A Transportadora Aérea Cabo-verdiana – Cabo Verde Airlines (CVA), nome comercial – anunciou a retoma das operações “em regime de complementaridade” com a TICV, detida pela angolana Bestfly.
Em comunicado, citado pela Lusa, a companhia avançou que vai começar a operar de e para os quatro aeroportos internacionais da Praia, Sal, São Vicente e Boa Vista. O objectivo é aumentar a mobilidade entre as ilhas.
“A programação está projectada para facilitar as conexões entre as ilhas e ao mesmo tempo aumentar a conectividade com os voos internacionais”, referiu a TACV, que pretende ainda “maior circulação do tráfego doméstico e turístico.
Na segunda-feira, em entrevista à Lusa, o ministro dos Transportes já tinha referido que a TACV ia regressar aos voos domésticos, com um avião alugado à Air Senegal, para responder à incapacidade de resposta da atual concessionária Bestfly.
O ministro admitiu os “solavancos” que têm acontecido nos transportes interilhas, motivados pela “crescente” procura turística e pela “fraca capacidade” de resposta da Bestfly, a única operadora que faz as ligações aéreas entre as ilhas, por meio de uma concessão estatal.
“Notamos que há esse desencontro entre a oferta e a procura, por isso, o Governo já deu luz verde a uma proposta de reforço da oferta dos voos interilhas apresentada pela TACV, para permitir uma maior disponibilidade para todas as ilhas e facilitar a conectividade”, sublinhou o governante.
O Governo assume assim a “responsabilidade última” de ligação entre as ilhas e a alternativa é “estruturante e definitiva”, garantiu Carlos Santos. O ministro disse ainda que não se trata de um “passo atrás” na decisão anterior de retirar a TACV dos voos domésticos, mas sim de “garantir a mobilidade” dos cabo-verdianos, complementando as operações da Bestfly.
O começo do fim da TACV interna
Para contarmos a história, temos de recuar a 2015, ano que entrou para a história da companhia como o pior de sempre, com a empresa em acentuado processo de falência técnica, tendo registado o maior prejuízo.
Com perdas de capital líquido na ordem dos 3 milhões de contos e o capital próprio a avançar para mais de 8 milhões de contos negativos, a empresa viu o seu passivo a crescer cerca de 12% face a 2014, por força do incumprimento generalizado das obrigações contratuais, afectando particularmente os contratos de locação operacional com a ILFC/AERCAP relativos aos aviões Boeing.
No final de 2015, o passivo total rondava os 12,2 milhões de contos, com 70% desse total em passivo corrente. A companhia não tinha quase crédito comercial nenhum e a suspensão da IATA Clearing House veio agravar ainda mais a situação, pelo impacto negativo que a notícia teve no mercado.
As consequências dessa suspensão foram bastante graves: a confiança dos credores caiu ainda mais; a companhia deixa de ter crédito comercial e do mercado financeiro; a confiança dos parceiros também caiu, tendo algumas companhias parceiras tomado a posição radical de cancelar os acordos de cooperaçâo existentes (e.g. acordos interline); com isso, a companhia perdeu passageiros e rendimentos.
O Relatório de Gestão e as Contas da TACV, SA referentes ao exercício económico de 2016 sublinhava que o arranque desse ano foi um dos mais difíceis na história da companhia.
A AERCAP, locador dos aviões a jacto (1xB757-200 e 1x737-800) da companhia, enquanto decorriam negociações para a reestruturação da dívida acumulada (rendas e reservas de manutenção no valor de 1,8 milhões de Dólares), levou a cabo em Fevereiro de 2016, na Holanda, ao arresto do avião B737-800, com danos financeiros à regularidade operacional e à confiança do mercado. O recurso a aviões alternativos em wet leasing obrigou a empresa a gastos adicionais, não comportáveis pela tesouraria deficitária.
Igualmente por incumprimento das obrigações contratuais, no âmbito dos contratos de locação com a ELIX, locador dos aviões ATR, um acordo de diferimento de dívida foi assinado em Agosto de 2015. A par do não cumprimento das obrigações decorrentes da locação operacional, o acordo de diferimento não foi cumprido. A ELIX apresentou, em Fevereiro de 2016, uma proposta de resolução que, em sendo aceite, sujeitaria a companhia a um esforço financeiro adicional de curto prazo na ordem dos 12,5 milhões de Dólares. O Estado de Cabo Verde é implicado nesta operação, por força de garantias previamente consentidas à ELIX.
