, onde treinou. Rússia-Portugal-Japão.

Vindos da América chegaram três filhos da diáspora: os irmãos Jayla e Troy Pina, que juntos constituíram a primeira equipa olímpica cabo-verdiana de natação, e, no atletismo, Jordin Andrade, que já em 2016 (um ano após ter ficado em 2º lugar nos 400 obstáculos do NCAA),representara Cabo Verde nos JO do Rio.

“A diferença do Rio para Tóquio foi que desta vez eu não tinha uma marca de qualificação automática, e as minhas classificações mundiais colocaram-me na bolha. Tive de esperar até 1 de Julho para descobrir se estava ou não na equipa”, recorda.

Nascido há 29 anos em Federal Way (estado de Washington), Jordin, especialista nos 400m barreiras, começou a correr quando tinha 16 anos.

Mas na verdade, a história deste descendente de cabo-verdianos (o pai é da Brava) começa antes. Na sua família. O tio, Henry Andrade, integrou a primeira delegação de sempre de Cabo Verde nos JO –Atlanta 1996 – e representou o país correndo nos 110 m barreiras. O legado do tio e do pai, que também é atleta, afastou-o durante um tempo da modalidade, por medo.

“Mas reuni coragem através da influência dos meus amigos para ir e divertir-me em vez de me preocupar em corresponder às expectativas. Ao fazê-lo, aprendi muito sobre mim próprio e aprendi a apaixonar-me pela competição.” Hoje faz o seu melhor para honrar a família e a “herança de cabo-verdianos”.

A estes cinco atletas juntou-se ainda a judoca Sandrine Billet, que nasceu e mora na Bélgica e se naturalizou cabo-verdiana em 2018.

Segurança

O aparato de segurança, nestes JO, foi exorbitado pelo controlo sanitário extremo devido à pandemia. Um rigor minucioso que começou logo à chegada ao aeroporto.

Uma longa e burocrática caminhada pelo aeroporto de Tóquio devido ao controle sanitário”, lembra Márcia. “3h”, resume David.

Mas todos os seis atletas e restante delegação olímpica finalmente estavam onde deviam estar.

E, entre os aspectos que se destacam dessa estadia, todos falam da “enorme simpatia dos japoneses”.

“O COI fez um trabalho incrível de organização dos Jogos, mesmo com o potencial de um surto de covid, e os voluntários foram muito eficientes e pacientes”, avalia Jordin Andrade.

Também Leonardo Cunha, chefe da Missão, elogia este ponto, destacando que “foi impressionante ver a disciplina, entrega e dedicação de todos os envolvidos nos Jogos”.

O medo da covid obrigou a muito cuidado. Era praticamente impossível chegar sequer perto dos atletas. Um forte contingente velava todos os locais e tudo era controlado. Mas, ao contrário do que algumas notícias faziam crer, dando conta de protestos de cidadãos contra a realização dos JO, a própria população pareceu acarinhar os “visitantes”.

“Fomos recebidos com uma reacção bastante oposta, pois, em quase todas as viagens de autocarro, as ruas estavam alinhadas com milhares de adeptos a acenar e a aplaudir-nos”, corrobora Jordin Andrade.

Devido às medidas sanitárias, essas viagens de autocarros foram, aliás, a única vista possível que tiveram de Tóquio.

Limitados a conviver com o restante staff, atletas e voluntários japoneses, foi na comunicação com estes que se deram algumas das situações mais caricatas da participação.

“A maior parte apenas fala japonês (não fala sequer inglês) e quando era necessário ultrapassar algum desafio momentâneo ficavam sempre muito atrapalhados porque queriam ajudar e não compreendiam o que do nosso lado pretendíamos”. Resultado, 10 minutos para explicar o que se pretendia. Quatro pessoas para ajudar. “Para mim os voluntários levam a nota máxima pela vontade de querer ajudar, mas criavam situações muito engraçadas”, lembra Leonardo Cunha.

