Quais os principais desafios enfrentados pela supervisão bancária e pelo sistema financeiro no actual cenário económico global?
O actual cenário mundial carateriza-se por incertezas e transformações a uma escala e ritmo sem precedentes. Este cenário exige o acompanhamento e a adaptação à evolução do ambiente regulatório a nível mundial e às melhores práticas internacionais em matéria de regulação e supervisão do sistema financeiro. Importa adotar as melhores ferramentas de supervisão, seja ao nível macro como ao nível micro, bem como priorizar a contínua formação dos quadros técnicos, para atender aos desafios que se colocam ao Banco Central. Nesta linha, importa implementar os princípios de Basileia III, um passo já dado pela maioria dos países nossos peer group. Num mundo em contínua transformação, as mudanças tecnológicas que ocorrem têm impactado de modo profundo o sistema financeiro. Realçamos, designadamente, as Fintechs. Assim, interessa analisar as oportunidades e os riscos, bem como reforçar a segurança cibernética. Outro tema, na agenda das preocupações, são as mudanças climáticas e o seu impacto sobre a estabilidade do sistema financeiro. Embora ainda seja um tema incipiente, interessa identificar os riscos climáticos (físicos e de transição) a que o país se sujeita e, se possível, estimar o efeito sobre a actividade económica (impacto no PIB) e sobre a estabilidade do sistema financeiro. Actualmente, exige-se que os bancos centrais sejam pró-activos, ágeis e adotem abordagens inovadoras para garantir a estabilidade e a integridade do sistema financeiro num ambiente económico global em constante evolução.
Quais são as principais medidas de supervisão adoptadas pelo órgão regulador para garantir a estabilidade do sistema bancário?
O Banco de Cabo Verde definiu um conjunto de indicadores financeiros e prudenciais, aos quais faz o acompanhamento ajustado e periódico. De entre as várias medidas prudenciais implementadas, destacam-se: (i) os requisitos mínimos de capital que os bancos devem cumprir; (ii) avaliações frequentes da qualidade dos activos dos bancos para identificar potenciais riscos; e (iii) acompanhamento da sua posição de liquidez. Para além das medidas prudenciais citadas, a supervisão é responsável por estabelecer e avaliar o cumprimento dos regulamentos e directrizes sobre governança corporativa, gestão de riscos e compliance dos bancos.
Como actua a supervisão bancária na prevenção de crises financeiras?
As medidas prudenciais atrás citadas concorrem para a prevenção de crises financeiras. Para além dessas medidas, em prol da estabilidade do sistema financeiro, cumpre aferir, periódica e regularmente, a resistência do sistema financeiro cabo-verdiano e a solvência individual das instituições financeiras que o integram, perante determinados cenários macroeconómicos. Neste âmbito, são realizados testes de stress aos bancos. Esses testes são ferramentas que permitem avaliar a resiliência dos bancos diante de cenários adversos e medir o impacto de eventuais choques na qualidade dos seus activos, no nível de liquidez e no capital. Simultaneamente, permitem que os supervisores tomem medidas preventivas, como exigir que os bancos reforcem o capital ou adoptem medidas de gestão de riscos mais robustas. Ao exigir a manutenção de um nível adequado de capital face aos riscos incorridos, o BCV estará a reduzir a probabilidade de insolvência e a contribuir para a estabilidade financeira. Em suma, a supervisão desempenha um papel de relevo na prevenção de crises financeiras, através da exigência de cumprimento de requisitos mínimos de capital, da avaliação de riscos, dos testes de stress, da monitorização da liquidez, da boa governança e da regulação.
Quais são os critérios para avaliar a saúde financeira de um banco?
A avaliação da saúde financeira de um banco envolve a análise dos vários indicadores financeiros e prudenciais mencionados anteriormente. O capital é um dos principais critérios para avaliar a saúde financeira de um banco. Os indicadores de capital são utilizados para avaliar a solidez do capital em relação aos riscos assumidos e quanto maior o indicador de capital, maior a capacidade do banco de absorver perdas. A qualidade dos activos do banco, que determina a qualidade dos empréstimos concedidos relativamente à capacidade de pagamento da dívida, é outro indicador crucial para medir a sua saúde financeira, uma vez que permite identificar potenciais riscos e perdas. Note-se, igualmente, que a posição de liquidez do banco, que analisa a capacidade deste de cumprir as suas obrigações de pagamento, no curto prazo, é um outro importante indicador. Para além desses indicadores prudenciais, destacam-se outros financeiros, como o retorno sobre o património líquido (ROE), o retorno sobre os ativos (ROA), utilizados para medir a eficiência e a lucratividade do banco, e a alavancagem que determina o seu grau de endividamento e a sua capacidade de absorver perdas.
