BCV com saldo negativo de 5 milhões de contos

PorJorge Montezinho,8 mai 2021 7:42

Pela Lei Orgânica do Banco de Cabo Verde, o governo tem dois meses para recapitalizar o Banco Central, mas o Tesouro já avisou que mais capital – que pode ser em forma de fundos, títulos negociáveis ou montantes necessários para corrigir o défice – só depois da crise sanitária provocada pela pandemia.

Depois de deixar, à revelia da lei, de publicar, mensalmente, a situação financeira e patrimonial desde Setembro do ano transacto, o BCV informa, no relatório e contas de 2020, que depois dos resultados negativos de 3.5 milhões de contos, no ano passado, o capital próprio situa-se agora em cerca de 5 milhões de contos negativos.

“A 31 de Dezembro de 2020, o balanço do Banco de Cabo Verde apresenta um activo de 81.632.564 milhares de escudos, um passivo de 86.679.038 milhares de escudos, enquanto o capital próprio fixa-se em 5.046.474 milhares de escudos negativos, em resultado, sobretudo, do efeito da flutuação cambial desfavorável dos activos expressos em dólar dos Estados Unidos da América e da evolução negativa da cotação do ouro, bem como da redução da margem de juros”, lê-se no documento.

O activo, continua o relatório, apresenta uma diminuição de 5,13% face a 2019, por causa da descida de 12,07% das reservas cambiais, associado, particularmente, ao comportamento dos activos sobre exterior. “Estes, que representam 91,81% do agregado, evidenciam uma redução de 19,27%, decorrente da venda líquida de divisas às instituições de crédito, no âmbito de execução da política monetária e da depreciação nominal do dólar dos Estados Unidos da América, pese embora entradas provenientes de operações cambiais resultantes da aceitação de cartões internacionais na rede vinti4 e de desembolsos de parceiros internacionais, no âmbito de ajudas e acordos de financiamento para fazer face à crise económica e social causada pela pandemia da Covid-19”.

Como o passivo é superior ao activo e evidencia a insuficiência dos fundos próprios, o Estado iniciou, em 2019, o processo de recapitalização do Banco de Cabo Verde, nos termos previstos do artigo 57.º da Lei Orgânica do Banco de Cabo Verde, com um aumento do capital social em 700.000 milhares de escudos, fixando-se em 900.000 milhares de escudos, a 31 de dezembro de 2019. No entanto, em 2020, o processo foi interrompido, devido aos constrangimentos financeiros causados pela pandemia da Covid-19 na economia.

No final do mês de dezembro de 2020, o capital próprio apresenta um agravamento de 3.513.001 milhares de escudos face ao ano anterior, reflectindo a diminuição do resultado do exercício, associado à reavaliação cambial negativa dos activos denominados em dólar dos Estados Unidos da América, à redução de resultados em operações financeiras, assim como da margem de juros.

“O resultado do exercício do BCV tem sido fortemente influenciado pela variação cambial dos ativos expressos em dólar dos Estados Unidos da América, que, no período, representam cerca de 43,28% dos ativos em moeda estrangeira”, diz o relatório.

Reservas Cambiais

A 31 de dezembro de 2020, as reservas cambiais do Banco ascendiam a 66.627.863 milhares de escudos, e agregam o ouro e os activos sobre o exterior. É uma redução de 12,07% face a 2019, que espelha, particularmente, a venda líquida de divisas às instituições de crédito, no âmbito de execução da política monetária, e o efeito da flutuação cambial negativa dos activos denominados em dólar dos Estados Unidos da América.

O câmbio médio do dólar dos Estados Unidos da América, a 31 de dezembro de 2020, situa-se nos 89,785 escudos cabo-verdianos, face aos 98,548 escudos verificados no final de dezembro de 2019, acusando uma variação negativa de 8,89%.

Em termos de composição por moeda, no final de 2020, as reservas cambiais são constituídas por 52% em euro, 43% em dólar dos Estados Unidos da América, 5% em direitos de saques especiais e 0,001% em outras moedas.

