“A Rússia tem tido como prioridade inviabilizar a Ucrânia por via da sua desestabilização permanente”

PorSara Almeida,14 mai 2022 10:03

José Manuel Pinto Teixeira - Antigo embaixador da União Europeia na Ucrânia
José Manuel Pinto Teixeira - Antigo embaixador da União Europeia na Ucrânia

Uma política de apaziguamento e passividade perante as muitas provocações da Rússia e de Putin ao longo dos anos, terão conduzido ao que hoje se passa na Ucrânia. A Europa foi branda e tardou a tomar posições. Em conversa com o Expresso das Ilhas, o antigo embaixador da UE na Ucrânia, José Manuel Pinto Teixeira, passa em revista momentos-chave da História recente, muitos dos quais vividos em primeira mão, para uma análise da invasão. E lança um aviso: “o ocidente não pode mais lidar com a Rússia como um Estado normal”.

O contacto de José Manuel Pinto Teixeira com a ex-União Soviética remonta quase ao seu desmantelamento, que ocorreu em início dos anos 90. Foi chefe de uma missão humanitária da UE na região do Cáucaso em 94/95 e, posteriormente, em 96/98, de uma missão na ex-Jugoslávia, Bósnia-Herzegovina e Croácia, onde acompanhou o processo [dos Acordos] de Dayton. Mais tarde foi embaixador na Macedónia (98/2002) e, entre 2008 e 2012, embaixador na Ucrânia e na Bielorrúsia (2008/2011, com sede em Kiev). Foram, pois, muitos anos de contacto e vivência com o mundo pó-soviético e russófono, que lhe permitem uma análise profunda e conhecedora do conflito que decorre na Ucrânia.

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José Manuel Pinto Teixeira com Iúlia Timochenko


Teve contacto próximo com a realidade da Ucrânia e as suas pessoas. Como caracterizaria o povo ucraniano?

Ao longo, sobretudo, dos últimos 20 anos, a propaganda do Kremlin tem sido sempre a de desvalorizar a existência de tal povo, dizendo que quem vive em grande parte do território são russos, não são ucranianos. Portanto, tentando confundir as opiniões públicas de que quem fala russo é necessariamente russo. Ora, penso que nós, países de língua portuguesa, podemos entender perfeitamente que um cabo-verdiano por falar português não é necessariamente português, nem um angolano. Antes, pelo contrário, têm as suas nacionalidades, as suas identidades. Sem entrar muito na História - porque a História pode ser sempre manipulada, o que interessa é a realidade actual, como é que as pessoas se sentem hoje – efectivamente, tanto no Império russo como na União Soviética, a língua russa era a única língua oficial, a única língua de ensino, a única língua que favorecia o progresso social das pessoas. Existem, no espaço actual geográfico da Ucrânia, pessoas de língua materna ucraniana, que sempre falaram essa língua materna e que na generalidade eram até à independência pessoas do mundo rural. Portanto, a língua ucraniana tinha pouca expressão em termos, por exemplo, da administração pública, dos negócios, das forças armadas, do ensino, da educação. Tudo era russo. Há pessoas que se poderá considerar de origem étnica ucraniana, que têm a língua russa como sua língua materna, mas são ucranianos. A propaganda russa vende também que a Crimeia sempre foi russa: é mentira. Só no século XVIII é que a Rússia começou a expandir o seu território para o sul, para o Mar Negro, naquilo que hoje vai de Odessa até ao Donbass. Toda a orla norte do Mar Negro. Esses territórios do Sul eram territórios sob o domínio Otomano. A Crimeia, por exemplo, era um território de tártaros, um canato que estava sob vassalagem do Império Otomano. A Rússia ocupa esses territórios no século XVIII, como referido, o que comparado com outros impérios como o português ou espanhol, de há 500 anos, é relativamente recente. Então, a Crimeia até há 200 e tal anos não tinha nada a ver com a Rússia. Foi depois ocupada, colonizada, povoada por russos, assim como Donbass, região que foi industrializada e em que vieram populações russófonas que se instalaram nesses territórios. Entretanto, fizeram parte de uma entidade administrativa chamada Ucrânia e, sobretudo a partir da Independência (91), o sentimento nacional de pertença a um espaço ucraniano foi-se consolidando tanto pelos que sempre falaram ucraniano, como pelos de língua materna russa, mas que se consideram ucranianos. Portanto, essa é a realidade da Ucrânia de hoje. A propaganda de Putin repete, aliás, a que Hitler invocava. Na Checoslováquia, em Sudetos, região povoada por germanófonos, Hitler usou o mesmo argumento de que estes não tinham liberdade, não podiam falar a sua língua, enfim, de que tinham de pertencer à mãe Alemanha. Isso justificou a invasão dos Sudetas. Pela política de Appeasement (apaziguamento), do então primeiro-ministro britânico Chamberlain, houve um encontro em Munique com Hitler, no qual este prometeu que só tomaria aquele território. Sabemos o que aconteceu pouco depois. A II Guerra Mundial começou passado uns meses.

Há, porém, movimentos separatistas.

