A partir daqui as coisas deixam de ser tão lineares, com os profissionais da diáspora a queixarem-se de um país demasiado partidarizado e onde as instituições olham com desconfiança para quem vem de fora.
Ou há mudanças profunda, dizem, ou será quase impossível fazer regressar os emigrantes qualificados.
“Se um académico me perguntar se deve vir ou não para Cabo Verde a minha resposta será não. Porque é uma participação que não consegue provocar um impacto significativo. Temos a ideia de fazer diferente, mas as instituições de ensino superior não permitem essa mudança”. Estas foram as palavras de João Resende Santos, professor associado de Estudos Internacionais na Universidade de Bentley, em Waltham Massachusetts, EUA e doutorado em Ciência Política pela Universidade de Harvard.
Antes de Bentley, foi docente na Universidade da Pensilvânia e na Universidade de Pittsburgh e de 2009 a 2011, exerceu as funções de Presidente da Escola de Negócios e Governação da Universidade de Cabo Verde (Uni-CV). Uma experiência que não foi das melhores, como testemunhou no colóquio deste sábado.
“Vim participar no ensino superior [em Cabo Verde] com uma ideia radical, desde o primeiro momento falei disso na reitoria: acabar com tudo e começar de novo, do zero, uma mudança radical de currículos, de gestão académica, de tudo. Repensar, no fundo, o ensino superior. Claro que não foi uma mensagem bem abraçada, mas continua a ser a minha convicção. Por enquanto, o ensino superior em cabo verde é improvisado e enquanto não houver uma mudança radical vai continuar a ser uma fraqueza e, para mim, uma fraude”, afirmou Resende Santos.
As áreas de pesquisa do académico incluem a teoria das relações internacionais, a política externa dos EUA, a política de desenvolvimento, a economia política de Cabo Verde, o envolvimento da diáspora, as relações externas de Cabo Verde e o transnacionalismo económico.
“Cada instituição tem estruturas de poder, de rotina, práticas e interesses às quais nós, que vimos de fora, criamos uma ameaça” João Resende Santos
Num diagnóstico à realidade nacional, João Resende Santos sublinhou que “as nossas instituições, públicas e privadas, não funcionam bem. O contexto institucional tem de ser melhorado. Não é só questão de recursos, sabemos que há dificuldade, mas trata-se de ineficiência, burocracia, centralização excessiva de decisões e poderes. As instituições não têm mentalidade para resultados”.
Sobre os constrangimentos que se enfrentam, o primeiro de todos, disse, é a política partidária, “infiltra tudo, daí a importância de nós termos uma voz independente”. Outro problema é a percepção da ameaça. “Falando com vários profissionais da diáspora, houve várias reclamações que as pessoas nas instituições cabo-verdianas sentem-se ameaçados com a nossa presença. Muitos de nós vimos com projectos, com ideias para provocar mudanças, mas as organizações não mudam facilmente. Cada instituição tem estruturas de poder, de rotina, práticas e interesses às quais nós, que vimos de fora, criamos uma ameaça”.
A última de uma longa lista de más experiências
A frase que serve de título aos próximos parágrafos é de Raffaella Gozzelino. Não foi proferida num tom amargurado, mas com o timbre de quem lamenta não ter terminado o trabalho a que se tinha proposto. Raffaella Gozzelino, doutorada em Biologia Celular e Neurobiologia pela Universidade de Lérida, em Espanha, era docente e investigadora da Universidade Nova de Lisboa quando, em Julho de 2020, foi nomeada como primeira reitora da Universidade Técnica do Atlântico. Em Abril deste ano, foi exonerada do cargo.
“A captação de talento é obviamente fundamental para Cabo Verde”, disse a cientista no colóquio, “contudo a captação de talento tem de vir com a criação de condições apropriadas para os talentos poderem deixar o próprio trabalho [no exterior]. E tem de vir com um apoio porque o quadro da diáspora não pode sentir-se sozinho num sistema que está a tentar inovar, transformar e modificar”.
