Trocar ou não trocar

PorJorge Montezinho,4 jul 2021 9:00

Uma troca de dívida pode ser definida como o cancelamento da dívida em troca de outra coisa. Formulado em termos mais técnicos, “Uma troca de dívida envolve a troca voluntária, por um credor com o seu devedor, de dívida por dinheiro, outro activo ou uma nova obrigação com prazos de reembolso diferentes”. Ou, de acordo com uma definição usada pelo PNUD, “Uma troca de dívida (ou conversão de dívida) é definida como o cancelamento da dívida externa em troca do compromisso do governo devedor de mobilizar recursos internos (moeda local ou outro ativo) para um propósito acordado”. Há vantagens e desvantagens nas reconversões, sejam de dívida por activos, por natureza ou por desenvolvimento. Mas há também um factor considerado fundamental: devedores e credores devem sempre dizer a verdade.

Entre os benefícios potenciais das trocas, alguns são óbvios, por exemplo, a dívida total do país em moeda forte é reduzida, assim como as obrigações futuras de serviço da dívida em moeda forte. O impacto na balança de pagamentos do país é positivo e dependendo da situação geral da dívida e do volume de trocas de dívida, estas podem reduzir a ‘dívida pendente’ do país e melhorar a sua posição nos mercados financeiros internacionais.

A existência de esquemas de dívida para o desenvolvimento num determinado país pode ajudar a mobilizar fundos adicionais, na forma de contribuições vindas de uma ampla variedade de fontes multilaterais, bilaterais e privadas. Por exemplo, muitas ONGs internacionais têm tido bastante sucesso em atrair fundos extras, graças aos seus esquemas de conversão de dívida em natureza, e até mesmo alguns credores privados fizeram contribuições importantes (principalmente por razões de boa vontade) através de doações de parte da dívida como contribuição para as trocas de dívidas para o desenvolvimento.

Para o credor, se este for um governo, organização multilateral ou agência de ajuda bilateral, as conversões da dívida podem permitir-lhe condicionar o uso dos fundos que o país devedor economiza, através do alívio da dívida, a áreas e actividades específicas, tais como imunização infantil, educação, conservação ambiental, ou seja, as áreas a que os credores dão mais prioridade do que o governo do país devedor.

Este proveito para o credor pode significar um inconveniente para o devedor, uma vez que pode implicar uma perda de soberania para a nação devedora uma vez que dá ao país doador um grau de controlo sobre a forma como o dinheiro economizado será gasto. “O problema – e o risco –“, diz o gestor e consultor Paulino Dias ao Expresso das Ilhas, “está (i) no contexto em que a operação ocorre, (ii) no poder negocial das partes e (iii) nas condições negociadas ou impostas (quando há desequilíbrios acentuados de poder a favor de uma das partes). Relativamente ao primeiro ponto, o contexto é claramente pouco vantajoso para Cabo Verde: nível elevado de dívida pública, com as pressões inerentes; um leque de empresas públicas (que o Governo já anunciara que seriam privatizadas) em situação financeira difícil, salvo algumas poucas exceções, e, portanto, de valor “de venda” abaixo do que seria desejável; contexto internacional de elevada perceção de risco e retração do investimento (menor apetite de investidores para privatizações). Este quadro diminui o poder negocial de Cabo Verde (ii), podendo levar a condições menos vantajosas para o país em eventual negociação das condições da conversão. Um dos riscos aqui é, claramente, Cabo Verde ceder ativos (investimentos) a preços muito baixos”.

