Cabo Verde visto pelas letras

PorEurídice Monteiro,12 jun 2018 6:30

Nestes últimos dias, muita gente tem andado à procura de um livro do Germano e de um bom lugar para a leitura.

Já são cerca de dezasseis sugestões de leitura no domínio da prosa literária: O dia das calças roladas (1982), cuja trama se desenvolve em torno das ocorrências e turbulências da reforma agrária em Santo Antão e do célebre 31 de Agosto de 1981; O meu poeta (1989), que narra a história de um crioulo um tanto ou quanto importante; O testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo (1991), o tão longo testamento de um homem que se fez comerciante no Mindelo; A ilha fantástica (1994), uma apresentação cronística do país; Os dois irmãos (1995), o romance fratricida cuja acção decorre em torno de um julgamento popular no interior de Santiago; Estórias de dentro de casa (1996), os bastidores e as fachadas da vida quotidiana insular; A morte do meu poeta (1998), seguimento da narrativa sobre o típico oportunista crioulo; A família Trago (1998), malabarismos de certos homens crioulos; Estórias contadas (1998), histórias cantadas; Dona Pura e os Camaradas de Abril (1999), sobre o 25 de Abril e os seus dramas; As memórias de um espírito (2001), coisas que a mente tece; Cabo Verde: Viagem pela história das ilhas (2003), uma espécie de livro de viagem ou catálogo turístico das nossas ilhas habitadas e da sua pequena ilha deserta; O mar na Lajinha (2004), em torno das conversas dos banhistas da cidade; Eva (2006), diálogos do fim do império e das novas relações entre o ex-colonizador e o ex-colonizado entre a ex‑metrópole e a ex‑colónia; A morte do ouvidor (2010), uma espécie de novo romance histórico cujo enredo remonta aos primórdios da colonização das ilhas e à luta pelo poder político, económico e social na estrutura régia; De Monte Cara vê-se o mundo (2014), a vida social e as predações do quotidiano; O regresso ao paraíso (2016), uma história de regresso à ilha natal; O fiel defunto (2018), livro acabadinho de sair do forno que, confesso, ainda não li e mais não posso dizer.

Na semana passada, um jornalista literário do jornal O Globo, do Rio de Janeiro, Brasil, esteve a recolher depoimentos de várias paragens do espaço de língua oficial portuguesa sobre a atribuição do Prémio Camões a Germano e, no âmbito desta auscultação, contactou-me para saber também o que entendo que a literatura cabo-verdiana tem de especial, de único, pelo que tratei de dizer que, cá para mim, cada país é especial, visto a partir do seu lugar de enunciação. No caso da literatura cabo‑verdiana, assegurei que ela é especial pelo facto de tomar Cabo Verde como bandeira, independentemente de certos dos nossos escritores serem nativistas, nacionalistas ou universalistas. Percebe-se, sem grande esforço, que Cabo Verde é o centro do mundo para nós. Por isso, é especial.

A literatura é fruto do contexto de cada época. Antes da independência nacional, particularmente a partir de meados do século XIX, havia uma preocupação com a construção de um ambiente literário neste espaço insular e a afirmação do amor a estas pequenas ilhas do Atlântico médio; a definição da especificidade da cultura cabo‑verdiana e da sua mestiçagem no quadro dos países marcados historicamente pela colonização portuguesa e a construção de uma então comunidade imaginada através da literatura; a contestação ao domínio colonial, etc.

Desde a independência nacional, em 1975, e depois da abertura política, em 1991, houve uma diversificação temática, fruto da evasão do espaço estritamente nacional, da dinamização da diáspora e da consagração do cosmopolitismo crioulo. De igual modo, houve uma diversificação dos sujeitos literários, donde se destaca a intensificação da participação das mulheres na produção literária, ensaística e, igualmente, no domínio da oratura. Por exemplo, as mulheres têm equacionado e articulado a identidade nacional e a identidade de gênero, trazendo também para o debate público algumas das questões menos abordadas nas narrativas dominantes, nomeadamente as relações de gênero construídas com base em desigualdades, a violência doméstica, a prostituição, a maternidade na adolescência, o peso da herança cultural, a família, a subversão cultural, a loucura, a sexualidade, as migrações, a exclusão política das mulheres ou a (in)submissão no amor, etc.

No caso de Germano Almeida, ele é um escritor do pós-independência, sempre atento ao quotidiano, aos processos políticos, à transformação social e à abertura ao mundo. É crítico, polémico. Desinibido, descomplexado. Introduziu o humor mordaz e o erotismo prosaico na produção literária nacional, embora a partir de uma perspectiva masculina. Fez do Mindelo da ilha de São Vicente algo parecido com o que Jorge Amado fez da Bahia na sua produção literária. Ele costuma dizer que não é um romancista, mas sim um contador de histórias. Eu diria que ele mais parece um encantador de histórias, pela maneira como narra, adaptando a língua portuguesa ao contexto cultural local.

Sem dúvida, este prémio é mais um indicador da consagração de Germano Almeida. Ele é um dos mais aclamados escritores do país, o mais conhecido pelo mundo fora. Ele é o segundo escritor cabo-verdiano a ganhar o Prémio Camões. Arménio Vieira ganhou em 2009 e, agora, em 2018, o prémio é atribuído ao Germano. São dois prémios para Cabo Verde em tão curto período de tempo. Diga-se de passagem, o Prémio Camões chegou muito tardiamente a Cabo Verde. Tivemos grandes escritores que poderiam ter recebido um medalhão desta natureza, mas que injustamente morreram sem tal distinção. Refiro‑me, por exemplo, ao romancista Henrique Teixeira de Sousa ou ao poeta João Vário, cuja obra completa já tinha relevância no decurso do referido prémio. De certo modo, Cabo Verde foi injustiçado durante longos anos. Com a atribuição do anterior Prémio Camões a Arménio Vieira, houve uma espécie de ressurgimento de Cabo Verde no panorama literário dos países que escrevem em português. Assiste-se atualmente a uma efervescência literária em Cabo Verde, algo extraordinário. Não estou a dizer que há uma ligação direta entre a atribuição do Prémio Camões a Arménio e a agitação literária no país, mas não podemos ignorar que ultimamente muita coisa boa tem acontecido em torno da literatura e que este prémio teve um impacto enorme na cena literária. Isto coincide com o aumento do acesso ao ensino superior, a maior acessibilidade às tecnologias de comunicação e informação, a criação de novas editoras no país. Nos últimos tempos, parece que, a cada ano, escritores esquecidos nos anais da história são evocados e novos escritores se despontam para a alegria e satisfação de todos nós. Na verdade, sempre que um escritor cabo-verdiano ganha um prémio, sobretudo quando é de aclamação internacional, é Cabo Verde que se projeta pelo mundo fora. Isto acaba por nos dar um certo ânimo e para chamar a atenção do mundo para a existência das nossas ilhas e deste povo maravilhoso, cuja riqueza maior é a sua criatividade para reinventar os dias a partir do nada. Espera-se que esse reconhecimento de mais um escritor cabo-verdiano possa contribuir para que outros nomes da já secular literatura destas ilhas sejam apreciados por leitores de português do mundo inteiro.

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Autoria:Eurídice Monteiro,12 jun 2018 6:30

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  5 mar 2019 23:21

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