“A educação é a base do desenvolvimento de qualquer país”, continuou Raffaella Gozzelino, “a diáspora pode apoiar a inovação e novas metodologias de trabalho que Cabo Verde precisa e notoriamente vai procurar no estrangeiro. A transmissão desses conhecimentos permite a reaproximação das 2ªs, 3ªs e 4ªs gerações que, efectivamente, têm uma identidade cabo-verdiana que está em risco, também por uma perda de credibilidade do sistema educativo e no sistema de conhecimentos de Cabo Verde”.
Toda a classe dirigente cabo-verdiana manda os filhos estudar nas universidades estrangeiras, indicando uma falta de confiança na qualidade do sistema nacional Raffaella Gozzelino
A antiga reitora da UTA fez ainda um retracto do sistema educativo. “Toda a classe dirigente cabo-verdiana manda os filhos estudar nas universidades estrangeiras, indicando uma falta de confiança na qualidade do sistema nacional. Se isso é o que está a ser transmitido pergunto se não é o caso de fazer alguns estudos sobre quantas bolsas o ministério da educação fornece aos estudantes e quantos desses estudantes acabam esses estudos. Infelizmente, o abandono universitário é dramático. Muitos estão a utilizar essas oportunidades para cumprir o sonho de emigrar”.
Não é de hoje que Cabo Verde é frequentemente apontado como um dos países africanos com maior taxa de “fuga de cérebros” ou “brain drain”. Contudo, o “brain drain” nacional, segundo vários analistas, não resulta da migração de cientistas, médicos, engenheiros ou outros profissionais experientes, mas sim de estudantes que falham o regresso ao país após a conclusão da formação académica no exterior. Se é verdade que o “brain drain” cabo-verdiano não é tão grave como o êxodo de profissionais experientes, é igualmente verdade que o país acaba por perder os seus jovens quadros de maior potencial, uma vez que esses são aqueles cujo perfil interessa às empresas e às instituições públicas nos países de acolhimento. Por outro lado, este novo migrante tem um perfil muito mais transnacional, e com fortes tendências para a criação de raízes duradoras e estáveis nos países de acolhimento, o que dificulta uma aposta exclusiva no envio de remessas financeiras, como já analisou o investigador Jaílson Brito Querido.
No passado, o “brain drain” era referido, exclusivamente, como algo negativo para os países de origem. Hoje, são cada vez mais frequentes os casos de países que transformaram o “brain drain” no “brain gain”. Cabe aos governos de países de origem implementar medidas que fomentem a diversificação da participação da diáspora no processo de desenvolvimento do país.
Há uma tentativa de criar este “brain gain” em Cabo Verde, mas ainda não foi conseguido. Como resumiu Raffaella Gozzelino, “essas bolsas de estudo para o estrangeiro estão a tirar o futuro da nação cabo-verdiana, porque muitos não voltam”. E apesar da experiência negativa, a cientista sublinhou que “o amor à pátria que nos caracteriza sempre nos faz voltar”.
Das remessas ao conhecimento
Num cenário internacional marcado pelo intenso fluxo migratório, o nexo entre migração e desenvolvimento enquadra-se num vasto debate sobre políticas públicas relacionadas com a gestão migratória. A ligação entre políticas migratórias e de desenvolvimento tem alcançado relevo no âmbito das Nações Unidas, da União Europeia (UE), dos países emissores e dos países receptores.
Para além das remessas financeiras, há as remessas sociais, “ideias, comportamentos, identidades, e capital social que fluem do país receptor para o país emissor” que podem influenciar atitudes políticas acerca dos Direitos Humanos, promover o ganho de cérebros, a transferência de tecnologias e até mesmo incentivar investimentos no país de origem através da divulgação de produtos e da acção dos empresários da diáspora.
