Parece estar evidente um padrão na escrita de Germano Almeida: os seus protagonistas estão quase sempre mortos e esta condição não os impede de interferir no mundo dos vivos. Foi assim com “O Testamento do Senhor Napumoceno da Silva Araújo” (1989), com “Memórias de Um Espírito” (2001) e com “ A Morte do Ouvidor” (2010), só para citar alguns. E volta a acontecer com o seu novo romance, “ O Fiel Defunto”, a ser lançado e apresentado na próxima semana em Mindelo, São Vicente.
É o próprio autor que revela, em entrevista exclusiva ao Expresso das Ilhas, (edição hoje nas bancas) os contornos desta história que a sua editora em Cabo Verde, Ana Cordeiro, terá reconhecido ter um pé no género policial.
“É uma paródia. “ O Fiel Defunto” conta uma história inventada. Quando digo que é o meu primeiro romance as pessoas protestam. Digo isso porque é uma história que não nasce a partir de uma história qualquer, concreta, mas a partir de uma invenção. Inventei um personagem que era um grande escritor, que publicava dois livros por ano mas depois pára de escrever. Passados alguns anos, vai publicar um livro. E no dia do lançamento um amigo dá-lhe dois tiros no peito e mata-o. A história desenrola-se a partir disto, com o Governo a tomar conta, com velório no palácio, missa na Rua de Lisboa… Depois, vai se conhecendo as pessoas que giram à volta do defunto”.
A sinopse revela mais e deixa perceber algumas coincidências entre personagem e autor, algo que também não é novidade na escrita do boavistense.
"Toda a gente foi apanhada de surpresa, pelo que ninguém tentou impedir o inesperado assassinato do mais conhecido e traduzido escritor das ilhas, breves momentos antes do início da cerimónia de apresentação do que acabou por ser a sua última obra. E, no entanto, nesse dia o vasto auditório transbordava de uma festiva multidão de fãs e outros curiosos, todos impacientes ante a expectativa de ter um autógrafo no já muito badalado livro que se preparavam para adquirir. De modo que a ninguém terá passado pela cabeça que um evento daquela natureza, sempre aguardado com geral e grande ansiedade, poderia vir a ter um desfecho tão inesperado quanto brutal, especialmente tendo em conta a qualidade das pessoas envolvidas na tragédia".
Entretanto, o apetite para o policial também emergia numa história passada nos bastidores do encontro literário Correntes d'Escrita e que o escritor acabou por abandonar. O autor conta, na mesma entrevista à edição impressa desta semana do Expresso das Ilhas, que se tratava de uma investigação a um roubo ocorrido durante o referido evento da cidade portuguesa Póvoa de Varzim, no qual ele mesmo é um habitué, e que teria escritores conhecidos como inspiração para os personagens, sendo ele próprio um deles.
"Comecei a escrever e cheguei a umas páginas mas, quando alguém entra na realidade concreta de transformar pessoas vivas em personagens engata. Então, há anos que comecei essa história mas nunca consegui avançar", revela.
Germano Almeida (Boa Vista, 1945), formado em Direito e advogado de profissão, iniciou a carreira literária na década de 80 com publicações na revista Ponto & Vírgula sendo o primeiro livro, “ O Dia das Calças Roladas”, de 1982. É o escritor cabo-verdiano mais publicado e traduzido internacionalmente e duas obras suas foram adaptadas ao Cinema (“O Testamento do Senhor Napumoceno” e “Os Dois Irmãos”). Foi esta semana anunciado como o laureado com o Prémio Camões 2018, sucedendo ao português Manuel Alegre e tornando-se o segundo escritor cabo-verdiano a receber esta distinção.
“O Prémio Camões para Germano Almeida é um motivo de orgulho e de alegria para todos nós, seus amigos e fiéis leitores, mas comemorar esse prémio com o lançamento de um novo romance é motivo de redobrada alegria”, escreveu Ana Cordeiro, da Ilhéu Editora, em reacção ao anúncio feito na segunda-feira.
A Ilhéu Editora, que publica este “O Fiel Defunto”, é uma das mais antigas chancelas do país e tem sido desde sempre a editora de Germano Almeida, em Cabo Verde (o autor é representado internacionalmente pela editora portuguesa Caminho). Tem também no seu catálogo de obras publicadas os nomes de autores como Arménio Vieira (Prémio Camões 2009), G.T. Didial (João Vário), Vasco Martins e Luís Romano, entre outros.