“Constata-se uma deterioração do capital próprio do BCV, a partir de 2017, associado, em especial, aos resultados de reavaliação cambial desfavorável dos ativos denominados em dólar dos Estados Unidos da América e de operações financeiras”, refere o relatório. “Contudo, em 2019, em decorrência do início da recapitalização do Banco pelo Estado nos termos da Lei Orgânica, observa-se uma melhoria do capital próprio, entretanto interrompido em 2020 devido aos constrangimentos financeiros causados pela pandemia da Covid-19 na economia”.

Situação líquida do Banco de Cabo Verde

O Banco de Cabo Verde tem apresentado uma situação líquida negativa, com ênfase no período posterior à crise financeira internacional, em 2007/2008, que vem contribuindo para uma diminuição significativa das receitas provenientes da gestão de reservas e, por conseguinte, implicando um resultado negativo. Aliado a este cenário, para cumprir com a sua função de Banco Central, nomeadamente Emissor, Caixa do Tesouro, Regulador e Supervisor do Sistema Financeiro, incorre em despesas, sendo as principais despesas administrativas, realçando as contribuições para as pensões e outros benefícios sociais e as associadas a obrigações que decorrem da alocação de alguns serviços do Estado no BCV, os custos de política monetária e a variação cambial.

Em nota dirigida ao BCV, o Ministério das Finanças comprometeu-se em acompanhar a evolução da estrutura dos capitais próprios do Banco. De acordo com a última declaração enviada ao FMI pelo Ministro das Finanças e pelo Governador do BCV, a 10 de Março de 2021, e tendo presente os constrangimentos financeiros causados pela Covid-19, a recapitalização do BCV será retomada depois do fim da crise sanitária provocada pela pandemia.

Regime cambial de Cabo Verde

Existem vários regimes cambiais: câmbio fixo, banda cambial, câmbio flutuante, sendo certo que “não existe um regime cambial óptimo para todos os países ou para todas as situações.”, como disse o economista Jeffrey Frankel.

A estabilidade nominal da moeda cabo-verdiana foi, desde os primórdios da independência, uma condição essencial para promover o equilíbrio macroeconómico e sustentar o desenvolvimento a longo prazo.

Em 1998, Cabo Verde vivia num contexto de desenvolvimento muito incipiente do seu sistema financeiro, de acentuados desequilíbrios macroeconómicos e de instabilidade cambial. A situação punha em perigo a credibilidade da moeda nacional e as reservas externas do país.

A orientação estratégica por um regime de câmbio fixo, ancorado a uma moeda estrangeira estável e credível, foi o caminho encontrado para viabilizar o saneamento da situação vivida na altura. Este regime promove uma maior disciplina na condução da política orçamental e da política monetária, criando espaço para a promoção de reformas estruturais que levassem a uma maior integração económica do país na economia global, em particular na economia europeia.

Assente nestes preceitos, e sustentado por fortes laços de amizade e culturais, foi assinado, em 1998, o Acordo de Cooperação Cambial entre a República de Cabo Verde e a República Portuguesa, tendo como objetivos primordiais a promoção da estabilidade macroeconómica e financeira e a abertura ao exterior do país.

O Acordo de Cooperação Cambial (ACC) levou ao estabelecimento de uma taxa de câmbio fixa entre o escudo de Cabo Verde (ECV) e o escudo de Portugal (PTE), inicialmente de 0,55 ECV/PTE. Com a introdução do euro (EUR) e a adesão de Portugal à moeda europeia, a conversão passou para 110,265 ECV/EUR.

O dólar em 2020

O par cambial Euro/Dólar (Eur/Usd) é, a grande distância, o mais líquido do mercado, a que não será alheio o facto de serem as duas principais moedas a nível global. Dólar e euro, por esta ordem, têm os maiores pesos nas reservas cambiais dos diversos bancos centrais e grande parte do comércio internacional de bens e serviços é feito nestas duas divisas. Não menos importante, são as principais moedas de financiamento a nível mundial.

Desde o surgimento do Euro, oEur/Usd já oscilou entre perto de $0.80 e $1.60, o que é um intervalo de variação considerável. Observam-se 3 ou 4 fases bem distintas nesta evolução. Nos primeiros dois anos do euro, o Eur/Usd caiu de forma expressiva, devido a dúvidas quanto à sobrevivência da “moeda única”. Passada a fase de afirmação, o euro arrancou até ao verão de 2008, altura em que atingiu um máximo recorde de $1.60. A crise financeira demonstrou de forma clara o estatuto de refúgio de que goza o dólar, com a moeda norte-americana a iniciar uma tendência de alta que, segundo alguns analistas, perdura até hoje. Para outros, a tendência de alta do dólar terá terminado nos primeiros dias de 2017, logo a seguir à tomada de posse de Donald Trump. Nessa perspetiva, nos últimos três anos o Eur/usd nada mais fez do que lateralizar, sem tendência definida.