Como reforçou o Presidente da República, na abertura do colóquio, “nestes novos tempos é preciso elevarmos o patamar de participação da diáspora. É preciso criarmos condições para as remessas de conhecimento, para uma contribuição muito mais sofisticada. Temos de criar condições para recrutar quadros espacializados da diáspora para trabalharem aqui”, disse José Maria Neves, ainda antes das intervenções dos académicos que não tiveram a melhor das experiências em Cabo Verde.
Wladimir Brito, como o próprio afirmou, é uma excepção nas colaborações académicas que tem tido no arquipélago. No entanto, segundo o doutor em direito pela Universidade de Coimbra e Professor Catedrático na Escola de Direito da Universidade do Minho, a diáspora cabo-verdiana enfrenta um conjunto de constrangimentos que obrigam a repensar se essa participação não implica uma inscrição nas instituições nacionais de forma efectiva.
“A diáspora quando manda reservas, bens, etc., não participa directamente nas instituições. Age organizadamente cá fora, mas dentro de Cabo Verde quem age são as instituições públicas cabo-verdianas, que vão gerir essas remessas, produtos, etc. A questão que se me colocou durante algum tempo é que se não nos inscrevermos nas instituições, como parte activa dessas instituições, em Cabo Verde, essa questão da nossa relação com Cabo Verde nunca mais se vai endireitar”.
Não podemos ter um sistema de ensino, público ou privado, em que os cargos são preenchidos por favor, amiguismo, ou questões partidárias Wladimir Brito
“Temos de contribuir com a nossa participação, quer a nível nacional quer a nível local. Estamos fora, mas não podemos ficar de fora, temos de estar dentro através das instituições de cariz municipal para termos uma voz na aplicação das nossas remessas a nível local, porque cada cabo-verdiano emigrante tem uma relação com o seu município, com o seu local de nascimento. É aí que ele gosta de ver evolução, mas essa evolução local contribui para a evolução nacional, portanto, não há choques”, sublinhou o professor universitário.
Wladimir Brito chamou ainda a atenção para os organismos que considera fundamentais e que falta ainda instalar: o Conselho Económico, Social e Ambiental e o Conselho das Comunidades, “por que razão não foram instalados os organismos e a diáspora não foi convocada para discuti-los e integrá-los?”, questionou.
Sobre as remessas de conhecimento, mesmo nunca tendo enfrentado dificuldades, o académico não deixou de reconhecer que estas existem. “Isto tem de ser resolvido olhos nos olhos e sem metáforas, ou seja, há qualquer coisa que está mal e pode ser melhorada. Os académicos da diáspora não querem qualquer estatuto especial, podem até participar por concurso público, pelo mérito, só que normalmente há uma experiencia que temos fora, variada, que pode, em conjunto, permitir um desenvolvimento mais equilibrado, sustentável e forte das universidades e centros de investigação cabo-verdianos”.
“Não queremos meras opiniões, queremos discutir com os nossos colegas através da ciência para que as universidades possam avançar, que é o que acontece fora do país, onde há discussões sérias que provocam avanços. Não podemos ter um sistema de ensino público ou privado em que os cargos são preenchidos por favor, amiguismo, ou questões partidárias. Tem de se acabar com isso. É esse debate frontal que temos de ter em Cabo Verde. Se não, esse amiguismo vai gerar carência no debate científico, porque quem está lá, está também com o medo de vir outro amigo e tirá-lo de lá. Isto vai gerar atraso no desenvolvimento do país. As universidades têm de se libertar totalmente do governo e ser autónomas, elegendo os seus reitores, estes a elegerem os seus conselhos, as escolas a elegerem os seus dirigentes, tudo com muita autonomia, porque assim é que as universidades avançam”, disse Wladimir Brito.
