Há mais escalas e mais turistas, mas o impacto é pequeno

PorJorge Montezinho,19 fev 2023 12:36

A procura turística por Cabo Verde continua a recuperar e entre os regressos estão os cruzeiros. O movimento de turistas que chega nos navios disparou em 2022, no entanto, segundo o presidente da Associação de Turismo de Santiago, esta subida teve um impacto residual na economia local.

“Da mesma forma que não estamos a ser capazes de tirar o devido partido da procura induzida do turismo no Sal e na Boa Vista, também não estamos a tirar o partido devido dos navios de cruzeiro que estão a procurar Cabo Verde”, diz Eugénio Inocêncio ao Expresso das Ilhas. “Isso significa que é preciso o país pensar essa matéria. Pararmos. Ouvirmos todos os intervenientes. É preciso pararmos e pensarmos no porquê, no porquê desta situação”, acrescenta o presidente da Associação de Turismo de Santiago.

As escalas de navios de cruzeiro nos portos de Cabo Verde aumentaram 360% no ano passado, de acordo com o boletim estatístico da ENAPOR de 2022. No total, registaram-se 129 escalas de navios de cruzeiro de Janeiro a Dezembro: Porto Grande, em São Vicente, teve 43 escalas e o porto da Praia teve 33. Porto Novo (15 escalas), Porto de Palmeira (11) e o Porto de Vale de Cavaleiros (10), completam os cinco principais locais de escala. As restantes aconteceram no Porto de Sal-Rei (8 escalas), Tarrafal (6), Porto Inglês (2) e Porto da Furna (1).

Em 2021, devido às restrições impostas pela Covid-19, houve apenas 28 escalas de navios. A pandemia foi, aliás, catastrófica para a indústria de cruzeiros. Economicamente, a pausa nas operações resultou em perdas de 50 mil milhões de dólares, segundo dados da CLIA, Cruise Lines International Association – Associação Internacional de Cruzeiros Marítimos.

Este volume de escalas, no ano passado, traduziu-se no movimento de 47.479 turistas, um aumento de 329%, quando comparado com 2021, que recebeu apenas 11.066 turistas. Em 2022, o Porto da Praia foi o que registou maior percentagem de movimento de turistas de cruzeiro, 49% do total nacional (23.365 turistas), seguindo-se o Porto Grande com 35% (16.726 turistas). Os outros turistas dividiram-se entre o Porto Grande (2.219), o Porto de Palmeira (1.618), Sal-Rei (1.339), Vale de Cavaleiros (1.049), Tarrafal (806), Porto Inglês (265) e Porto da Furna (92).

“O aumento do número de turistas era algo esperado, por aquilo que temos conversado com as pessoas. Sentíamos essa tendência”, refere Eugénio Inocêncio. “É evidente que não tinha noção que iria ultrapassar São Vicente”, completa.

“Mas em relação ao turismo de cruzeiro, é preciso termos em conta que é uma procura potencial, que só se concretiza com oferta qualificada para que esses turistas não se resumam a uma passagem, que toda a gente gosta e saúda, mas que deixa pouca riqueza na ilha e pouco contribui para o bem-estar das pessoas, para a luta contra a pobreza, etc.”, continua o presidente da Associação de Turismo de Santiago.

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“A oferta de serviços tem de significar mobilidade, gastronomia, comércio, artesanato, cultura, circulação por sítios especiais, com oferta nesses sítios especiais, por exemplo, a Cidade Velha, a Serra da Malagueta, Santa Cruz, etc. É preciso organizar, com tempo, através de planeamento, com muito trabalho por trás, para que esses turistas sejam confrontados com uma oferta de qualidade e com segurança”, sublinha Inocêncio.

O turismo de cruzeiro

Os primórdios do turismo de cruzeiros remontam a meados do século XIX. Até então, o principal objetivo dos navios era o transporte de mercadorias. Em 1839, Samuel Cunard fundou a British and North American Royal Mail Steam Packet Company. Um ano depois, o primeiro navio a vapor de passageiros cruzou o Oceano Atlântico e nessa altura deu-se o início dos serviços regulares entre os Estados Unidos da América e a Europa.