Os credores operacionais (aeroportos, fornecedores de combustível, empresas de handling, fornecedores de componentes e consumíveis para aviões, fornecedores de catering, etc.), incluindo os nacionais, começam a exigir pagamento prévio para garantir os fornecimentos e serviços à operação.
As dívidas perante autoridades fiscais e parafiscais no país e no exterior atingiram proporções fora do controlo, multas fiscais e processos de execução começaram a suceder-se. Processos judiciais, movidos por credores e por clientes que se sentiram lesados por irregularidades operacionais (atrasos e cancelamentos de voo), também se verificam, uns atrás dos outros.
Com fluxos de caixa operacionais continuamente negativos em mais de 150 mil contos mensais (sem contabilizar as contas correntes não pagas — ASA, CV Handling, INPS, Administração Fiscal) e a pressão das dívidas acumuladas, a dependência da companhia em relação ao suporte financeiro ao Estado atingiu níveis extremos. O recurso ao tesouro público ultrapassou, em média, os 185.000 mCVE, mensalmente.
Os parceiros internacionais de Cabo Verde representados no Grupo de Apoio Orçamental (GAO), que incluiu Portugal e instituições como a União Europeia ou o Banco Mundial, incentivaram várias vezes os governos a procurar medidas para resolver a situação financeira da companhia. Depois vieram as legislativas.
Céus de Cabo Verde sem a TACV
O Governo do Movimento para a Democracia (MpD), saído das eleições de Março de 2016, tomou como primeira medida a realização de uma auditoria técnica e financeira para apurar a “verdadeira” situação económica e financeira da empresa, que classificou como “financeiramente falida”.
Em Maio de 2016, um novo Conselho de Administração (CA) assumiu a gestão da companhia.
Em Junho de 2016 o novo CA apresentou ao Governo uma proposta de Plano de Recuperação (PdR), com medidas que deveriam permitir restabelecer a sustentabilidade económica e financeira da companhia até ao final de 2017.
A reestruturação tinha como objectivo introduzir as reformas necessárias para corrigir as disfuncionalidades existentes, adequar as estruturas à respectiva missão, ajustar o número de efectivos e incrementar a produtividade.
As diferentes actividades (Transporte Aéreo Regional, Transporte Aéreo de médio-Longo Curso e Manutenção) seriam organizadas em unidades de negócio autónomas, de forma a isolar e eliminar as ineficiências. Estas unidades de negócio poderiam depois evoluir para empresas independentes, que seriam posteriormente privatizadas.
Algumas medidas determinantes para os objectivos preconizados, não obstante terem sido à partida consideradas necessárias e viáveis, tiveram que ser reequacionadas, por força de condicionantes externos.
Por outro lado, o sucesso da acção no mercado para a obtenção de financiamento, conforme previsto no referido PdR, estava directamente condicionado pela situação da companhia e dependente do suporte do acionista [Estado].
A nova administração agiu nos custos, no sentido de ter uma melhor programação na gestão dos gastos, melhorando a eficiência a nível dos custos. Agiu ao nível de uma reformulação do plano de voo, com novas rotas, novas frequências, para melhorar a produtividade, quer no mercado doméstico, quer no mercado internacional. Ao mesmo tempo, reduziu o excesso de pessoal. Com esses recursos, previam uma melhoria logo em 2016 das condições da empresa e, em 2017, se todas essas condições acontecessem acreditavam que conseguiam chegar muito próximo do equilíbrio económico e financeiro.
Mas 2016 terminou na mesma no vermelho. Conseguiu-se reduzir o resultado negativo, sobretudo o resultado operacional, em 27 por cento. Conseguiu-se reduzir o resultado global em 36 por cento. Conseguiu-se crescer em termos de passageiros, quer no mercado doméstico, quer no regional, cerca de 10 por cento. Já a nível do mercado de médio e longo percurso – o mercado internacional – houve uma queda de 8 por cento, que se deveu à diminuição da capacidade de oferta da empresa e, consequentemente, a capacidade de produção.