Há os separatistas do Donbass. Convém recordar que quem foi o promotor do fim da União Soviética e criação de Estados independentes foi o Presidente da Federação Russa, Boris Ieltsin, que não queria estar debaixo da autoridade do então presidente da União Soviética e secretário geral do partido comunista da URSS, Gorbatchov. Portanto, foram as autoridades legítimas da Federação Russa quem, em determinado momento da história recente, promoveu a desintegração da União Soviética, reconheceu todos os Estados, neste caso em particular a Ucrânia, como um Estado independente, soberano dentro das suas fronteiras, e com ele estabeleceu relações diplomáticas. Foi este o tipo de relação que vigorou até agora. Sobre a questão do separatismo, quando há essa dissolução da União Soviética existem logo movimentos separatistas. Um, de que também se fala agora muito, é a Transnístria, um território da Moldávia, que fica no leste, junto à Ucrânia. Toda aquela região da Moldávia é de língua romena. Originariamente, étnica, linguística e culturalmente são romenos, só que no fim da Segunda Guerra Mundial, Estaline esquartejou e anexou territórios, também como forma de destabilizar os países. Então, tirou aquele pedaço da Moldávia e declarou-a como uma República Soviética. Nessa região, Transnístria, houve um processo de industrialização, sobretudo na área das indústrias metalúrgicas, e vieram, tal como para o Donbass, pessoas de língua russa, para a colonizar. Pode-se dizer que aquilo é uma colónia. Não são dali, foram para ali.Logo que há a dissolução da União Soviética, essa população russófona declarou a sua Independência, que não foi reconhecida por ninguém, mas de facto vive separada do controlo das autoridades da Moldávia e directamente sob o controlo de Moscovo. Tem inclusivamente uma presença militar russa desde essa época, início dos anos 90. Na região do norte do Cáucaso, a Tchetchénia, cuja população não são russos, são tchetchenos, com a sua própria língua e religião, fez logo uma guerra de secessão, assim como o Daguestão e a Inguchétia. Esses 3 territórios são etnicamente semelhantes, religiosamente são muçulmanos, e foram ocupados e colonizados pela Rússia no tempo do Império, justamente no século XVIII, quando houve a expansão pela Sibéria até chegar ao Pacífico. Então, aí houve logo uma guerra, em 94. No Cáucaso Sul, na margem do Mar Negro, na zona noroeste da Geórgia, há a Abecásia onde a população é muçulmana, tem a sua própria língua, a sua identidade, e que também [no fim da URSS] declarou uma secessão [da Geórgia]. Houve uma guerra, vieram forças russas de manutenção de paz que ocuparam essa região e ficou como um conflito congelado, um frozen conflict: conflitos que aparecem, há uma intervenção externa que tenta parar o conflito, mas o conflito não se resolve. Ou seja, esses países não ficam independentes, nem ficam dentro do território em que é internacionalmente reconhecido como as suas fronteiras. No Nagorno-Karabakh, que é um enclave de arménios na parte ocidental do Azerbaijão, a mesma coisa, rebentou logo essa guerra separatista. E de facto eles passaram a controlar o território, não estão debaixo da autoridade de Baku (Azerbeijão). Esses conflitos surgiram de imediato. Ora na Ucrânia não aconteceu nada. Isso quer dizer alguma coisa, quer dizer que não havia lá a semente do separatismo que mais tarde o sr. Putin vem a evocar, a explorar e a fomentar. Isso acontece a partir de 2014.

Que momentos-chave são importantes para perceber esta invasão russa?

Exactamente, essa invasão. É uma invasão e não tem nada a ver com o movimento doméstico, local. Portanto, voltando um pouco atrás, Ieltsin está no poder até 2000, quando entra Putin. A Ucrânia vivia no mundo pós-soviético, assim como a Rússia ou a Bielorrússia. A maioria dessas repúblicas vivem regimes autoritários em que a economia é controlada por oligarcas, pessoas que no processo de desmantelamento da economia planificada comunista se apoderaram de todos os assets públicos, e tudo era público, toda a economia era do Estado. Dividiram-nos entre eles e têm todo o poder económico. Esses países, que foram comunistas 70 anos, passam a ser do capitalismo sem regras, sem estado de direito, sem nada. É o salve-se quem puder e quem tem poder e dinheiro tem tudo. Essa situação do pós-sovietismo vigorou [na Ucrânia] até ao ano de 2004. Em 2004, houve dois candidatos: Yanukovych, que seria o herdeiro desse tipo de governação, com afinidades com o sistema político russo, e Yushchenko, com uma plataforma eleitoral diferente, de aproximação à UE, à NATO e, portanto, de sair do mundo pós-soviético para um mundo ocidental, em que há democracia, liberdade, direitos humanos, todos esses valores que naquele mundo não existem, nem existiam. Yanukovych, candidato do Kremlin, é declarado vencedor, mas há um movimento popular contra aquelas eleições, dizendo que houve fraude. A UE intervém pela primeira vez. Yushchenko é instituído como presidente e na sua governação começa a desenvolver uma política de afirmação da identidade ucraniana, sobre tudo na questão da língua oficial ser o ucraniano. A língua russa continua a ser utilizada com toda a liberdade, nunca foi proibida, mas agora o país tem uma nova língua oficial, tem que a promover e as gerações mais novas já falam, vão à escola, aprendem-na.Entretanto, a Ucrânia inicia um processo de negociação com a UE para um acordo de associação, no qual eu participei.

Não era integração?