Quais são as principais ferramentas utilizadas na supervisão bancária para identificar e aliviar riscos sistémicos?
Riscos sistémicos são, por definição, decorrentes das interligações e da interdependência entre os agentes (bancos e outras instituições financeiras) de um sistema ou mercado, no qual a insolvência ou falência de uma única entidade ou grupo de entidades pode provocar falências em cadeia. Existem técnicas estatísticas diversas para identificar um risco sistémico como, por exemplo, a análise das covariações, o método do Systemic Expected Shortfall (SES), bem como modelos baseados nas Credit Default Swaps (CDS). Igualmente recorre-se à criação de índices de risco sistémico e à definição de um limite, a partir do qual o risco é considerado sistémico. Importa o profundo conhecimento das instituições e das formas de interconexão entre elas. Um mapeamento exaustivo é o primeiro passo. O segundo passo consiste na identificação da importância de cada instituição no sistema. Quanto mais importante for, isto é, possuir natureza sistémica, maior é o risco de um stress financeiro nessa instituição se propagar a outras ou a todo o sistema financeiro. Para mitigar o potencial impacto do risco sistémico, uma das ferramentas é a regulação financeira, em princípio mais exigente para as instituições sistémicas. Neste âmbito, exige-se às instituições de importância sistémica requisitos de fundos próprios mais elevados. Por outro lado, pode-se estabelecer outras medidas, tais como, limites de exposição a determinada classe de activos, a exigência de maiores níveis de garantias, relativamente ao valor do empréstimo.
De que forma a supervisão bancária contribui para a proteção dos clientes e a prevenção de práticas abusivas por parte das instituições financeiras?
A supervisão de conduta do mercado financeiro exercida pelo BCV, enquanto autoridade de regulação e supervisão do sistema financeiro, assenta, essencialmente, na fiscalização da transparência da informação sobre os produtos financeiros comercializados e na proteção do consumidor financeiro, regulando o sector financeiro e dotando o consumidor de conhecimentos bastantes para a tomada de decisões financeiras conscientes. A supervisão de conduta depara-se diariamente com grandes desafios: lidar com as questões decorrentes de transações transfronteiriças, uma vez que nestas podem existir custos não devidamente identificados e, eventualmente, excessivos; promover uma progressiva convergência de práticas de supervisão de conduta com vista a alinhar com as que melhor preservem a proteção dos clientes; assegurar que é prestada aos consumidores informação que permita uma comparação fácil e eficaz, tanto sobre as características dos produtos como dos respectivos custos; monitorizar as situações de vulnerabilidade dos consumidores, especialmente em transações complexas; e evitar situações de exclusão de determinadas camadas da sociedade, sobretudo as motivadas por desconhecimento do funcionamento das aplicações digitais. Na proteção do consumidor financeiro, nas situações de conflito, cabe ao BCV dirimi-las por via da análise das reclamações dos clientes de produtos e serviços financeiros ao mesmo tempo que, por via desta análise, o BCV fiscaliza o cumprimento das normas pelas Instituições Financeiras (IF) e identifica as situações que carecem de intervenção por parte do supervisor. Em caso de incumprimento, cabe ao BCV zelar pela sanação dos incumprimentos detectados, o que pode passar, inclusive, pela aplicação de medidas sancionatórias. Uma outra forma de proteção do consumidor financeiro passa pelas acções de formação/sensibilização financeira levadas a cabo pelo BCV, incluindo ações relativas à literacia financeira e digital. Particularmente neste contexto, é importante que os cidadãos tenham atitudes e comportamentos adequados quando tomam decisões sobre as suas finanças pessoais.
E no caso do mercado de capitais, como garante a protecção dos interesses dos investidores?
A supervisão do mercado de capitais é exercida autonomamente pela Auditoria Geral do Mercado de Valores Mobiliários (AGMVM), em conformidade com o disposto no Código do Mercado de Valores Mobiliários. Neste âmbito, a proteção dos interesses dos investidores pela AGMVM é feita através da criação de regras (normativos legais) e adopção de um quadro de supervisão que garantam: uma adequada mitigação dos riscos de crédito, entre outros riscos de contraparte, de liquidez (ou seja, da capacidade/condições de liquidação dos instrumentos mobiliários na posse dos investidores), operacional (a nível do funcionamento das plataformas de suporte às emissões, custódia e liquidação); e que os mercados operem de forma lícita, justa, eficiente e transparente, para, por um lado, reduzir a probabilidade de abuso de informação privilegiada e outras formas de manipulação do mercado, bem como do uso do mercado para a lavagem de capitais, financiamento do terrorismo e da proliferação de armas de destruição em massa, e, por outro lado, assegurar a adequada publicidade e comunicação das emissões, dos instrumentos financeiros subjacentes, permitindo aos investidores formarem o apropriado juízo sobre o investimento que pretendem fazer e os riscos associados.