“A conversão da dívida é um instrumento cuja importância depende das formas que pode assumir e das condições sua utilização”, resume o economista João Estêvão. “Segundo vários autores, não podemos concluir previamente sobre os seus benefícios e sobre os problemas que pode colocar, já que a avaliação dos seus impactos sobre as economias depende dos comportamentos das variáveis económicas e da ponderação desses resultados em relação aos objectivos pretendidos. Para uns, as conversões de dívida podem ter um elevado potencial no caso dos países muito endividados; para outros, podem transformar-se num instrumento muito perigoso, dada a possibilidade de efeitos negativos nas contas externas, balança de pagamentos e no fluxo de investimentos externos; e para outros, trata-se de um instrumento interessante, mas que deve ser utilizado de forma restrita, tanto no tempo, como em volume, consoante as condições macroeconómicas e políticas. Esta é, também, a minha opinião e pelas seguintes razões adicionais: a sua adopção pressupõe uma elevada capacidade negocial, condições adequadas para se estabelecer regras vantajosas e que têm de ser devidamente monitorizadas e o não abandono de outras alternativas possíveis de gestão da dívida. Importa dizer, ainda, que a opção pela conversão da dívida deve ser executa de forma muito transparente”.

Um processo longo e caro

As trocas podem ser complicadas, demoradas – as negociações podem levar entre 2 e 4 anos - e caras de implementar. Geralmente, é necessário procurar aconselhamento profissional para os aspectos jurídicos do negócio e os custos de transação num sentido amplo (tempo gasto na identificação de projetos adequados, negociações com todas as partes interessadas, taxas legais, a definição de uma decisão adequada - a criação de estruturas para a utilização de fundos de contrapartida locais, etc.) pode ser bastante elevada.

As negociações podem ser complicadas. Frequentemente, há vários actores diferentes, com objetivos distintos, envolvidos. Do lado do país devedor, os envolvidos podem incluir, por exemplo, o Ministério das Finanças, o Banco Central e / ou uma instituição especializada em gestão da dívida, ministérios sectoriais, ONGs, um fundo fiduciário especial encarregado de gerir o fundo de contrapartida estabelecido como resultado de a troca, e outros. Do lado do credor / doador, também pode haver uma série de partes interessadas envolvidas: um credor público ou comercial cuja dívida é trocada, uma agência de ajuda que financia a troca, uma ONG ou outra organização sem fins lucrativos responsável pela implementação do projeto, etc., com o elevado número de partes interessadas envolvidas aumenta também a possibilidade de alguma coisa não funcionar.

“O Estado devedor deve dotar-se de competências a nível de diplomacia e capacidade negocial, a nível de avaliação do valor de activos, a nível de estruturação de engenharias financeiras, entre outros”, explica Paulino Dias. “Porque os países credores tendem a estar melhor preparados para este tipo de negociações, o que pode resultar em assimetrias de capacidade negocial potencialmente desfavoráveis aos interesses dos países devedores”.

“Da experiência das últimas negociações, tanto no quadro das privatizações como com os parceiros da ajuda externa, conclui-se que temos grandes carências em termos de especialistas em negociações internacionais”, sublinha o economista Victor Fidalgo. “A experiência negocial não se consegue em apenas 7-10 anos nem não pouco no banco da universidade”.

Para João Estêvão, “um país como Cabo Verde tem de dar atenção, no domínio da Educação e da formação avançada, em particular, à necessidade de formar quadros altamente qualificados em matérias internacionais e de negociações internacionais. Em minha opinião, é dos domínios mais prioritários na formação de recursos humanos num país insular. Estes países dependem fortemente do exterior e, por isso, da sua capacidade de construir uma integração internacional dinâmica, o que depende, em grande parte, da disponibilidade nacional de especialistas internacionais e nos vários domínios”.

“A transparência é necessária em tudo”, avisa o economista Jonuel Gonçalves. “Não estamos mais em épocas de políticas às escondidas. A sociedade tem de entender o processo, a sua duração e condições. Por exemplo, a busca de alianças para negociar deve ser bem informada e também as posições dos nossos credores. É provável que eles, por exemplo, excluam das dívidas transformáveis, atrasos em pagamento de importações. Ao mesmo tempo, os negociadores têm de possuir uma visão clara das prioridades em cada um dos nossos países e conhecimento detalhado das conjunturas dos credores. Seria interessante que, como prévia dos coletivos de negociação, se organizassem seminários sobre isto, ou seja, exatamente o que queremos e como está o mundo. E lhes déssemos grande divulgação. O mercado é muito sensível à exposição de posições que abram perspectivas. Uma das primeiras preocupações dos negociadores é avaliar a competência dos interlocutores”.