No entanto, o Conselho de Administração não conseguiu mobilizar todo o dinheiro que pensava conseguir. Os recursos financeiros que se previam movimentar no mercado não foram suficientes. Não tendo os recursos financeiros, não se conseguiu ter os pressupostos para poder implementar o plano de recuperação da empresa, nomeadamente a modernização em termos de produção e dos meios de distribuição e a reestruturação da dívida. O plano de recuperação para 2017 não se consegue cumprir.
Em parte, estas foram as razões para as mudanças estruturais que aconteceram mais tarde, como o fim das operações domésticas. Sem recursos financeiros suficientes para atacar a reestruturação da dívida, para ter esse tempo para poder trabalhar, para investir, para melhorar a eficiência e eficácia em termos de produção e distribuição, dificilmente se conseguiria cumprir os objectivos pretendidos para 2017 que era chegar próximo do equilíbrio económico e financeiro. Não sendo possível mobilizar esses recursos e atendendo que tanto a operação internacional como a operação doméstica não eram rentáveis há muitos anos, o governo entendeu que eram necessárias medidas estruturantes e acelerar o processo de privatização.
Foi nessa base que, em Maio de 2017, devido aos contínuos resultados negativos e como já havia uma alternativa – a Binter – o governo entendeu que a empresa devia tomar um conjunto de medidas que mudassem o quadro e lançassem novas perspectivas em termos de modelo de negócio. Entendeu-se que a TACV devia sair do mercado doméstico e devia focar-se no mercado internacional. Para isso, fez-se a descontinuidade das operações domésticas e regionais, que começaram no mês de Junho e terminaram em Setembro, com a entrega dos ATR que continuavam na eminência de paralisar se não houvesse a capacidade de cumprir os compromissos assumidos perante o dono.
Bestfly continua em Cabo Verde
Depois das queixas recorrentes dos clientes por atrasos e falta de aviões a companhia aérea que tem operado sozinha em Cabo Verde veio dizer, em comunicado, que garante a continuidade da sua operação no país, apesar de reconhecer e lamentar “os desafios que a operação da TICV em Cabo Verde tem verificado”.
A empresa avançou igualmente que está a levar a cabo um reajustamento da estratégia em Cabo Verde, “procurando implementar mudanças estruturais, a nível de gestão e a nível técnico, que permitam corrigir e suprimir os constrangimentos verificados até ao momento”. “A BestFly continuará a fazer investimentos na sua operação em Cabo Verde que terão reflexo a curto prazo”, refere o mesmo comunicado.
“Neste momento, a BestFly World Wide tem como objectivo maior assegurar que a sua operação em Cabo Verde esteja estabilizada até ao início do Verão de 2024, garantindo um serviço de qualidade, a melhoria da pontualidade e o reforço da confiabilidade e previsibilidade das ligações providenciadas pela companhia”, lê-se no mesmo documento.
“A TICV assume com orgulho a sua missão de servir Cabo Verde e os cabo-verdianos, assegurando um serviço imprescindível para o desenvolvimento económico e para a coesão social do país. Estamos a trabalhar de forma contínua para ajustar a nossa operação e garantir melhorias efectivas, com reforço na confiabilidade e na qualidade do serviço que prestamos. Estamos convictos de que a revisão da nossa estratégia e o reforço de investimento terão efeitos tangíveis na qualidade do transporte aéreo interilhas. Tudo faremos para continuar a apoiar e promover a ligação entre pessoas, a coesão entre ilhas e a união em Cabo Verde”, disse Nuno Pereira, CEO da BestFly World Wide.
A BestFly World Wide informou ainda que já está em curso a venda de bilhetes para a programação de Verão IATA 2024, estando a companhia a trabalhar para responder à procura e assegurar o número de voos necessários. “A demora na efectivação da comercialização desses bilhetes não esteve relacionada com a acção operacional da TICV, tendo-se devido, exclusivamente, ao atraso na emissão de slots por parte da Cabo Verde Airports, devido a obras planeadas para aeroportos do país”, justificou.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1161 de 28 de Fevereiro de 2024.