O processo foi desencadeado em 2017 quando o governo, através do vice-Primeiro-ministro e ministro de Finanças, afirmou que “temos que ir à procura de quem tem mercado, tem capital, [tem know-how] e conhece todos os ‘stakeholders” para que, no espaço mais curto de tempo, possa alterar o quadro em Cabo Verde. Isso não será possível apenas com a prata da casa”.
Agora que a concessão se concretizou não deixou de espantar e até de criar alguma celeuma o facto de, no espaço de dias, dois destacados administradores da ASA terem sido contratados para posições cimeiras na empresa privada que passou a gerir os aeroportos. Afinal, contrariamente ao que se pensava, parece que não falta “prata da casa para alterar o quadro em Cabo Verde”. Quadro esse caracterizado em entrevista do PCA da ASA a este jornal, em Novembro de 2018, nestes termos: O negócio dos aeroportos não é rentável e durante muito tempo “não houve grande necessidade de recurso a uma gestão mais criteriosa dos aeroportos de modo a torná-los rentáveis”. E tal acontece “porque há o dinheiro da FIR [Oceânica] que naturalmente subsidia os aeroportos”, o que tem “contribuído para que a gestão pura dos aeroportos tenha sido colocada em segundo plano”. Ou não sendo o caso, ou seja, há sim “prata da casa”, como se deve proceder para evitar eventuais portas giratórias entre o público e o privado, de forma a não levantar suspeitas de prejuízo ou secundarização de interesses públicos em negociações com privados, incluindo privatizações, fornecimentos de serviços, consultadorias etc.
Em Cabo Verde ainda persiste um forte preconceito contra a iniciativa privada e um deficiente entendimento da importância crucial do investimento directo estrangeiro (IDE), no que representa de capital, know-how e mercado, para o país se desenvolver. Por isso, é de toda a importância que exista um quadro legal e ético que regule e oriente a contratação de ex-políticos e ex-gestores públicos por empresas que foram por eles tuteladas, reguladas ou supervisionadas de alguma forma. Mesmo nos países mais desenvolvidos há essa preocupação e é patente, por exemplo, nas orientações dos países da OECD para o emprego pós-serviço público. Procura-se evitar que contratações sirvam nomeadamente para pagar serviços prestados, ainda quando ocupando posições no sector público, para uso de informação privilegiada e para aproveitamento como lobista e facilitador no acesso aos centros de decisão político-administrativos.
Já existe no país, em particular para autoridades reguladores independentes e para órgãos de supervisão como o Banco de Cabo Verde, impedimentos para contratação pelas empresas reguladas durante um “período de nojo” que devem respeitar. Outros conflitos de interesses, para os quais poderá não haver enquadramento legal, mas que porventura colocarão questões éticas, deverão merecer atenção especial e eventualmente alguma orientação para os colmatar via código de conduta e um ethos próprio e um sentido de responsabilidade. Em vários momentos no passado houve situações que configuraram conflito de interesses como são entendidos no quadro da boa governança pública e mesmo empresarial. Pelas proverbiais portas giratórias passaram ministros para empresas tuteladas, políticos para autoridades reguladoras independentes e gestores públicos para empresas fornecedoras de bens ao sector público e concessionárias de serviço público e para empresas de consultadoria com lobbying à mistura.
É verdade que ninguém deve ser prejudicado nas suas possibilidades de emprego e de carreira por se ter disponibilizado para servir como gestor público. O que não se pode é ser absolutamente livre, como parece sugerir o comunicado do governo divulgado na sequência da notícia da presença dos ex-administradores da ASA na comissão executiva da Cabo Verde Airports, S.A. A estranheza geral que isso causou é um sinal de como a própria imagem do Estado e das negociações que conduz com entidades privadas em matérias e dossiers cruciais para o país pode ser afectada por dúvidas sobre a transparência e a lisura dos processos.
Um cuidado extra devia-se ter neste processo de concessão dos aeroportos considerando as dificuldades e complicações que se tem tido na concessão dos transportes marítimos e o falhanço recente da parceria com a Icelandair que obrigou à renacionalização da TACV. Impõe-se que a exemplo de outros países com preocupações de “good governance, public and corporate” que se criem regras que permitam fazer essas transições sem que fique prejudicado o interesse público e o interesse dos indivíduos no seu desenvolvimento profissional.
Cabo Verde precisa que os seus esforços de reforma do sistema público incluindo privatização e concessão sejam bem-sucedidos. A competitividade do país e o aumento da produtividade nacional dependem disso. Sem avanços nessa direcção não é possível falar de criação de mais postos de trabalho, de empregos mais bem remunerados, de oportunidades de desenvolvimento profissional que não passem pela emigração e de menor dependência do Estado dos indivíduos e da sociedade civil.
Para isso, porém, é fundamental que o Estado e os governantes, em geral, transmitam a confiança que as políticas e as reformas, por todos consideradas indispensáveis para a sustentabilidade futura da economia nacional, estão a ser conduzidas com o interesse comum em mira. Para essa confiança também é crucial que uma ética e um ethos de serviço público dos intervenientes estejam a ser salvaguardados a todo o momento. Sinais de descaso no processo levam inevitavelmente à descredibilização das instituições e consequente perda de confiança na integridade das actividades governamentais. O país não pode permitir-se esse “luxo”.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1135 de 30 de Agosto de 2023.