“A falta de consenso político é um travão ao desenvolvimento”

PorJorge Montezinho,5 out 2024 8:27

O economista João Estêvão esteve no Sal, a participar no Ciclo de Conferências sobre os 50 anos da Independência de Cabo Verde, onde apresentou o tema Desenvolvimento Sustentável da Economia e Inclusão Social: desafios e perspetivas e fez uma leitura comparada da evolução de Cabo Verde e de uma amostra de Pequenos Estados Insulares, assim como explicou o desempenho da economia cabo-verdiana e os desafios que se colocam. Entre os destaques, a incapacidade que o país tem de criar um mercado interno, a diferença de rendimento por habitante entre Cabo Verde – muito atrasado – e os outros estados insulares e, acima de tudo, a falta de uma política que una todos os actores.

Como podemos analisar o crescimento – ou a falta dele – da economia cabo-verdiana?

O crescimento que vem no decorrer do turismo esgota-se a partir de certa altura. Em Cabo Verde houve também uma quebra muito grande na actividade industrial e isso não ajuda a continuidade do processo de crescimento. Eu penso que em Cabo Verde não se tem sabido aproveitar a dinâmica do turismo. O turismo poderia ter um efeito de arrastamento maior na economia cabo-verdiana se as coisas tivessem sido organizadas para isso acontecer. Repare que a actividade turística continua a ser toda dependente das importações do exterior. E a questão é essa. Não se conseguiu trazer esse efeito de arrastamento.

Porquê?

Por vários motivos. Por um lado, porque não há um elo de ligação entre a procura de bens locais e a produção de bens locais. O pequeno agricultor de Santo Antão ou de Santiago não tem capacidade para chegar à procura desses bens. E para a actividade hoteleira é mais fácil manter o processo de importação do exterior do que tentar ir buscar, ao interior, essa produção. Porque quando há uma grande procura de uma produção, a oferta tem que ser constante, tem que ser permanente e obedecer a essa qualidade. E a hotelaria não considera que isso existe em Cabo Verde.

Algo falhou então.

Se em Cabo Verde estivessem criadas infraestruturas para a organização do mercado interno, se houvesse estruturas logísticas que fizessem intermediação, essas estruturas sabiam qual era a procura dos hotéis e procuravam a produção local. Naturalmente que o apoio do Estado teria de ser importante, para que se organizasse uma produção adequada para a procura dos hotéis. Além disso, há outros aspectos, como a questão dos transportes. O transporte dos bens teria que ser garantido com permanência, não se pode ter de ficar não sei quanto tempo à espera. O grande problema, para mim, e essa é a minha tese de há muito, é que Cabo Verde não tem sabido organizar a sua economia interna de forma a articular as ilhas. Não fazendo isso, uma ilha não tem capacidade de colocar noutras os seus produtos e vice-versa. Isso é um dos grandes problemas, na minha opinião. É a questão da diversificação vertical da economia. A partir de um motor, construir outras actividades que vão fornecer esse motor. Se isso funcionasse as coisas estariam melhor. Agora, nós temos um turismo que vive da importação fundamentalmente e que tem um processo que é muito desligado da população. As pessoas que vão para o tudo incluído, estão no hotel, almoçam no hotel, vão para a praia, voltam, jantam no hotel.

Foi aquilo que disse na sua apresentação, todas as ilhas têm que contribuir para a economia do país, mas isso neste momento não está a acontecer, porque há uma grande discrepância na produção por habitante entre Sal e Boa Vista e todas as outras. Está a ver este cenário a mudar?