“Não é aceitável que Cabo Verde tendo uma massa critica muito forte cá fora, com convites dos países de acolhimento para dirigirmos várias instituições, não aproveite isto. Queremos ser tratados com igualdade e temos de ir com moderação, com espirito de colaboração e não de imposição, não vamos ensinar nada a ninguém, vamos aprender uns com os outros. Queremos fazer isto com humildade, mas sem prescindir da ideia de que a nossa colaboração, juntamente com os colegas cabo-verdianos, é para o desenvolvimento do país e não para ficar tudo como está”, concluiu o professor universitário.
As dimensões do desenvolvimento
Os fluxos de recursos entre os migrantes, as famílias e as comunidades em geral incluem dinheiro (remessas, investimento), comércio (bens, serviços) e conhecimento (tecnologia, habilidades, recursos de negócios). Esses fluxos afectam directamente as desigualdades de rendimento e riqueza, o comportamento de consumo e investimento e o potencial de crescimento económico e de emprego, nos países de origem e de destino.
O nexo entre migração e desenvolvimento relaciona-se com três dimensões que envolvem a diáspora. A primeira é o development in the diaspora, ou seja, o uso de redes no país de acolhimento para formação de negócios étnicos, laços culturais e mobilização social, com destaque para a importância das redes informais de amigos e parentes, de associações das diásporas para esta dimensão, pois auxiliam os recém-chegados a estabelecerem-se e orientam-nos para a vida no novo país de residência, ajudando-os na integração. A segunda dimensão, development through the diaspora, diz respeito ao uso das conexões globais difusas de uma comunidade de diáspora no sentido de facilitar a promoção do bem-estar social e económico. Esta dimensão é uma expansão da primeira. A terceira dimensão refere-se ao development by the diaspora, que se relaciona com os fluxos de ideias, de capital e de apoio político para o país de origem.
A diáspora cabo-verdiana está em mais de 20 países e tem tido um papel fundamental no desenvolvimento do arquipélago. Se somarmos as remessas, os depósitos, mais os investimentos directos e empreendedorismo social, chega-se aos 25% do Produto Interno Bruto. O ministro das comunidades participou também no colóquio e garantiu que o governo quer mudanças na relação com a diáspora, tanto para a sua implicação no desenvolvimento do país, mas também na dupla natureza de melhor integração nos países de acolhimento e em Cabo Verde.
“O governo definiu uma nova orientação”, disse Jorge Santos, “e já elaboramos um plano. Esse plano implica alguns elementos fundamentais: 1) Como fazer para melhor integração e captação dessa capacidade nacional? E para isso temos um programa de recenseamento e mapeamento da diáspora: Quem são? Quantos são? Onde estão? 2) Conectividade e comunicação. E estamos a criar uma ampla plataforma, um portal, de comunicação funcional e útil. 3) Captação de talentos e de saber. Com várias acções, nos EUA e na Europa, para desenvolver programas de captação”.
“O que tem falhado, no meu entendimento, é a falta de ligação. Não basta participar, mas participar de facto e ser parte”, afirmou ainda o ministro, para quem os resultados devem começar a aparecer em breve.
A diáspora cabo-verdiana foi sempre o grande recurso de sobrevivência nas recorrentes crises que foram assolando a ilha durante a sua história e as remessas dos emigrantes desde sempre têm sido um fenómeno de grande importância para o desenvolvimento económico dos países em via de desenvolvimento e dos países do desenvolvimento médio. Se é claro que a relação entre migrações e desenvolvimento tem o seu elo mais visível nas remessas financeiras, também é verdade que a relação entre remessas e desenvolvimento depende essencialmente da estabilidade do fluxo, da utilização que é dada pelas famílias que as recebem e da distribuição que esse dinheiro e produtos têm na família, na comunidade e no país. Para além das remessas financeiras, as remessas sociais, as remessas de conhecimento, as migrações de quadros, o apoio e envolvimento da diáspora e os processos de retorno e reintegração, são os outros elos, menos visíveis mas igualmente importantes, dessa relação. A diáspora, no fundo, é importante como força propulsora do desenvolvimento dos países de origem.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1076 de 13 de Julho de 2022.