Governador do Banco de Cabo Verde em desacordo com o Banco Mundial sobre cansaço do modelo de desenvolvimento

PorJorge Montezinho,19 ago 2023 11:39

É a confirmação do valor histórico de crescimento económico em Cabo Verde: 17,7% em 2022, como mostra o relatório do estado da economia, publicado pelo BCV. Governador do Banco Central prevê que o país continue a crescer de forma moderada em 2023 e 2024 e, em entrevista à TCV, disse não concordar com a apreciação do Banco Mundial sobre o esgotamento do modelo de desenvolvimento do arquipélago.

“A economia nacional em 2022 registou um desempenho histórico, superando os níveis pré-pandémicos”, refere o relatório do Banco de Cabo Verde. As principais razões para este resultado foram a retoma do turismo e as medidas políticas adoptadas em Março de 2022 para compensar os efeitos da subida dos preços dos combustíveis e dos bens de primeira necessidade.

“Sabemos que a economia cabo-verdiana durante um certo período – 2010 a 2015 – praticamente não cresceu”, disse o governador do BCV em entrevista à TCV. “Começa a crescer em 2016 e teve uma depressão em 2020 por causa da Covid. Começa a recuperar em 2021 e em 2022 teve um desempenho histórico, fruto da recuperação mais rápida de dois sectores ligados ao turismo: os transportes e a restauração”.

Esta tendência deverá manter-se, acredita Óscar Santos, mas de forma mais moderada, tanto este ano como em 2024.

De acordo com as estimativas trimestrais das contas nacionais do Instituto Nacional de Estatística (INE), o Produto interno Bruto (PIB) em volume cresceu em 2022, 17,7% (6,8% em 2021).

Este resultado, diz o relatório do BCV, do lado da oferta, foi determinado pelos aumentos registados no valor acrescentado bruto dos sectores de alojamento e restauração (264,4%), transportes e armazenagem (45,8%), comércio e reparação (34,2%), assim como nos impostos líquidos de subsídios (29,4%).

A procura turística (medida pelo número de entradas de turistas internacionais nos estabelecimentos hoteleiros do país) cresceu 481,5% (-24,9% em 2021), e a movimentação de passageiros nos aeroportos e aeródromos, nos portos e nos autocarros de Cabo Verde registou acréscimos de, respectivamente, 162,3%, 24,6% e 9,1%.

No entanto, ainda em 2022, houve uma desaceleração no ritmo de crescimento do valor acrescentado bruto dos sectores da construção (-30,2%), das atividades imobiliárias (-1,3%) e da indústria transformadora (-6,7%), devido às limitações persistentes na oferta, aos problemas no acesso a determinados bens intermédios e ao aumento dos custos de produção.

Do lado da procura, a evolução da economia nacional, em 2022, foi determinada pelos contributos positivos, tanto da procura externa líquida como da procura interna.

A procura externa líquida registou uma “significativa melhoria”, com as exportações a crescerem 100,7%, um ritmo muito superior às importações, em 13,1%. “O desempenho muito positivo das exportações de serviços, sobretudo de viagens de turismo, num contexto de aumento da procura turística no país, bem como das exportações de bens justificam a evolução das exportações”, sublinha o relatório do BCV.

Apesar do perfil em geral decrescente da confiança dos consumidores e do abrandamento do rendimento disponível das famílias – em resultado principalmente da moderação no crescimento das outras transferências correntes líquidas (particularmente, das remessas de emigrantes), da redução das prestações sociais e da elevada inflação no país – o consumo privado cresceu 28,3 por cento em 2022.

A actividade turística em 2022

A actividade turística nacional evidenciou, em 2022, um desempenho bastante favorável, atingindo os níveis pré-pandémicos.

Depois das quebras de 2020 (76,3%) e de 2021 (24,9%) a procura turística internacional registou uma forte recuperação, crescendo 481,5% em 2022, atingindo os 785.272 turistas.

Esta performance nacional foi superior ao desempenho mundial do sector, que teve mais uma queda de 34% em 2022. Os destinos mais procurados em 2022 foram a Espanha, os EUA, a Turquia, Itália e o México.