Para esse cenário mudar é preciso que haja políticas públicas para isso. É preciso que se criem condições para isso. Se não se criarem, não muda. Como disse há pouco: há necessidade de infraestruturas. É preciso haver portos e transportes para isso acontecer, é preciso haver uma organização logística. É, inclusive, preciso pensar a agricultura. É possível em zonas de grande produção agrícola procurar ter água ou preparar água para apoiar a actividade agrícola e não ficar dependendo das chuvas. Ficar dependente das chuvas é sempre incerto. O grande problema com a produção agrícola é encontrar meios para que ela seja possível de se realizar com estabilidade na produção, no tipo de produto que se faz, etc. Se não se fizer isso, é muito difícil. Mas não é só a agricultura. Imaginemos o seguinte. O país consome massas alimentícias. Se somar a necessidade das ilhas e a necessidade que os hotéis podem ter, porque não pensar em produzir massas alimentares? O mais problemático será a matéria-prima, mas pode-se arranjar. A actividade em si depois geraria lucros para permitir a importação da matéria-prima. O que eu quero dizer, no fundo, é que é preciso pensar Cabo Verde organizado de forma integrada. Se não fizermos isso, é muito difícil manter um patamar de crescimento que o turismo, num certo momento, projectou. Mas se não encontrarmos formas de sustentar e de ligar o crescimento do turismo com a actividade local, será muito difícil.

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Deu esse exemplo da produção de massas alimentícias, mas também sabemos que o país tem uma grande dificuldade em conseguir atrair investimento directo estrangeiro para a indústria. Porquê?

Provavelmente porque não há políticas para isso. Não há essa preocupação em sair e procurar aquilo que pode ser levado para Cabo Verde, que terá sempre a articulação em cadeias de produção. Cabo Verde não tem capacidade para estabelecer uma unidade industrial de per si, tem que ser em cadeia, é preciso atrair isso, ter capacidade política para sair e atrair esses investimentos. Isso é possível, não me parece que seja impossível. É possível mesmo através do grande parceiro que é a Europa. É possível ir buscar alguma actividade, desde que se criem as condições adequadas, na facilidade de criação de empresas e numa série de outras coisas. Penso que não se está a fazer tudo para isso, e devia-se estar a fazer. Em vez de se estar a pensar em grandes projectos, que muitas vezes são lançados e nunca os vemos, era possível pensar em actividades, dentro de uma cadeia produtiva, feitas em Cabo Verde e que permitissem a produção e a exportação e a criação de emprego, que é outro dos grandes problemas da economia cabo-verdiana.

Por falar em estratégias e em políticas, defendeu que o bipartidarismo cabo-verdiano é um grande travão ao desenvolvimento.

É um grande travão porque em Cabo Verde não se conseguem políticas estruturais com consenso. Isso é que era indispensável. Dei o exemplo de Portugal e da integração na União Europeia. A questão da Europa, e mesmo das relações externas, teve na base sempre um grande consenso entre o Partido Socialista e o Partido Social Democrata. Em Cabo Verde, se queremos fazer a tal política que referi, atrair investimento directo estrangeiro para actividades locais, é preciso consenso. Se Cabo Verde continua a viver nessa situação, vem um partido, eu não digo que se desfaz o que estava para trás, mas não dá continuidade ao que está a ser feito, isso é um problema. Também temos outro grande problema: a dificuldade de diálogo institucional. Um dos grandes factores do investimento estrangeiro é a estabilidade, a estabilidade das instituições e o facto de quem vai investir no país saber rapidamente que investe e se houver um problema há capacidade de discutir e resolver. Temos que ter instituições funcionais. A instituição judicial, por exemplo, é importante, porque o investidor quando chega e investe, cria um direito de propriedade que pode implicar questões judiciais. E é preciso que a instituição esteja a funcionar. As estruturas institucionais têm de funcionar adequadamente. Penso que é preciso, como disse há pouco, consenso nas grandes ideias, nas ideias de longo prazo, isso é preciso. O bipartidismo pode funcionar, mas acho que não está a funcionar em Cabo Verde. É um ponto de vista. Acho que não está a funcionar. E era preciso que funcionasse bem.