Uma outra situação engraçada, também de falha da comunicação, que recorda, passou-se com outro membro do Staff. “A professora Elena [Atmacheva], uma vez, para ir para o local de treino, andou mais de 1 hora às voltas com o motorista sem conseguir atingir o local, pelo que no fim, ao regressar sem sucesso, disse: ‘Tóquio é muito lindo, fiz um belo passeio de carro. Pena não ter conseguido chegar ao local de treino’”.

Sem Público

Entretanto, para os cabo-verdianos que moram no Japão –cerca de 20 – estes Jogos foram um misto de orgulho e alegria e também desilusão por não poderem apoiar presencialmente os seus patrícios.

Naya Sena chegou ao Japão, à fria ilha de Hokkaido, em Abril de 2018, para fazer o Mestrado. Daí, mudou-se para Tóquio para fazer o Doutoramento e é numa das prefeituras periféricas que hoje mora. Ela, milhões de japoneses, mas também um punhado de cabo-verdianos. Alguns vindos directamente de Cabo Verde, outros da diáspora, outros de 2.ª geração. “Há uma comunidade muito mista”. Em comum, o amor e orgulho em Cabo Verde, país desconhecido para os japoneses, que não se cansam de divulgar.

Infelizmente, como referido, não lhes foi possível qualquer contacto com a Team Cabo Verde, nem assistir presencialmente a nenhuma prova. “Nem sequer chegar perto de uma vedação…” O apoio era dado pelas redes sociais. E chamando e exortando amigos a seguirem a participação de Cabo Verde nos media.

Mas a ausência de público não impediu que não houvesse assistência. Os membros das comitivas, incluindo os atletas, assistiam. Aliás, um amigo de Naya, membro da comitiva nacional, contou-lhe ao telefone que foi a “primeira vez que tivemos dez pessoas a gritar por Cabo Verde” no estádio. Todos membros da comitiva. Mas, sem dúvida, uma claque…

Na verdade, apesar da falta de público, David Pina não se sentiu no vazio. Mesmo com pouca gente, havia “reboliço” nas bancadas. Na mesma linha de Márcia, que embora tivesse gostado que o houvesse– ”no meu desporto, é importante sentir que as pessoas desfrutam da nossa performance” – diz que nunca se sentiu desamparada. A delegação esteve na bancada o tempo todo. “A apoiar-me, a incentivar-me e a vibrar comigo”.

E também Leonardo Cunha garante que o ambiente foi sempre de grande animação. “Mesmo com a situação da pandemia sinto que criamos um grupo dentro do Team Cabo Verde que irá perdurar por muitos anos”, congratula-se.

Além de protagonistas, os atletas foram, pois, também espectadores de outras provas. E várias marcaram-nos.

“Não consigo tirar da cabeça ter testemunhado o recorde mundial dos 400 metros barreiras. Continua a ser inacreditável”, conta Jordin. David Pina também lembra a emoção das provas de atletismo, a que assistiu com o colega. “Foi uma emoção enorme ver três pessoas a bater recordes mundiais!”.

Competições

E quanto às provas cv? “Perante as condições disponibilizadas todos os atletas se superaram”, avalia o chefe de missão, Leonardo Cunha.

Na natação, Jayla Pina ficou em 3º nos 100 metros bruços. Mas, realizadas todas as séries, acabou por ser eliminada. Troy Pina, ficou em 2º lugar nos 50 metros livres, mas também não obteve tempos para continuar.

David Pina lutou contra o campeão do mundo e o campeão olímpico de 2016: Zoirov Shakhobidin (Uzbequistão). A sua prestação conquistou o público, teve notas muito próximas às de Shakhobidin, mas perdeu. Num primeiro momento, não ficou nada contente. “Queria ganhar”. Agora, a frio, reconhece que, considerando o treino e estaleca que tem (ainda para mais face a quem defrontou), o resultado foi muito bom. Um prenúncio de voos maiores, em Paris 2024.