Em 2020, até ao início da pandemia Covid-19, o Eur/Usd estava a transacionar com volatilidade historicamente baixa e com uma leve tendência de alta do dólar.

Até perto do final de Fevereiro do ano passado, essa tendência acelerou e o euro foi particularmente penalizado uma vez que a pandemia estava a atingir a Europa de forma violenta e havia a percepção de que poderia não chegar aos EUA ou ter impactos mais reduzidos.

A realidade acabou por ser bem diferente e, à medida que os EUA começaram a ser atingidos, o mercado começou a deduzir que o FED (o Sistema de Reserva Federal dos EUA) teria de cortar as taxas de juro em breve, o que prejudicou o dólar. Ou seja, nesta fase o câmbio estava a ser movimentado tendo em conta a política monetária. A 15 de Março, o FED cortou mesmo as taxas e fê-lo fora da reunião regular, o que reforçou o carácter de urgência da decisão, já com os mercados bolsistas em perdas aceleradas.

Este facto “assustou” ainda mais o mercado, com o Eur/Usd a entrar numa nova fase em que o dólar foi comprado de forma muito agressiva, numa clara procura de refúgio. Ou seja, o câmbio deixou de estar focado nas taxas de juro e até mesmo na performance relativa das economias, para movimentar-se apenas pelo medo e pela necessidade de dólares um pouco por todo o mundo.

Com a recuperação dos mercados bolsistas, motivada pelos incontáveis estímulos monetários e fiscais e também com o regresso de alguma calma e discernimento a nível global, o câmbio entrou numa nova fase em que desenvolveu muito pouca tendência. O dólar manteve-se genericamente forte até perto do final de Maio. As bolsas aceleraram para novos máximos pós-início da pandemia e com mais optimismo, o refúgio em dólares foi menos necessário.

No final de 2020 começava numa nova etapa com indícios de uma segunda vaga de Covid-19, o que arrefeceu o entusiamo nas bolsas e fez aumentar novamente a aversão ao risco. Este é o principal factor que tem condicionado o Eur/Usd desde meados de Março: quanto maior o medo, mais força tem o dólar e vice-versa.

Consequências

Com as contas do Banco de Cabo Verde no vermelho, a principal consequência é a degradação da taxa de cobertura da emissão monetária [(reservas cambiais líquidas + outras garantias de emissão) / emissão monetária]. Outra consequência é o agravamento do excesso estrutural de liquidez, o que dificulta a condução da política monetária. Há ainda o risco reputacional devido ao facto do Banco Central estar a operar com capitais negativos, sobretudo se for considerado que, enquanto supervisor, exige adequada capitalização das instituições sujeitas à sua supervisão.

Os bancos centrais não entram em falência porque podem recorrer à emissão monetária para pagar as suas responsabilidades. No caso de Cabo Verde, porém, o banco central deve ter adequada taxa de cobertura da emissão por reservas cambiais para garantir a credibilidade do regime cambial. 

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Lei Orgânica do Banco de Cabo Verde

Artigo 57º

(Resultados do exercício)

8. Caso o Banco incorrer em prejuízo líquido durante qualquer exercício financeiro:

a) Esse prejuízo deverá ser imputado à Reserva Geral e se esta for inadequada para cobrir o montante total do prejuízo, o saldo do prejuízo deverá ser levado para a conta de resultados transitados;

b) Depois da apresentação, pelo Banco, de um relatório ou declaração confirmando o saldo dos prejuízos acumulados, o Governo deverá entregar ao Banco, num prazo máximo de 60 dias, fundos, títulos negociáveis datados e nos termos, condições e câmbios determinados pelo mercado de montante ou montantes necessários para corrigir o défice.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1014 de 5 de Maio de 2021.

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Autoria:Jorge Montezinho,8 mai 2021 7:42

Editado porSara Almeida  em  9 mai 2021 8:35

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