Outra questão que referiu, é que há a definição e a execução das políticas, mas estas depois nunca são avaliadas. Mudam-se as políticas sem saber se a anterior funcionou ou não.

Isso é um facto. A política económica implica diferentes graus: a concepção, a execução e a avaliação. Se nós aplicamos uma política, que dura algum tempo, periodicamente, essa política tem de ser avaliada para sabermos de que forma deverá ser melhorada essa execução. Ora, isso não acontece. Nunca se sabe nada. Não é possível saber se a política foi conseguida, até que ponto foi conseguida, etc., porque também não se criam os instrumentos de avaliação. Uma política, quando é concebida, estabelece um prazo, estabelece metas, quantifica essas metas e sabemos ao fim de algum tempo como é que se faz essa avaliação. Se não houver a matriz de avaliação, não podemos dizer se as coisas foram ou não foram bem executadas. Isso é fundamental. Há que criar uma cultura de avaliação dos programas, com uma cultura de consensualização das políticas. Isso é indispensável. Se não for assim, em minha opinião, muito dificilmente as coisas avançam tão bem como seria necessário.

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Não há avaliação das políticas, mas há dados que permitem descobrir uma série de problemas. Como comparar Cabo Verde com os outros países insulares. Em que Cabo Verde não está muito abaixo da média dos outros países insulares, como está cada vez a afastar-se mais. Porquê?

Utilizei alguns dados. Se olharmos para a actividade produtiva por habitante, Cabo Verde tem mantido o nível de afastamento ao longo do tempo. Onde se nota um afastamento grande é no rendimento por habitante. E no rendimento por habitante sei, por exemplo, que estudos do Banco de Cabo Verde mostram uma grande quebra na produtividade da economia cabo-verdiana. O relatório de 2023 do Banco Mundial sobre Cabo Verde também diz isso. Se a produtividade da economia estagna, se cresce menos que a produtividade dos outros países, isso vai ressentir-se no rendimento do habitante. A maior quebra no rendimento por habitante de Cabo Verde pode ser explicada pela dificuldade de crescimento da produtividade da economia cabo-verdiana. E isso é uma consequência, na minha opinião, da fraqueza da actividade industrial. Porque se se tivesse mantido um certo nível de actividade industrial, mesmo indústrias orientadas para o interior, como eu dei o exemplo das massas alimentícias, isso aumentaria a produtividade da economia cabo-verdiana.

No fundo, indústria é fundamental para melhorar o desempenho da produtividade?

Não esperar apenas que a actividade turística tenha esse efeito, mas sim que alguma actividade industrial seja adicionada para que a produtividade possa crescer. A actividade industrial implica naturalmente a introdução de novas tecnologias, a criação de emprego, a melhoria das tecnologias, isso tudo é possível no conjunto da actividade industrial. O país tem falado noutros novos sectores, mas até agora não se vê o efeito disso. Enquanto aquilo que é anunciado não acontece, não há melhoria do desempenho da produtividade. Mas se se conseguir avançar com uma série de actividades produtivas, que podem ser feitas, isso já ajuda. E claro, a produtividade será naturalmente melhorada se os anúncios que são feitos noutras áreas vierem a acontecer. Na área da chamada economia azul, etc., mas a questão é que falamos, continuamos a falar, mas o que é que está a acontecer realmente? O que é que está a ser lançado? É isso tudo que é preciso para melhorar a produtividade da nossa economia. Veja-se a tão falada economia azul. As Seychelles, há alguns anos, criaram uma comissão com pessoas da universidade, da actividade económica, e que tem estado a estudar a questão. Eles estão muitíssimo mais avançados do que Cabo Verde na compreensão do que pode ser a economia azul e do que pode ser realizada através da economia azul. E aqui está um outro problema que existe em Cabo Verde, o país não tem o apoio universitário, porque não tem universidade organizada para aquilo que deveria ser a interação entre a universidade e a economia. E isso também não é muito complicado. Se se pede à universidade: nós precisamos estudar isso. A universidade pode organizar uma equipa, pedir um apoio, uma coordenação internacional. As Seychelles fizeram isso. A universidade hoje pode funcionar em rede. Não é preciso ter estruturas avançadas, mas saber ir às redes internacionais buscar. É nestes aspectos que eu acho que Cabo Verde está muito atrasado.