O número de dormidas no país também registou uma recuperação, crescendo 425,7% face a 2021, reflexo do aumento registado em todos os mercados emissores, com destaque, para o Reino Unido (1.403,9%), Alemanha (371,4%) e Países Baixos (506,3%). O principal mercado emissor, no ano passado, passou a ser novamente o Reino Unido (em 2021, foi Portugal) com 36,6% do total da procura turística, seguido de Alemanha com 13,1%, Países Baixos com 10,8% e Portugal com 9,6%.

As receitas brutas da actividade turística cresceram 209,7%, mas as receitas brutas por dormida caíram 41,1%, para os 10.729 escudos por dia.

As ilhas do Sal e da Boa Vista continuaram a ser o destino preferido dos turistas estrangeiros e nacionais, com as maiores taxas de ocupação do país, de respectivamente, 56% e 83%. Ambas as ilhas acolheram 92,6% do total da procura turística, que se concentrou, em grande medida, no terceiro e quarto trimestres do ano.

Inflação

As taxas de inflação em Cabo Verde aumentaram significativamente em 2022, atingindo os níveis mais altos dos últimos 20 anos, por causa das pressões inflacionistas decorrentes da recuperação da procura (principalmente no sector de serviços) e das limitações persistentes na oferta causadas pela guerra na Ucrânia, bem como do aumento dos preços das matérias-primas energéticas e não energéticas (sobretudo alimentares) no mercado internacional.

A taxa de inflação média dos últimos doze meses aumentou de 1,9% em 2021 para 7,9% em 2022.

A taxa de inflação homóloga aumentou para 7,6% em 2022 (5,4% em 2021), isto apesar de ter dado sinais de um abrandamento desde Agosto de 2022, uma redução favorecida pela evolução dos preços do gás e da eletricidade, progresso esse que é o resultado, em parte, do impacto das medidas adotadas pelo governo em Março de 2022 para compensar os efeitos dos preços elevados dos produtos energéticos (limite de ajustamento em alta e congelamento de preços de alguns bens).

Este aumento da inflação, traduziu principalmente, o aumento dos preços das classes de “Produtos alimentares e bebidas não alcoólicas” (15,7%), “Transportes” (11,1%) e “Habitação, água, eletricidade, gás e outros combustíveis” (4,1%).

A inflação da classe de “Produtos Alimentares e bebidas não alcoólicas” deveu-se ao aumento generalizado dos preços, com particular destaque, dos preços de “Matérias gordas” (45%), “Açúcar, compota, mel, chocolate e produtos de confeitaria” (24,2%), “Café, chá e cacau” (23,2%), “leite, queijo e ovos” (18,1%) e “Produtos hortícolas” (15,9%).

Já a inflação das classes de “Transportes” e “Habitação, água, eletricidade, gás e outros combustíveis” resultou do aumento dos preços de “Combustíveis líquidos” (80,7%), “Combustível e lubrificantes para equipamento para transporte pessoal” (40,7%), “Gás” (17,7%) e “Eletricidade” (16,1%), reflexo da transmissão dos preços internacionais das matérias-primas energéticas aos preços internos.

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“A inflação vai estabilizar com o tempo e as pessoas vão começar a sentir essa descida”, disse o governador do Banco Central. “O perfil da inflação é descendente por causa da desinflação de uma série de produtos, mas mesmo assim as pessoas podem ainda não o sentir, porque o nível médio dos preços mantém-se mais elevado do que antes da pandemia. O que isso significa? Vai levar algum tempo até que o preço médio dos produtos atinja um nível mais confortável para que as pessoas possam sentir que o nível de vida melhorou”, resumiu Óscar Santos.

O modelo de desenvolvimento esgotado

No final do mês passado, um documento do Banco Mundial referia que o modelo de desenvolvimento cabo-verdiano apresentava sinais de fadiga desde 2008. O memorando comparava também o desempenho de Cabo Verde com outros Pequenos Estados Insulares (SIDS, na sigla em inglês) em Desenvolvimento e chegava à conclusão que o país tem uma produtividade muito baixa em relação aos outros estados insulares.

O memorando – Navegar em Mares Agitados: Acelerar o Crescimento e Fomentar a Resiliência às Alterações Climáticas – dividia os outros Pequenos Estados Insulares em pares estruturais (Samoa, São Tomé e Príncipe e Vanuatu) e pares aspiracionais (Maurícias, Seychelles, St. Kitts e Nevis e Santa Lúcia) [os pares estruturais são países que partilham características económicas e dotações semelhantes, enquanto os pares aspiracionais são países que conseguiram crescer de forma mais rápida e sustentável do que Cabo Verde, apesar de partilharem condições estruturais semelhantes].