Não. Nem em 2014. Isto é um detalhe importantíssimo. Aliás, vivi a mesma experiência na Macedónia, que também negociou primeiro um acordo de associação, e a União Europeia não lhe queria dar o estatuto de candidato. O Tratado de Roma, que instituiu a União Europeia, na altura Comunidade Europeia, estabelece que qualquer Estado no continente europeu, tem o direito de ser membro da União.

Mas como definimos a Europa? Até aos Urais?

A Europa, geograficamente, define-se até aos Urais. A região por exemplo do Sul do Cáucaso - a Geórgia, Arménia, Azerbaijão - são países ou Estados que fazem parte do Conselho da Europa, da OSCE, portanto, são regiões limítrofes, mas que geograficamente se podem considerar Europa, tanto que a própria Geórgia também tem a ambição de vir a ser membro. É uma fronteira que ainda não está perfeitamente estabelecida, por isso é que a União Europeia estabeleceu um processo que se chama Parceria Oriental (Eastern Partnership), com 6 países: a Bielorrússia, Moldávia a Ucrânia, Geórgia, Arménia e o Azerbaijão. É uma parceria oriental porque a União Europeia não lhes quis dar, até agora, a perspectiva de serem membros. Portanto, negociavam um acordo de associação. Com a Ucrânia, esse acordo de associação começou com o Presidente Yushchenko. A partir de 2008, o processo negocial estava a iniciar e eu acompanhei todo o processo. A Ucrânia na altura já pedia que lhe dessem o estatuto de candidato, que é um acordo de associação que tem um preâmbulo que diz "este país pode ser membro”. 

Sem datas definidas?

Nunca se pode definir datas. Depende também da capacidade desse país se reformar e de adoptar e implementar a legislação Europeia, que representa em média cerca de 60% da legislação de qualquer Estado da UE. É uma legislação comum. Portanto, a União Europeia sempre recusou.

Esse acordo torna o Estado elegível?

É um processo para reforma, para pode ser [membro]. A União Europeia começou com 6 países e todos eram democracias, Estados de Direito. Depois foi alargada a outras democracias, como o Reino Unido, a Irlanda e a Dinamarca. E posteriormente, alargada à Grécia, quando acabou o regime também militar dos coronéis. A partir de 75, mais ou menos, quando Portugal e Espanha se tornaram países democráticos, a Comunidade Europeia deu-lhes imediatamente a perspectiva de ser membro, não de ter um acordo de associação. Entretanto, quando se dá a queda do muro de Berlim e a dissolução daquilo que era o pacto de Varsóvia, do CoMEcon em termos económicos, desde a Polónia até à Hungria, todos esses países, quando passaram para um sistema democrático, foi-lhes dado imediatamente um acordo de associação, com perspectiva de integração. Isto foi em 92, e coincidiu mais ou menos com a transformação da Comunidade em União. Chama-se o estatuto de candidato. Então, pode haver um acordo de associação em que há uma parte política, em que se exigem todo o tipo garantias de funcionamento, de instituições democráticas, liberdades, direitos humanos, etc., e uma parte comercial e económica, em que praticamente eles integram o mercado único da UE, mas sem ter o estatuto de candidato. À Ucrânia e esses outros países [da Parceria Oriental] nunca foi dada essa perspectiva [do estatuto]. Havia resistências, que também têm a ver com o tal apaziguamento, sobretudo no caso da Ucrânia. Na Bielorrússia, Lukashenko sempre disse que só queria relações comerciais com a UE, mas no caso da Ucrânia eram países como a Alemanha, França, grandes países da Europa que não queriam, também por uma questão de isso não ser visto como uma provocação a Putin. Já naquela altura. 

A Europa foi demasiado branda com Putin?

Absolutamente. E Putin foi inchando com essa passividade ou com essa cumplicidade dos Estados Membros da União Europeia, com grandes responsabilidades no seu futuro.

Mas a Ucrânia já é candidata.

Isso só aconteceu agora. A guerra é que lhes deu o estatuto de candidato, é importante ter isso em conta. Uma coisa é dar um estatuto de candidato, reconhecer: "Este país vai ter um acordo de associação, que é o tal que faz todas as reformas e tem a perspectiva de vir a ser membro quando reunir essas condições”. Isso, à Ucrânia, sempre foi negado. E não foi porque não pediram. Aliás, eu estive lá em todo esse processo e sempre que havia as reuniões ao mais alto nível, com o Yushchenko, o 1º ponto da discussão era sempre o estatuto de candidato. A União Europeia sempre fugia à questão. Deixava isso para as calendas, porque em termos de legitimidade não podia dizer que não. O tratado prevê, mas era tudo de forma também a apaziguar Putin, como referi. Estou a falar de 2004 até 2010.  Entretanto, esse processo também é complicado porque tem a ver com o desmantelamento, por exemplo, de barreiras comerciais. Na Ucrânia havia muitos oligarcas com interesses económicos que não queriam um comércio livre. Portanto, havia um objectivo político, mas que nem sempre se transformava na realidade no processo negocial quando tocava em interesses económicos dos tais oligarcas. A negociação foi relativamente lenta, mas, como disse, nunca esteve na mesa ser membro da UE.

E depois de 2010?