Como se adapta a supervisão bancária às evoluções tecnológicas no sector financeiro, como a crescente digitalização dos serviços bancários?
A supervisão bancária deve adaptar-se às evoluções tecnológicas, essencialmente, assegurando que tais evoluções não coloquem em causa a integridade e a estabilidade do sistema financeiro. O Supervisor deve, neste âmbito, designadamente, (i) adoptar uma abordagem baseada nos riscos e tecnologicamente neutra, eliminando eventuais inibidores da inovação tecnológica; (ii) conferir igual tratamento entre incumbentes e novos entrantes, com base no princípio “same risks, same rules, and same supervision”; (iii) monitorizar continuamente os riscos associados aos novos modelos de negócio, adoptando iniciativas regulatórias e de supervisão adequadas, de modo a evitar a “regulatory arbitrage”; (iv) reforçar o seu quadro técnico, modificando a sua estratégia de recrutamento e/ou capacitá-lo, para que possa perceber os novos modelos de negócio; (v) promover o diálogo com os players do mercado financeiro; e (vi) reforçar a cooperação com autoridades congéneres, nesta matéria.
As autoridades de supervisão devem assumir um papel activo no ecossistema digital? Porquê?
As Autoridades de Regulação e de Supervisão devem exercer um papel activo na promoção da inovação financeira, através da regulação e de iniciativas como as innovation hub, por exemplo. A inovação financeira tem o potencial de, nomeadamente (i) melhorar o acesso aos serviços financeiros; (ii) melhorar a eficiência e a concorrência; (iii) reduzir as assimetrias de informação financeira; (iv) e melhorar os processos de compliance nas instituições financeiras (RegTech). As inovações em curso e o progresso da tecnologia têm contribuído para o desenvolvimento económico e o crescimento solidário, facilitando os pagamentos, a recepção e o envio de fundos, o acesso ao crédito, simplificando e reforçando os processos de conformidade e de supervisão (SupTech). Nesta conformidade, face aos benefícios, sobretudo para os que não têm acesso aos serviços financeiros, várias organizações internacionais relevantes têm recomendado que as autoridades competentes, supervisores e decisores de política, promovam a inovação, estando cientes, no entanto, que o avanço rápido da tecnologia traz consigo também riscos.
Considera que o supervisor é rápido o suficiente a responder às inovações que vão surgindo? Ou fica demasiado enredado em burocracias legais que já não respondem aos novos tempos?
O Banco de Cabo Verde tem acompanhado, na medida do possível, o desenvolvimento das inovações que têm surgido, tendo participado recentemente na formulação do diploma sobre a prestação de serviços com activos virtuais e a constituição de bancos digitais. Na mesma senda, o BCV participou activamente na nova regulamentação do mercado de pagamentos, um ambiente propício à inovação. Como é natural, o supervisor tem que acompanhar, de forma activa, as actividades associadas à digitalização, sem constituir-se num obstáculo ao desenvolvimento das inovações, mas com a necessária preocupação da estabilidade e integridade do sistema financeiro. Dificilmente o regulador está à frente no que diz respeito às inovações, mas deve estar a acompanhar e a regular, se necessário, toda a inovação. Esse acompanhamento pressupõe, obviamente, a devida capacitação dos seus quadros técnicos, recursos financeiros e tecnológicos, para uma efectiva regulação e supervisão dessas inovações.
Conseguem acompanhar, de forma coordenada, todos os mercados, de capitais, bancários e seguradores?
Como referido anteriormente, o mercado de capitais é regulado e supervisionado por uma outra autoridade administrativa independente que funciona junto do Banco de Cabo Verde e na dependência do Governador. Este modelo, ou seja, o facto de a Auditoria Geral do Mercado de Valores Mobiliários, autoridade competente para a supervisão e regulação dos mercados de capitais, funcionar junto do Banco de Cabo Verde, facilita a cooperação, a coordenação de políticas, e a troca de informações entre as duas entidades. Por seu turno, optou-se por um supervisor único para os sectores bancário e segurador, pela própria dimensão do mercado financeiro cabo-verdiano, não se justificando, por ora, um modelo institucional assente em três entidades diferentes. O facto do Banco de Cabo Verde desempenhar as funções de autoridade de regulação e supervisão dos sectores bancário e segurador permite que, enquanto supervisor, tenha uma visão mais transversal e holística de todo o mercado financeiro e, claro, facilita a coordenação de políticas entre os diferentes sectores. Portanto, este modelo de supervisor único para os sectores bancário e segurador, coexistindo com uma autoridade independente que funciona junto do Banco de Cabo Verde, facilita o acompanhamento, de forma coordenada, dos diferentes sectores.