Em termos comparativos, Cabo Verde, dizia o Banco Mundial tem poucas “dotações de factores” que podem contribuir para o crescimento económico [os factores em que cada país é abundante para poder direcionar os seus esforços para a produção de determinados bens]. Desde a independência, o capital social per capita de Cabo Verde diminuiu em relação aos seus pares aspiracionais, bem como em relação à média dos Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento. Em média, entre 1975 e 2005, o stock de capital per capita de Cabo Verde cresceu 3,8% por ano, enquanto nos países pares aspiracionais cresceu 7,1%, e 5,1% nos SIDS.

“No relatório, chamamos a atenção para a produtividade total dos factores. O Banco Mundial refere-se ao esgotamento do modelo nós não vamos tão longe e não falamos em esgotamento de modelo”, sublinhou o governador do Banco Central.

No relatório, há um parágrafo que diz que “análises tecnicamente robustas mostram que, não obstante uma melhoria na produtividade total dos factores face aos dois últimos anos, o potencial de crescimento da economia está ainda condicionado por níveis baixos da produtividade total dos factores”. E explica que “a expansão da produtividade total dos factores (PTF) reflecte a capacidade de uma economia crescer para além da acumulação dos factores produtivos capital e trabalho e é normalmente estimada como parte de um exercício de contabilidade do crescimento. Se assumirmos que todas as economias podem ter acesso à mesma tecnologia é possível estimar uma fronteira internacional de produção e decompor a PTF como o contributo do progresso tecnológico e das variações na eficiência. O progresso tecnológico corresponde a técnicas mais produtivas, por exemplo associadas a inovações, enquanto as melhorias na eficiência correspondem a melhores arranjos institucionais e organizacionais, ou seja, um uso mais eficiente do nível de factores produtivos existente e da tecnologia”.

“O que referimos”, disse Óscar Santos, “é que quando o país persegue uma estratégia com base na formação bruta de capital – investimento – e esquece outras variáveis, como a tecnologia, isso tem impacto na produtividade e o crescimento económico poderá chegar a um ponto de rendimento decrescente”.

“Não estou de acordo com a questão do esgotamento”, reiterou o governador do Banco Central, “mas é preciso dar mais atenção a esse componente que é muito importante como a tecnologia, é isso que permite aos países crescer continuamente, mesmo que não haja aumento de capital e do factor trabalho”.

Nas últimas três décadas, o crescimento abrandou e é muito mais instável do que em países comparáveis. A taxa de crescimento anual de Cabo Verde caiu de uma média de 10,1% na década de 1990 para 7,2% na década de 2000, e para 1,2% na década de 2010. No entanto, a volatilidade do crescimento manteve-se estável.

Já a produtividade em Cabo Verde é baixa e cresce lentamente, disse o Banco Mundial. “Esta situação é preocupante dado o baixo nível inicial e as anteriores taxas negativas de crescimento homólogas em 2009-10 e 2013-15”, referia o memorando.

A produtividade diminuiu significativamente na agricultura, enquanto a indústria registou um crescimento positivo muito forte em 2016-2019. No entanto, a produtividade no sector dos serviços, que constitui a maior parte da economia, cresceu apenas 0,7%. O país não conseguiu alcançar os seus pares aspiracionais, e está mais atrasado: em 2009, a produtividade do trabalho de Cabo Verde era de 42% do nível dos seus pares, mas tinha recuado para 39% em 2019.

A baixa produtividade de Cabo Verde limita o potencial da economia. Entre os países pares de Cabo Verde, apenas São Tomé e Príncipe tem uma produtividade mundial ligeiramente inferior, medida pelo valor acrescentado por trabalhador. Em média, uma firma em Cabo Verde precisa de 2,5 vezes mais trabalhadores para produzir o mesmo que os homólogos pares aspiracionais, e de 1,5 vezes mais do que os pares estruturais. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1133 de 16 de Agosto de 2023.

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Autoria:Jorge Montezinho,19 ago 2023 11:39

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  8 mai 2024 23:28

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