Em 2010 há novas eleições em que aparece novamente Yanukovych, homem de Putin, como candidato, e Iúlia Timochenko, que era primeira-ministra durante o período em que Yushchenko foi Presidente. Era PM quando cheguei à Ucrânia e é a pessoa com quem lidei em todo esse processo negocial, que era da competência do governo. Houve eleições, a OSCE e a UE reconheceram Yanukovych como Presidente. É importante lembrar que a plataforma eleitoral de Yanukovych mantinha o processo de integração Europeia, e com a NATO. Entretanto, a Rússia tinha desenvolvido um processo também de integração económica, a União Aduaneira, dos países da ex-URSS. Ou seja, Putin começa a desenvolver um processo competitivo em relação ao tal acordo de associação em curso com a UE. Então, eu estive metade do meu tempo [na Ucrânia] com um presidente e uma PM pró-Europeia, ocidental, declarado sem ambiguidades e o resto com Yanukovych e o PM dele, Azarov, que mantiveram esse processo, mas que se sabia ligados ao outro lado. No fim de 2013, está prevista a assinatura do tal acordo de associação. Yanukovych manteve, como referido, um processo negocial, agora também muito forçado pela própria UE, sobretudo para dar satisfação aos anseios de alguns países, com destaque para a Polónia que sempre foi o grande motor da integração da Ucrânia na UE. Marcou-se a anual cimeira União Europeia/ Parceria Oriental, em Vilnius, capital da Lituânia, país também grande promotor dessa aproximação. Os países que iam assinar esse acordo eram Ucrânia e a Arménia. A data está marcada, a festa está preparada e uns dias antes, Putin chama Yanukovych a Moscovo. Yanukovych regressa a Kiev e diz que não ia assinar o acordo. O mesmo aconteceu com o líder da Arménia. Isso é que provocou a chamada revolução Maidan porque se gerou uma expectativa também irrealista, muito fomentada por países da UE, de que, praticamente, assinar aquele acordo era o mesmo que ser membro. 

Foi a ideia que passou ...

Era um passo importante nesse sentido, porque todas aquelas reformas que são necessárias seriam feitas. Depois, dar o estatuto de candidato, é uma decisão política, como foi agora dado por causa da guerra. Portanto, a população ucraniana não quer viver no mundo russo, e é isso que esta guerra está a demonstrar. Agora, é ver como aceitam morrer, o país está a ser devastado, porque não querem ser parte do mundo russo. Não querem nem ser parte da Rússia, nem sequer ter lá um fantoche como Lukashenko, que obedece a Moscovo. Querem ser livres, têm clara percepção do que é o mundo russo. Eles já viram o que a Polónia, que está ali ao lado, se desenvolveu enquanto eles ficaram no marasmo económico e social. Mas além desse processo de associação com a UE, havia também o processo de adesão à NATO…

Foi esse que supostamente despoletou esta crise.

Isso é o que os ingleses chamam smokescreen. Uma nuvem de fumo para confundir as pessoas sobre os verdadeiros motivos. Falando da NATO, que é o maior alibi dele, houve um processo, também com Yushchenko, de negociação. Em 2008, na Cimeira que teve lugar em Bucareste, estava prevista a adesão à NATO, uma decisão em que todos os membros têm de estar de acordo. Dois países, França e Alemanha, vetaram. Isto coincide com uma outra provocação, outro teste, de Putin, que acontecera meses antes. Em Agosto de 2008, há uma guerra na Geórgia, mais uma vez provocada pela Rússia, com os separatistas da Ossétia do Sul e da Abecásia, que se revoltam contra o poder de Tbilisi. Saakashvili, que era o Presidente da Geórgia, atreveu-se a tentar impor a soberania do seu Estado nesses territórios, e a Rússia interveio militarmente. Ocupou aqueles territórios, reconheceu-os como Estados independentes, aquilo que fez também com o Donbass, e tirou-os da órbita do controlo do Estado soberano ao qual aqueles territórios pertenciam. Na cimeira, a melhor mensagem que Putin podia ter tido foi justamente vetarem a entrada da Ucrânia. Penso que naquele momento tinham que ter aceite e a Ucrânia ficaria sob protecção da NATO, porque o que está a acontecer é a prova de que países vizinhos da Rússia precisam de ter uma Aliança. 

E antes já houvera o desmantelamento do arsenal nuclear da Ucrânia.