Uma questão moral?

De um ponto de vista quase filosófico, a economia também tem princípios para lá dos números? Organizações internacionais como a ONU, o FMI e o Banco Mundial têm levantado o tema da moralidade na reconversão das dívidas, que nenhum país deve ‘trocar’ o bem-estar dos respectivos cidadãos por pagamentos de débitos, mas este é um argumento que divide os especialistas ouvidos pelo Expresso das Ilhas.

“Temos aqui duas situações que devem ser diferenciadas”, sublinha João Estêvão. “Primeiro, a dívida avolumada ao longo do tempo. A constituição da dívida é resultado de um acto realizado entre duas partes, o prestamista e o mutuário. Os problemas de reembolso da dívida podem resultar de causas associadas a qualquer dos lados, ainda que as resultantes do lado do mutuário sejam aquelas que se tornam mais visíveis. Sabemos, por exemplo, que a crise da dívida que aconteceu no início da década de 1980 foi, em grande parte, produto de mudanças do lado do prestamista. Naturalmente que existem responsabilidades do lado dos devedores, mas não podemos deixar de reconhecer como começou algo que ainda tem consequências significativas e agravadas pelo modo como se tem comportado a economia mundial. Isto quer dizer que podemos descortinar motivos éticos e morais na discussão da resolução da dívida”.

“Em segundo lugar”, continua o economista, “as consequências da pandemia que todo o mundo vive têm sido gravíssimas, nomeadamente, para os países mais pobres e, também, para os países de rendimento médio mais vulneráveis, como Cabo Verde. Existe aqui um dever de solidariedade do mundo mais desenvolvido para o mundo menos desenvolvido, razões éticas e morais que impõem a necessidade das negociações internacionais”.

“É uma questão complexa”, diz Paulino Dias. “A dívida resulta de um contrato estabelecido entre partes, assume-se que de livre e espontânea vontade. A haver questões éticas, morais ou de legalidade a considerar ou a acautelar, penso que devem ser tratadas antes da contratualização da dívida, e não depois. Sob pena de se minar relações que devem se basear na confiança, previsibilidade e credibilidade das partes. Um país que decide unilateralmente deixar de cumprir as suas obrigações financeiras para com os seus credores perde credibilidade no plano internacional. As implicações podem ser profundamente negativas: dificuldades de aceder no futuro a mercados financeiros (empréstimos) para financiar o seu desenvolvimento, risco de penalidades contratuais ou outras, etc. Pelo que a minha opinião é que este não é um caminho para o qual se deve enveredar de ânimo leve”.

“Existe imoralidade sim”, afirma Victor Fidalgo, “mas é acima de tudo, da parte dos devedores. Endividaram-se de forma irresponsável e, muitas vezes, corrupta. Vejamos o caso das dívidas ocultas de Moçambique. República Democrática do Congo. Porquê ajudar Angola, quando o dinheiro roubado pelos seus dirigentes políticos e militares ultrapassa o montante da sua dívida externa. Não podemos escamotear estas situações. E é imoral utilizar o dinheiro dos contribuintes de outros países (ricos) com boa governação, para alimentar a reprodução da corrupção institucional em África. As forças de esquerda nos países desenvolvidos apreciam este tipo de relacionamento, mas isso apenas eterniza a situação de subdesenvolvimento numa parte do mundo. É como carregar água num binde”, conclui.

A reconversão da dívida é um instrumento usado há quase dois séculos, com períodos em que foi mais utilizado do que em outros. Tem proveitos e tem inconvenientes, mas segundo os peritos, deve fazer parte da relação entre países, no cenário internacional, no sentido de encontrar mecanismos inteligentes e inovadores para o financiamento. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1022 de 30 de Junho de 2021.

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Autoria:Jorge Montezinho,4 jul 2021 9:00

Editado porAntónio Monteiro  em  5 jul 2021 15:00

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