A estrutura da indústria é oligopolística, ou seja, existem poucos vendedores para muitos compradores e alguns grandes fornecedores dominam o mercado. É difícil entrar no mercado porque é necessário um capital inicial elevado.

Como se lê na literatura especializada, “um navio de cruzeiro representa todas as quatro faces da indústria do turismo: transporte, alojamento (incluindo alimentos e bebidas), atrações e operadores turísticos, tornando-os comparáveis aos resorts em terra. Daí poderem representar rivais directos para os mesmos e com capacidade para retirarem clientes”.

Com uma oferta tão vasta a bordo, muitos passageiros decidem permanecer no navio quando o mesmo se encontra no cais. Novos conceitos de entretenimento incluem “piscinas de surf, planetários, cinema, simuladores de golfe, parques aquáticos, cozinhas de demonstração, piscinas e jacuzzis privados, pistas de patinagem no gelo, paredes de escalada, trampolins, entre outros”. Estas novidades a bordo nem sempre estão incluídas nos pacotes, mas tornaram-se componentes que rendem quantias significativas às companhias. Por norma 20% a 30% da receita total das companhias está relacionada com receitas a bordo. Além disso, os navios navegam à noite e atracam durante o dia para que os passageiros possam fazer actividades em terra. Habitualmente os navios ficam cerca de 8 a 10 horas num porto. Desta forma, há a garantia de que os passageiros fazem as refeições no cruzeiro e não têm muito tempo para despender dinheiro nos portos.

Em resultado disso é colocada, pelos especialistas, a questão de se saber se o destino, ou melhor, o navio, é de interesse primordial. Além disso, algumas companhias possuem as suas próprias ilhas privadas, nas quais apenas os navios das mesmas podem atracar. Estes oferecem uma experiência totalmente artificial aos passageiros.

Os estudos sobre as motivações do turismo começam a ser cada vez mais e com especificidades próprias relacionadas com diferentes tipologias de turismo.

Diversos estudos identificaram três motivações mais relevantes para as pessoas efectuarem cruzeiros:

Relaxamento;

Relacionamentos com familiares ou aprimoramento da amizade;

Conveniência de viajar.

Outros estudos descobriram que os clientes de cruzeiros na América do Norte geralmente eram motivados pelo conforto e pela acomodação fornecida a bordo do navio de cruzeiro. Visitar vários destinos numa única viagem e a facilidade de organização de férias em cruzeiros também deixa os viajantes motivados e interessados.

O plano estratégico para o turismo de Cabo Verde

Cabo Verde possui já alguma tradição no segmento do turismo ligado ao mar, mas o potencial do arquipélago, segundo o Plano Estratégico do Turismo 2018-2030, “é notável, considerando que o País recebe menos de 3% do tráfego do turismo de cruzeiro no circuito da Macaronésia”.

De acordo com o mesmo documento, com a criação de condições de infra-estruturas físicas e correspondentes actividades complementares de negócios em torno deste segmento, Cabo Verde, “mais do que nenhum outro destino na sub-região”, estará em condições privilegiadas de explorar não só um, mas três circuitos de turismo de cruzeiros:

Circuito da Macaronésia;

Circuito eixo Europa América do Sul e

Circuito África Ocidental.

Uma análise SWOT ao circuito da Macaronésia, publicada na revista especializada Turismo e Desenvolvimento, identificou as possibilidades do sector do turismo de cruzeiros e identificou:

Como forças – Localização geográfica; desenvolvimento turístico; segurança; clima; recursos naturais e culturais; proximidade com a Europa; infra-estrutura portuária existente.

Como debilidades – Especialização do sector; infra-estrutura dos portos, uma vez que os portos mais bem equipados, como os de Las Palmas, Tenerife e da Madeira estão em vantagem sobre as outras ilhas; conexão entre as ilhas; pouca presença do mercado norte-americano; comunicação deficiente dos recursos culturais da região.

Como ameaças – Concorrência entre os portos da Macaronésia; concorrência com outros portos, uma vez que destinos como as ilhas Baleares e as Caraíbas, com características geográficas semelhantes são importantes concorrentes no mercado da Macaronésia; aumento da prostituição e da criminalidade nos portos; impacto sócio-ambiental; navios atracados e turistas a bordo.