É outro aspecto muito importante. Lembro o seguinte: a Ucrânia mesmo sendo parte da União Soviética era membro de pleno direito das Nações Unidas, tinha um assento separado. Isso só podia acontecer porque a União Soviética o queria. Quando se dá o desmantelamento da União Soviética, no território da Ucrânia havia um grande arsenal de armas nucleares e os Estados Unidos, o Reino Unido e a Rússia iniciaram um processo, que começou em 94 e terminou em 96, de negociação, para a Ucrânia aceitar desmantelar esse armamento, na base do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, e o acordo de Budapeste, que foi assinado, é um acordo em que esses três Estados são os garantes da soberania e da integridade territorial da Ucrânia. Portanto a Rússia, como já disse, reconheceu a Ucrânia como um Estado, teve relações diplomáticas, e é um garante, ao abrigo deste Tratado, da soberania e integridade territorial da Ucrânia, que desmantelou esse armamento Nuclear. Foi outro erro que fizeram. Devia ter ficado com os seus armamentos nucleares e, agora, pelo menos tinha uma capacidade dissuasora até desta invasão. Fizeram esse erro, a NATO não aceitou a adesão por causa da França e Alemanha e a Ucrânia ficou no limbo. Entretanto, o senhor Putin, em 2013, anexa a Crimeia. Em outros [territórios], ainda fazia a fantochada de que ficaram independentes e Rússia reconheceu a Independência, mesmo que mais ninguém tenha reconhecido. Aqui, anexou e anexar já é fazer o que fizeram o Hitler e o Estaline. A história da Segunda Guerra Mundial contada pela Rússia é uma história muito longe da realidade. Não consta, por exemplo, o Pacto Molotov–Ribbentrop, portanto o pacto entre Hitler e Estaline, em 1939 / 40, em que fizeram a partição da Polónia e dos países bálticos. Mais tarde é Hitler que não respeita esse acordo e que invade a parte soviética. Mas foram aliados dos nazis para cometer exactamente aquilo que os nazis fizeram: anexar territórios. Ora, Putin anexou a Crimeia, e mais uma vez as respostas foram tímidas, apenas umas pequenas sanções. Tudo isso veio reforçar a convicção do sr. Putin, de que na hora da verdade o Ocidente deixaria cair a Ucrânia. A partir daí começa o tal separatismo no Donbass que, volto a dizer, não apareceu em 91 quando se desintegrou a URSS, como aconteceu noutros territórios onde havia populações russófona importantes. Não aconteceu porque eles nem pensavam nisso. O separatismo é criado pela própria Rússia. Obviamente, mesmo na população local há sempre uma minoria que se alguém lhe prometer poder se mostra interessado. Ainda por cima, vindo de uma grande potência, que pensam que é invencível.

Mas então o que Putin pretende? São tantas as “justificações” que deu, que nem se percebe …

A verdadeira justificação ele nunca vai dar. Qual é o medo dele? É que a Ucrânia, um país que tem toda a viabilidade económica, seja um país rico com uma governação ocidental, ou seja, no mundo com regras, com o Estado de direito, com o direito de propriedade e regras de concorrência, tudo isso que faz florescer um ambiente de negócio, faz florescer as economias. Portanto, vai ser um país muito mais rico do que a Rússia. Qual é a riqueza da Rússia? A Rússia tem todo esse armamento que vemos - e pelos vistos não o gere muito eficazmente, como se está a ver no campo de batalha. É o maior país do mundo, é quase metade do hemisfério norte, tem 140 milhões de habitantes e uma população em decréscimo, e tem um Produto Interno Bruto que é equivalente ao da Holanda, um território microscópico que tem 16 milhões de habitantes. O rendimento médio per capita é a metade a 1/3 de Portugal. É um país que vive de recursos naturais, não é um país industrializado como são os países europeus, a América, o Japão. Conhece algum produto russo de consumo, sem ser o vodka? Tiveram até uma indústria aeronáutica, hoje não.

Indústria de armamento?

Só indústria de armamento, que já vem do tempo da União Soviética. As pessoas viviam mal na penúria, não tinham para comer às vezes, mas para a defesa... é como a Coreia do Norte, há fome, mas tem bomba nuclear. São países autocráticos em que quem tem o poder não quer deixar o poder, e precisa da força para se afirmar tanto a nível interno como a nível externo. E os russos que vivem Rússia olham para os ucranianos como camponeses. A mentalidade russa é outra coisa que é preciso entender. Não é como a Europeia e muitos países. Em Cabo Verde, por exemplo, as pessoas querem viver em liberdade, o ser humano tem valor, a vida tem valor, a cidadania é um valor que é entendido e que a pessoas querem. Na Rússia não. Fruto de toda essa propaganda que é fomentada desde o tempo soviético até agora, as pessoas vivem com medo do “inimigo” externo, como se todos a quisessem conquistar e o regime vende-lhes que precisam de um regime forte. A democracia é vista como um sistema para os fracos, o mundo ocidental é caracterizado por serem pessoas fracas, desviantes. É assim que retratam o mundo, e têm orgulho de ter um líder forte, que conduz com mão de ferro. Quantos lá querem democracia? Poucos. Apenas os mais jovens, os mais informados. A gente fala de corrupção no nosso nundo, que existe certamente, mas ali, a cada passo o cidadão é sujeito a corrupção. Qualquer coisa de que precise do Estado, da polícia, da autoridade, da justiça, tudo é para pagar. É a lei de quem tem dinheiro. Ora, o russo olha para o ucraniano como um tipo vindo do mesmo mundo, e como sendo uns camponeses. Como é que o sr. Putin vai justificar que esses camponeses vivam muito melhor, estejam muito mais ricos, do que os que vivem no país dele. Isso vai começar a fazer a população questionar o regime. Portanto, o que o sr. Putin receia é que a Ucrânia, podendo viver em estabilidade, [enriqueça]. Desde 2004, a Rússia teve como prioridade inviabilizar a Ucrânia por via da sua desestabilização permanente, política e económica. Receia que a Ucrânia seja um país normal, europeu. Esta é a preocupação do sr. Putin.

É a manutenção do Regime?

Claro.

E a viragem para África? Cada vez temos mais mercenários, nomeadamente nos países francófonos?

