Capitais negativos não impedem o normal funcionamento

PorJorge Montezinho,17 ago 2024 8:36

PAICV acusou o governo de pôr em causa a autonomia do Banco Central ao não cobrir o saldo negativo da instituição. Já o governo diz que foi o único a capitalizar o BCV, desde 2010, mas a pandemia travou mais financiamentos. Bancos centrais com capital negativo – apesar de ser uma situação incomum e controversa – há vários no mundo e podem continuar a operar normalmente.

O governo e o maior partido da oposição envolveram-se numa troca de acusações sobre quem tirou mais autonomia ao Banco de Cabo Verde nos últimos anos. Começou o PAICV, quando o secretário-geral do partido afirmou que o Executivo tem agido de forma propositada para fragilizar a instituição, comprometendo a estabilidade macroeconómica do país. Julião Varela disse não ser “admissível” que o Banco de Cabo Verde funcione desde 2017 com capitais próprios negativos.

“No momento em que alguns até já falam de excedente orçamental, ninguém consegue perceber a razão do incumprimento da lei orgânica do Banco de Verde por parte deste Governo, em não repor os capitais próprios do banco central desde 2017”, disse Varela.

O secretário-geral do PAICV, sublinhou ainda que capitais próprios negativos têm várias consequências, como a perda de confiança, “que pode minar a confiança do público e dos mercados financeiros”, dificuldades em realizar operações de mercado aberto por parte do Banco Central e efeitos na política monetária, “podendo limitar a capacidade do banco central de implementar políticas monetárias expansivas”.

Cenário não é inédito

No ano passado, vários bancos centrais das maiores economias do mundo reportaram prejuízos significativos ou alertaram para a possibilidade de verificarem perdas avultadas nos próximos anos. O Banco Nacional da Suíça registou em 2022 um prejuízo de 135 mil milhões de euros, a maior perda em 116 anos de história, equivalente a mais de 15% do seu PIB. O Banco Central da Austrália anunciou perdas de 36,7 mil milhões de dólares australianos, que acabaram com as reservas de capital do banco central. E a Reserva Federal norte-americana antecipou que poderá ter resultados negativos nos próximos 3 a 4 anos.

Já este ano, o Banco Central Europeu apresentou prejuízos superiores a mil milhões de euros. Aliás, há 20 anos que o BCE não reportava perdas anuais, que resultam do impacto da subida da taxa de juro que determinou para toda a zona euro. Não há, portanto, dividendos para os bancos centrais nacionais.

A geração e a acumulação de perdas por parte dos bancos centrais colocam, inegavelmente, desafios, pelos potenciais impactos na sua credibilidade e, em última análise, na sua independência. Mas não coloca problemas à continuação da sua actividade. Sinaliza, sim, a sua natureza ímpar no quadro institucional da sociedade.

O objectivo dos bancos centrais não é gerar lucros, ainda que devam ser geridos com rigor e transparência. Ao contrário dos bancos comerciais, os bancos centrais não concedem empréstimos nem recebem depósitos do público. Os bancos centrais actuam com objectivos de interesse público, traduzidos no mandato que lhes foi atribuído de garantir a estabilidade de preços e a estabilidade financeira. Os seus resultados são consequência directa da implementação de políticas que visam alcançar estes objectivos.

Situação vem de 2010

O governo, em comunicado, reagiu às críticas do maior partido da oposição ao sublinhar que os capitais próprios negativos do Banco Central, “desde o ano de 2010”, estão relacionados com a diminuição da rentabilidade das reservas internacionais líquidas, que são influenciadas pelas orientações de política monetária do Banco Central Europeu, por causa do regime cambial vigente desde 1998. “Com a crise financeira de 2008 e nos anos seguintes, a rentabilidade das reservas cambiais diminuiu consideravelmente, impactando negativamente nos resultados do Banco e, consequentemente, no seu capital próprio”, explicou o Executivo.

O governo disse ainda que, em 2019, cumpriu, “pela primeira vez”, o que está escrito na Lei Orgânica do Banco Central, capitalizando-o em setecentos milhões de escudos, “algo que o Governo anterior não havia feito”. Entretanto, essa capitalização foi interrompida devido à crise provocada pela pandemia.

No mesmo comunicado é referido que desde 2021, o capital próprio do Banco vem apresentando melhoria significativa. Os últimos números, de Julho de 2024, mostram que o capital próprio do Banco de Cabo Verde é de 1.792.072 milhares de ECV negativos, “uma variação positiva de 64%, relativamente a Dezembro de 2020”.

Além disso, refere o governo, se a autonomia do Banco Central estivesse em causa, “este facto estaria mencionado nas avaliações do Fundo Monetário Internacional (FMI), no quadro dos programas que o país mantém com a instituição de Bretton Woods”.

Situação patrimonial e financeira

Como explica a literatura especializada, para lidar com o capital negativo, os bancos centrais podem: reter lucros futuros para reconstruir o capital, receber injeções de capital do governo, ou utilizar medidas contábeis para compensar as perdas. Em resumo, embora o capital negativo não seja o ideal e possa representar riscos para a credibilidade de um banco central, isso não impede necessariamente o banco central de cumprir suas funções primárias. Apesar do capital negativo, os bancos centrais ainda podem funcionar, pois podem criar dinheiro, e a capacidade de conduzir a política monetária não é necessariamente prejudicada.

O Banco de Cabo Verde não emitiu qualquer comentário. No último Relatório sobre a Situação Patrimonial e Financeira, o BCV refere que no final do primeiro semestre, de 2024, o Balanço do Banco de Cabo Verde apresentava um activo líquido de 94.912.395 milhares de escudos e um passivo de 96.927.228 milhares de escudos. O capital próprio fixou-se em 2.014.833 milhares de escudos negativos.

“O activo apresentava um decréscimo de 3,13%, face ao início do ano, em resultado, sobretudo, da diminuição das reservas cambiais, determinada pela venda líquida de divisas às instituições de crédito, no âmbito da execução das políticas monetária e cambial, e pelos pagamentos sobre o exterior de responsabilidade do Estado de Cabo Verde, bem como a redução dos activos relacionados com a política monetária”, lê-se. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1185 de 14 de Agosto de 2024.

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Autoria:Jorge Montezinho,17 ago 2024 8:36

Editado porFretson Rocha  em  20 nov 2024 23:25

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