Por fim, como oportunidades – Benefício para população local; disseminar a cultura e a história local; construção de novos terminais; atrair investidores para as ilhas; atrair maior número de escalas; atrair o mercado norte-americano.

Segundo o plano estratégico do governo, São Vicente, “por razões naturais e históricas”, é a ilha que melhor se perfila para desenvolver este tipo de turismo. A vizinha ilha de Santo Antão “beneficiará também do fluxo de turistas de cruzeiros que se pretende atrair, dada a sua proximidade e as ricas valências complementares que o destino turístico Santo Antão oferece”.

No mesmo documento, pode ler-se que há outras ilhas no país que oferecem boas condições para atrair o turismo de cruzeiros, “a começar pela ilha de Santiago, as ilhas do Fogo e Brava, ou a própria ilha do Maio, que poderá ser um destino complementar à ilha de Santiago”.

“Outras ilhas ainda, como São Nicolau e ilhas orientais (Sal e Boa Vista) poderão vir a desfrutar igualmente do turismo de cruzeiro pelas suas excelentes potencialidades turísticas”, refere ainda o plano estratégico para o turismo.

O turismo é negócio

“O turismo não é folclore. É negócio”, diz Eugénio Inocêncio. “Claro que é negócio com qualidade para satisfazer a procura. De tal forma, que a procura, quando termina a estadia em Cabo Verde, sai satisfeita, o que garante o retorno. Isso tem de ser trabalhado profissionalmente”.

“O fomento empresarial em Cabo Verde não deve continuar a ser a excepção à regra, deve ser a regra. Essa é a grande questão”, reforça o presidente da Associação de Turismo de Santiago. “Há anos que venho afirmando que é preciso criar as condições para uma alteração significativa no nosso sistema bancário. Para mim, é cada vez mais evidente que essa alteração passa pela criação do primeiro banco de fomento em Cabo Verde, que tenha como finalidade o fomento empresarial, que tenha a sensibilidade e os mecanismos que permitem apoiar as empresas e fomentar os negócios”.

“Esse tipo de banco é fundamental nos momentos de transição, fora dos momentos de velocidade de cruzeiro, e esse é o momento que estamos a viver. Para os momentos de transição são precisos instrumentos especiais”, continua Inocêncio.

“A procura que neste momento é induzida pelos navios de cruzeiro é uma procura mínima. A oferta, ao nível da cultura, da gastronomia, da visita a sítios especiais, precisa de trabalho árduo, concertado, com fomento empresarial forte, porque quem vai criar essa oferta são as empresas e para isso são precisos instrumentos específicos. Se o turismo de cruzeiro continuar como agora, vai ter um impacto mínimo”, sublinha o responsável.

“Claro que é um turismo que interessa, nem que seja para despertar as consciências de que podíamos ter aproveitado esses turistas. Já há uma procura significativa, agora temos de criar a capacidade para gerar uma oferta para satisfazer essa procura”, conclui Eugénio Inocêncio.

Turismo global de cruzeiros

Segundo o Outlook de 2022 da CLIA, há 272 navios de cruzeiro a operar nos oceanos e mares do planeta, 11% dessas embarcações têm capacidade para mais de quatro mil passageiros. Os principais mercados emissores de turistas de cruzeiros são os Estados Unidos (51%), A Europa ocidental (21%) e a Ásia (12%). Já os principais destinos dos cruzeiros – por volume de passageiros – são as Caraíbas, Bahamas e Bermuda (44%), Ásia e China (12%) e o Mediterrânio (8%).

Dados do mesmo documento da Associação Internacional de Cruzeiros Marítimos mostram que por cada 24 turistas de cruzeiros é criado um posto de trabalho a tempo inteiro e que cada turista gasta, em média, 750 dólares nos portos das cidades visitadas pelos navios.

A indústria de cruzeiros contribuiu com um total de 154 mil milhões de dólares para a economia e é responsável por 1.17 milhões de empregos. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1107 de 15 de Fevereiro de 2023. 

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Autoria:Jorge Montezinho,19 fev 2023 12:36

Editado porSheilla Ribeiro  em  4 set 2023 23:28

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