Quais são os principais riscos que a supervisão do sistema financeiro procura mitigar?
A supervisão ao nível microprudencial procura identificar, acompanhar e avaliar os riscos a que cada instituição financeira, individualmente, está sujeita, nomeadamente os riscos de crédito, de liquidez, de taxa de juro, de taxa de câmbio, de lavagem de capitais e do financiamento do terrorismo, de alavancagem excessiva, o risco operacional, etc. Ao nível macroprudencial, a Supervisão tem como foco a saúde do sistema financeiro como um todo, procurando identificar, acompanhar e avaliar as vulnerabilidades e os riscos actuais e futuros, em cenários mais prováveis e em cenários mais adversos, isto é, identifica, acompanha e avalia os riscos sistémicos. Neste âmbito, analisam-se factores como interligações entre as instituições do sistema financeiro, as exposições ao mesmo factor de risco (sector, entidade), entre outros, com o foco na preservação da estabilidade do sistema financeiro.
Quais são as consequências de uma supervisão ineficiente do sistema financeiro?
A regulação do sistema financeiro assenta nos pilares da promoção da confiança, solidez e estabilidade do sistema financeiro, de modo a favorecer a eficiente captação de poupanças e a promoção do desenvolvimento económico. Uma supervisão ineficiente pode acarretar a perda da confiança e a ineficiente captação de poupanças, seja através de aforadores, seja através de investidores, o que poderá pôr em causa o desenvolvimento económico e social. Por seu turno, poderá pôr em causa o nível adequado de capitalização das instituições financeiras que integram o sistema financeiro, a livre e sã concorrência nos mercados, podendo ameaçar a integridade e a estabilidade do sistema financeiro. Para tanto, há que assegurar uma supervisão eficaz pelas autoridades competentes, tanto ao nível prudencial como comportamental, baseada, designadamente numa legislação robusta, na realização de exames regulares, na divulgação, pelas instituições financeiras, de informação tempestiva, exata, comparável e credível, etc.
Há alguma competência de supervisão que considera que deve sair do Banco de Cabo Verde?
Como já mencionado anteriormente, a dimensão do país e do seu mercado financeiro poderão não justificar, por ora, um modelo institucional assente em três ou mais autoridades de regulação e de supervisão do sector financeiro. As competências de supervisão são atribuídas pelos decisores políticos, e estes poderão, considerando a dimensão do país, não querer constituir autoridades de regulação e de supervisão para outros sectores, como por exemplo o sector das microfinanças. Nesta conformidade, é necessário que se garanta/reforce a autonomia do Banco central, quer institucional, quer financeira, de modo que este possa continuar a exercer de forma independente as suas competências em matéria de regulação e supervisão. Não obstante, algumas competências, não necessariamente de supervisão, possam ser atribuídas a outras entidades recentemente constituídas, nomeadamente a de autoridade da concorrência no sistema financeiro.
Como vê o futuro da supervisão ligada ao setor bancário e financeiro?
O alargamento do mandato do Banco central, como autoridade de supervisão macroprudencial e de resolução, atribuições que passarão a estar consagradas, expressamente, na nova Lei Orgânica do Banco de Cabo Verde, trará novos desafios, mormente em matéria de definição de políticas e de supervisão a nível macroprudencial. Por seu turno, a digitalização e os novos serviços financeiros baseados na tecnologia têm o potencial de gerar benefícios e oportunidades. No entanto, o Banco de Cabo Verde não pode descurar dos riscos associados às novas tecnologias, nomeadamente o risco cibernético, devendo reforçar a sua missão de preservar a estabilidade e integridade do sistema financeiro. O Banco de Cabo Verde deverá, assim, adequar os seus instrumentos de supervisão à nova realidade digital. O futuro passa, por sua vez, pela integração dos factores (Environmental, Social and Governance – ESG) no âmbito da supervisão do sector financeiro, nomeadamente passando a se exigir que as instituições financeiras: (i) identifiquem, avaliem e adoptem medidas de mitigação dos riscos climáticos (físicos e de transição); (ii) integrem considerações climáticas nas suas estratégias e políticas de gestão de risco; (iii) introduzam o risco climático nos seus testes de stress; (iv) divulguem informações sobre os riscos ESG, designadamente nos seus relatórios de governo societário.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1129 de 19 de Julho de 2023.