Putin quer ser uma potência mundial para projectar essa propaganda de que eles estão em todo o lado. É um combate, em eles estão aliados com a China, àquilo que eles chamam, e que é, um pouco, um facto, o mundo monopolar, em que ao Ocidente, a América e alguns Estados europeus e pouco mais jogam um papel na cena internacional. Esses conflitos em que o Ocidente, a América e a Nato cometeram erros, hoje são explorados também nessa propaganda, como o Afeganistão, o Iraque, as intervenções na Líbia, o Kosovo. Tudo isso são argumentos que usa para justificar o que está a acontecer, embora o que está a acontecer não tenha nada a ver com aquelas situações. É um facto inegável que os terroristas que foram atacar em Nova Iorque tinham a sua base no Afeganistão. Agora nunca vi nenhum acto terrorista perpetrado na Rússia a partir da Ucrânia.

Falou da inércia da UE, por exemplo com as anexações. Também tivemos Grozny e Alepo, onde Putin mostrou que na guerra vale tudo, sem lhe porem travão. A UE falhou?

É uma realidade, mas tem a ver com uma certa incoerência que existe na política internacional e também com os interesses mais directos. Obviamente, que com tantos problemas que há no mundo e na União Europeia, se ela se fosse dedicar com o mesmo empenho a tudo que acontece por esse mundo fora, longe das suas fronteiras, da maneira como se preocupa com aquilo que acontece no seu continente, obviamente era muito difícil.

Grozny...

Mas Grozny é parte da Federação Russa. Bem ou mal, é a realidade do Direito Internacional. Quando a União Soviética se dissolveu as repúblicas da antiga União Soviética foram reconhecidas internacionalmente como Estados soberanos independentes. Aquela zona do norte do Cáucaso faz parte da Federação Russa legitimamente. Embora a Tchetchénia, a lngushetia, o Daguestão etc, não sejam russos, realmente teriam direito a ser independentes, da mesma maneira como foi com as potências coloniais. A Federação Russa, é uma potência imperial colonial, uma boa parte da população não são russos. Mas, porque é que não houve uma mesma intervenção da parte do Ocidente: primeiro, é um problema interno. É um problema de abuso de direitos humanos, todas essas coisas, mas não é uma violação de soberania de um Estado. Aqui há uma violação de soberania do Estado ucraniano, reconhecido tanto pela União Europeia como pela América, como pela própria Rússia. Há essa diferença. Em termos daquilo que acontece, é a mesma coisa, há pessoas que estão a morrer, que estão a ser bombardeadas indiscriminadamente, e, portanto, em termos humanitários o problema é o mesmo. Em termos de direito Internacional, o problema é muito diferente.

Há pouco falou da destabilização da Ucrânia, a questão do gás foi um dos casos?.

Putin tentou todos os meios. Entrou no poder numa altura em que quase todas as repúblicas soviéticas tinham um regime fantoche ou ligado ao mundo pós-soviético. Em 2004 vem Yushchenko, na Geórgia vem o Saakashvili, e são essas duas repúblicas que começam a mexer com aquilo que é a visão de Putin de como esses Estados têm que se comportar. No caso da Ucrânia, ele usa várias armas, a primeira é o gás. Chamava-se na altura as guerras do gás. Os pipelines, os gasodutos foram construídos no tempo soviético, vinham da Rússia, atravessavam a Ucrânia, e iam sobretudo para aqueles países da Europa oriental que até à queda do Muro de Berlim faziam parte do mundo soviético - os países do CoMECom, que era organização económica daqueles Estados, e o Pacto de Varsóvia. Portanto, esses gasodutos atravessavam a Ucrânia, e em Janeiro de cada ano, a partir de 2006, Putin, como forma de utilizar o gás como arma geopolítica, começa a cortar o fornecimento. Faz isso sempre no pino do Inverno, várias vezes e começa a fazer uma propaganda para a Europa, a acusar os ucranianos de roubarem o gás. Invocava como motivo do corte que a Ucrânia roubava. Aí, ele queria a intervenção da União Europeia. A Bulgária, que ainda agora tem uma dependência enorme, dependia 100% de gás russo, e quando aquilo acontecia criava-se logo uma situação de crise humanitária, nas escolas, hospitais, creches. A União Europeia começa a intervir. Eu estive nesses processos, havia até uma unidade em Bruxelas para tratar praticamente das questões de gás com a Rússia, e Putin vai aumentando a parada. Vai também se apercebendo de que aquilo é uma arma que mantem a União Europeia amarrada aos seus interesses. A União Europeia e os Estados da União Europeia, sobretudo, porque são decisões de cada Estado - por exemplo, a decisão da Alemanha construir o gasoduto North Stream não é uma decisão da União Europeia. Aliás, havia países contra, por exemplo, a Suécia, os países bálticos, todos esses países do norte eram contra, até porque implicou escavar o mar Báltico para colocar tubos, o que em termos ambientais era muito criticável. A Alemanha é que decidiu viciar-se no gás russo. Voltando à história, em Janeiro de 2009 estava eu na Ucrânia, e Putin corta o gás. A União Europeia manda uma missão, naquele tempo ainda funcionavam essas presidências [rotativas], veio o PM da República checa ouvir os ucranianos, vai a Moscovo, Putin diz o que quer, é um ultimato. O gás era usado para chantagear, para conseguir os seus objectivos. A sra Timochenko foi a Moscovo para ir assinar o acordo como Putin decidiu. Entretanto os alemães decidem construir aquele gasoduto. Ou seja, fizeram o jogo da Rússia, tiraram a Ucrânia do caminho, a Ucrânia deixou de ser ter um papel geopolítico e económico na relação Rússia-União Europeia e a Alemanha chegou à situação que tem hoje, em que mais de 50% da sua energia é gás da Rússia. Isso coincidiu também com uma mudança na política energética Europeia, mas sobretudo e mais uma vez, é uma política nacional da Alemanha que naquele período, já com sra Merkel, decidiu desmantelar as centrais de energia Nuclear. Tinha havido o desastre em Fukushima, no Japão, e a partir daí o movimento dos Verdes, que sempre teve um papel muito importante na criação de coligações na Alemanha, exigiu o desmantelamento das centrais nucleares e a energia mais barata que a Alemanha tinha era o gás da Rússia. Mais uma dependência criada em relação a Putin, e todas as dependências criadas em relação ao sr. Putin eram a expensas da pobre Ucrânia, que era o que ele pretendia: justamente que a Ucrânia não tivesse importância, para ninguém se preocupar se ele invadisse, porque não vivem sem o gás.