No Judo, em dois confrontos, Sandrine Billiet conquistou uma vitória (e fez história para Cabo Verde) e foi, depois, derrotada pela actual campeã do Mundo.

No Atletismo, Jordin Andrade não conseguiu ficar nos 4 primeiros lugares (ficou em 7º), mas bateu o seu recorde pessoal.

Márcia Lopes, na Ginástica Rítmica, foi a última atleta de Cabo Verde a competir, apresentando-se em todos os aparelhos.

Cabo Verde não conquistou medalhas, mas conquistou respeito e no geral a prestação agradou ao público.

Apoios e Futuro

“Penso que nós tivemos uma representação muito boa e vamos fazer melhor em Paris. Temos atletas jovens, muito potencial, agora temos de arranjar formas de investir no desporto, porque a diferença entre os nossos atletas e os outros não é a capacidade ou o talento, mas essa falta de investimento sério”, avalia Naya Sena.

A falta de apoio ao desporto é denúncia recorrente. Mas há, algumas variações. Alguns desportos parecem ter mais apoio. O boxe não parece ser um deles.

“Se nem atenção dão, quanto mais apoio…”, lamenta por seu lado David Pina, que refere que até à data da entrevista o governo nem sequer os tinha parabenizado.

Em nove anos de boxe não teve qualquer apoio.

Em Santa Cruz há cerca de 50 pugilistas, muitos deles talentosos. Treinam nas ruas, sem condições.…

Nos Estados Unidos, onde reside Jordin Andrade é diferente, mas também há dificuldades.

“Basicamente a minha vida não tem pausas, vou à escola de manhã, treino à tarde e trabalho à noite. Infelizmente, ser um atleta profissional/ olímpico de atletismo não paga tão bem como muitas pessoas podem pensar.”

A falta de apoio manifestou-se inclusive nesta participação da Team Cabo Verde nos JO. Se Cabo Verde conseguiu levar a maior delegação de sempre foi graças aos atletas, às Federações e ao Comité Olímpico Cabo-verdiano. E… privados.

“Apenas conseguir estar presente é um feito de grande relevo. O Comité Olímpico apenas contou com apoios privados para conseguir salvaguardar o sucesso da missão”, refere o chefe da Missão Leonardo Cunha, destacando, porém que toda a experiência foi uma aprendizagem a ser tomada como referência para planeamento futuro.

Por outro lado, se falta apoio, em particular em Cabo Verde, o que não falta é amor dos atletas, ao que fazem.

A maneira apaixonada como Márcia fala da ginástica faz prever continuação na modalidade. “Adoro o conceito de perfeição e detalhismo que circunda a ginástica rítmica, a conexão corpo, objecto, música e o esforço, a atenção, o trabalho escondidos nos movimentos”, revela ao Expresso das Ilhas.

E, assumidamente, o pugilista David Pina tem já os olhos postos em Paris. O objectivo é agora, com uma bolsa, estagiar no estrangeiro, de preferência num local que lhe permita total concentração nos seus treinos. "[Quero] ver se consigo chegar a Paris com a mais alta forma”, diz.

Talvez a primeira medalha olímpica cabo-verdiana esteja só a três anos de distância…

Missão cumprida

Esta foi a última participação de Leonardo Cunha, enquanto chefe de Missão, mas leva a convicção de que o Team Cabo Verde foi “uma experiência bem sucedida que deve ser acarinhada e alavancada de forma a termos participações de maior significados” o que pode até não passar pelos resultados no Field of Play”.

Quanto ao balanço destes JO, ainda está a ser feito. “É necessário ter o contributo de vários stakeholders da missão para ter uma avaliação global dos resultados finais da missão e preparação Olímpica”. Mas da sua parte, considera, “os principais objectivos estabelecidos para a missão foram cumpridos”. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1028 de 11 de Agosto de 2021. 

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Autoria:Sara Almeida,14 ago 2021 8:37

Editado porSara Almeida  em  4 ago 2024 18:20

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