Voltando à industrialização, também pode ajudar a resolver o problema da desigualdade? Isto quando sabemos que Cabo Verde é um dos quatro países mais desiguais entre as nações insulares.

Normalmente, a criação de emprego, ajuda, porque os empregos nas actividades industriais são melhor remunerados do que na actualidade acontece. Portanto, a criação de emprego ajuda. Por outro lado, a criação de emprego não só pode permitir melhores remunerações, mas pode também integrar na actividade produtiva pessoas que estão a ser desperdiçadas e que, tendo condições, não sairiam do país. Penso que um desenvolvimento devidamente integrado, um desenvolvimento que também tenha em conta a importância das actividades industriais, melhorará necessariamente a desigualdade económica, poderá proporcionar maior igualdade económica do que está a acontecer. Neste momento, temos o turismo, mas o que é que o turismo absorve, do ponto de vista de emprego? Algum emprego qualificado, mas muito emprego não qualificado. A actividade industrial poderá melhorar a captação de emprego qualificado e, portanto, melhorar as remunerações na economia.

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No entanto, em Cabo Verde é complicado criar emprego produtivo. Há alguma explicação para esta dificuldade?

A criação de emprego produtivo está ligado à captação da actividade industrial. É necessária essa captação. Imagine-se que, por exemplo, Cabo Verde conseguisse introduzir no ciclo de um determinado produto industrial uma parte que fosse produzida no arquipélago. Naturalmente que isso contribuiria para criar emprego. A dificuldade de criação de emprego está intimamente associada à dificuldade de lançamento de novas actividades ou de melhoria, eventualmente, de algumas que já existem. Estas coisas estão naturalmente encadeadas. Desde há algumas décadas, que nós sabemos que o desenvolvimento assenta em três dinâmicas importantes: transformação produtiva – e a transformação produtiva significa novas actividades produtivas e actividades, naturalmente, que sejam capazes de captar emprego – inovação técnica e criação de emprego. Ora, se nós não temos transformação produtiva, se nós não temos criação de actividades, se nós temos dificuldade em levar para Cabo Verde determinado tipo de actividades, isso também não ajuda muito o desenvolvimento tecnológico e a inovação tecnológica. Num certo momento em Cabo Verde, em que foram lançadas algumas actividades, no campo do têxtil, do calçado, etc., as estatísticas mostram uma melhoria. Portanto, a inovação está ligada a isso. E, naturalmente, a transformação produtiva tem que ser no sentido de criar emprego. Só a criação de emprego ajuda verdadeiramente a resolver o problema da desigualdade e da pobreza. Sem criação de emprego, isso não é possível.

Como disse, é sempre possível chegar a algum lado. É preciso é saber discutir esse caminho, tanto a nível interno como a nível externo. E neste momento, Cabo Verde precisa chegar a uma taxa de crescimento mais elevada.

Quando dizemos, por exemplo: queremos chegar à média do conjunto dos países insulares. Isso significa que tem que se caminhar muito mais depressa. Para isso, o país tinha que definir políticas adequadas. E essas políticas têm de ser consensualizadas. Definir políticas significa que, muito provavelmente, ou necessariamente, o país tem que saber negociar com o exterior para conseguir captar as actividades necessárias para o conjunto de políticas definidas. Chegar a algum lado significa pensar, saber como negociar e consensualizar as políticas.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1192 de 2 de Outubro de 2024.

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Autoria:Jorge Montezinho,5 out 2024 8:27

Editado pormaria Fortes  em  5 out 2024 11:20

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