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José Manuel Pinto Teixeira junto à igreja de Santo André em Kiev


Mas agora a Alemanha decidiu apoiar a Ucrânia, mesmo com material militar?

Outro aspecto importante tem a ver com o apoio militar. Embora o Putin dissesse que a Ucrânia é um país de nazis, militarizado, que tem que desmilitarizar, a realidade é que o Ocidente nunca forneceu armas letais à Ucrânia. Só vendiam armas defensivas. Só depois de Donbass, os americanos e os britânicos, muito limitadamente, treinaram forças ucranianas, o que demonstrou ter sido um trabalho eficaz. Armou-os minimamente, mas a Ucrânia não tem força aérea, praticamente, não ataca o inimigo donde vem a invasão. São já 2 elementos fundamentais em qualquer guerra minimamente equilibrada. Aquele que é atacado tem o direito de atacar. Não ataca. Depois de começar a guerra é que começa esse esforço de dar armamento, mas a guerra está sobretudo concentrada no leste da Ucrânia, a uns milhares de quilómetros da fronteira polaca. Há linhas férreas que é necessário usar para transportar esse armamento, que são alvos fáceis porque a Rússia tem mísseis que nunca mais acabam, tem aviação, bombardeia. Quer dizer, tudo isso foi mau e a Europa tem uma responsabilidade enorme. A Alemanha tem uma responsabilidade maior do que todos. O que estão a fazer hoje, por exemplo o estatuto de candidato que deram à Ucrânia, veio tarde e a más horas, e é extraído por uma guerra.

Há quem defenda que o conflito também é culpa de Zelensky. Recentemente o ex-PR do Brasil, Lula da Silva, disse-o em uma entrevista. Qual a sua opinião?

Se houve processos eleitorais sem margem para dúvidas quanto ao vencedor foi este. O Zelensky é a prova da escolha do povo. Ganhou com mais de 70%. Não pertencia à classe política que estava a dominar a Ucrânia desde a sua Independência, é um indivíduo formado, um jurista, mas fez aquela opção [de ser actor] e tinha um programa de televisão altamente pedagógico para, justamente, o povo entender a cidadania. Não há consciência de cidadania, quem tem o poder é para usar o poder em benefício próprio, e quem não tem, gostaria de ter para fazer o mesmo. O Zelensky fez um programa que durou 2 ou 3 anos. Um presidente simples, um homem normal, não um homem que está ali para enriquecer, para beneficiar do poder.
Entretanto, é atacado, o país é invadido. O país que está a ser destruído tem responsabilidade porque esse estado soberano não tem o direito de escolher as alianças a que pertence? A NATO, os EUA, sempre fizeram bem de não dizer à Ucrânia que não pode ser membro da NATO. Eles é que tem que decidir. Agora a Rússia devia ter tido sempre uma política de não criar nenhuma preocupação à Ucrânia, porque isso é que justifica querer ser membro da OTAN. O que está a acontecer, só veio dar razão a que a Ucrânia queira ser membro da NATO. Está à vista. E isso é que levou a Finlândia e a Suécia a quererem agora ser membros da NATO. Esse problema nunca se colocou, mas agora já se coloca.

Putin é que criou essa situação?

Exacto, ele é que a criou.

Acha que Putin tem razões para acreditar que esta invasão será bem sucedida?

Eu acho que já está demonstrado que não conseguiram aquilo que queriam. Putin pensava que com aquele aparato todo de invasão, o Zelensky fugia e ele trazia um Yanukovych ou outro qualquer, punha ali um novo Lukashenko. Portanto reprimiam toda a resistência ucraniana, punham os tais separatistas, que se vendem facilmente, a governar o país e o problema estava resolvido.

Quais as hipóteses de virmos a ter uma guerra mundial?

Não sei. Um homem que já fez o que fez, tudo é possível. Digo é o seguinte: eu, como cidadão europeu, não aceito viver sob chantagem de Putin. Se for necessário uma guerra para preservarmos os nossos valores e estilo de vida temos de estar preparados para isso. Aquele senhor não pode intimidar e a condicionar o nosso modo de vida só porque tem bombas atómicas. Os americanos também têm os seus meios, acredito muito mais na tecnologia, na eficácia, dos americanos do que dos russos. Mas claro que se houver uma guerra de género, vai haver, como sempre, muitas vítimas inocentes em qualquer parte do território europeu e mesmo americano.

E, embora não se saiba o que vai acontecer, face ao que já vimos, que Europa prevê para depois deste conflito?

O projecto da União Europeia só sai fortalecido. Aquilo que eu espero, é que mesmo que isto acabe o mais cedo possível, a Europa não caia nos erros do passado. Ou seja, a Rússia, enquanto for um estado autocrático que não respeita minimamente os direito internacional, tem que ser ring fenced, tem que ser fechada ao mundo ocidental. Tem de ser isolada. A Europa e o Ocidente têm que viver sem necessitar de qualquer relação. Só assim é que a Europa vai deixar de ser dependente e a Rússia vai entender que todas essas armas que usou como chantagem, como arma geopolítica, não servem. Putin que faça um novo mundo com a China, um mundo multipolar. Daqui a umas décadas vamos ver em que situação está a Rússia. Se já é pobre estará paupérrima, para que lhe servem os armamentos? Tem uma fronteira de milhares de quilómetros com a China, país que contrariamente à Rússia tem um crescimento demográfico permanente, enquanto a Rússia é uma população envelhecida com uma expectativa de vida cada vez menor, com uma taxa de crescimento negativa, daqui a uns anos serão 100 milhões… Não auguro nada de bom para a Rússia, e aliás, não merece, porque aquela população tem que entender que é a maior vítima dessas lideranças. E espero que a União Europeia, a Alemanha, não comece a tentar reatar [relações]. Agora, se no futuro a Rússia se transformar num Estado respeitador de valores e do direito internacional, deverá ser objecto de uma normalização gradual das relações com o Ocidente.

Caindo o Putin, sendo um regime de strong man, a Rússia vai-se manter como está? Terá de ser um trabalho interno…

Vai ser trabalho Interno. No princípio da guerra houve bastantes manifestações. Isso desapareceu, porque quem participa em manifestações tem 15 anos de prisão. Esses regimes tratam do assunto e a maioria da população, a maioria do ser humano, por mais convicto que esteja - e não é o caso da maioria - , sobre quais os motivos e o que é que pretende, precisa de muita coragem para andar nas ruas a enfrentar gorilas e ir para a prisão e ter a sua vida destruída. A implosão interna, penso que ainda estamos muito longe dela. Por isso é que o Ocidente não pode mais lidar com a Rússia como um Estado normal, muito menos com uma política de apaziguamento, de não fazer ondas, de deixar o homem ocupar, fazer, que foi o que aconteceu até agora.

Falou há pouco da Segunda Guerra Mundial…

Quanto à Segunda Guerra Mundial, ainda sobre as origens do pacto entre nazis e soviéticos e como acabou essa guerra. Sabemos que os países aonde o exército vermelho penetrou até chegar a Berlim ficaram todos debaixo do seu jugo, com o mesmo regime comunista. Dirão que os outros ficaram com um regime capitalista democrático, é verdade, mas que eu saiba não foi imposto. Havia eleições, havia partidos comunistas, havia a liberdade de escolha. Desse lado nunca houve. Também em termos da forma como a União Soviética e a Rússia actuou quando [a guerra] acabou. Países como Polónia, eram países com regime comunista, com uma presença militar soviética, mas eles foram mais longe. Anexaram também um território, Kaliningrado (oblast de Kaliningrado), um enclave entre a Polónia e a Lituânia. E mais uma vez o Ocidente desinteressou-se por essa matéria e mais tarde tem as consequências que tem. Este território pertencia à Prússia. Quando acabou a guerra (naquela altura já era Alemanha, mas eram prussianos que lá estavam), a URSS expulsou todos os alemães, a população originária, para o ocidente, e anexou aquele território. É parte do território da Federação russa. Quando se desintegrou a URSS, este pedaço ficou parte da Rússia. Falam que não querem a NATO junto das suas fronteiras, mas eles estão dentro do território da NATO e com território que eles anexaram no fim da II Guerra Mundial. Com que legitimidade? Onde é que está o território americano ou inglês fora das suas fronteiras? Foram parte dos vitoriosos da guerra, mas deram-se o direito de anexar este enclave, quando a guerra acabou. O sr Churchill queria continuar a guerra contra a União Soviética, os americanos é que não quiseram, justamente para não haver casos destes e para a URSS não desenvolver armas nucleares, que na altura ainda não tinham. Mas isto revela como é a Rússia. Mas isto não fica por aqui. Na II Guerra Mundial houve guerra na Europa, no norte da África, e depois no Oriente. O Japão atacou os Estados Unidos e houve a guerra do Pacífico em que participaram o pacífico e todo o sudoeste asiático. Até Timor que era português foi invadido pelos japoneses. Depois, foram os ingleses, os americanos, australianos, neozelandeses que andaram a lutar naquele território contra os japoneses. A União Soviética nunca entrou em guerra com o Japão, embora eles tenham sido inimigos antes da primeira guerra mundial. Concentrou-se só na Europa. Os americanos lançam a bomba atómica em Agosto de 45, e a União Soviética, que sempre teve relações diplomáticas com o embaixador em Tóquio, depois do Japão capitular declarou-lhe guerra e ocupou as ilhas do norte, chamadas Ilhas Curilas, até hoje. Acham-se com o direito, nem entraram na Guerra e pergunto também onde é que está o território americano do Japão? 

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Autoria:Sara Almeida,14 mai 2022 10:03

Editado porJorge Montezinho  em  26 jan 2023 23:27

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