É assim que, face a um ecossistema em que já predominavam mais de 4 milhares de acordos bilaterais de serviços aéreos, enlaçando quase duas centenas de estados, a comunidade internacional acordou, sobre a égide da ONU, inserir uma cláusula relativa à segurança aérea (a security clause) em todos os acordos bilaterais, tendo o Conselho da ICAO adotado um modelo de “Cláusula de Segurança Aérea”, que passou a figurar na quase totalidade dos acordos bilaterais celebrados a partir dessa data. De acordo com a security clause, os estados acordam e reconhecem que a proteção contra os atos de interferência ilícita visando aviação civil faz parte das suas obrigações e comprometem-se em atuar de acordo com as disposições das Convenções de Tóquio, de Haia, de Montreal e de Pequim. Pois bem, num sector fortemente regulado e regulamentado como o é o dos transportes aéreos, em que as receitas as taxas e tarifas, bem como os preços (excluindo os não-aeronáuticos) estão sujeitos a critérios, processos, procedimentos e escrutínio de várias autoridades e stakeholders, (re)desenhar uma taxa requereria uma maior ponderação, melhor concerto bem como consultas prévias nos moldes recomendados pela agência especializada e autorizada da ONU que tem publicada vasta documentação sobre como proceder nessas circunstâncias.
Quando todos nós estávamos à espera de melhores argumentos e ilações por parte da autoridade competente (AAC) ou governo que, esconjurassem esse sabor a contrafação, provocado pelo diploma e que nos ajudasse a compreender melhor o processo e a relação entre os custos do nosso novo sistema de segurança aérea versus o nível de ameaça e riscos os quais estamos expostos e queremos aplacar, somos obsequiados com uma dulcificante entrevista feita a um representante da autoridade competente em que o foco é retirado “ingenuamente” da TSA (celeuma criada) para nos agruparmos à volta do valor do pacote que resulta do somatório das nossas diversas taxas aeroportuárias, “publicitando” que temos as taxas mais baixas e competitivas da sub-região, onde “pontuam”: a Nigéria, a Guiné Bissau, a Libéria, a Serra Leoa, o Mali, a Guiné Conakry e o Burquina Faso... Colocar o spot no pacote de taxas existente e comparar o mesmo à nossa vizinhança em matéria de aviação civil, deixa porejar uma eventualidade (perversa) daquilo que na indústria estudiosos e analistas de renome chamam de “Regulatory Capture”, situação em que as relações entre o regulador e alguns agentes tornam-se “cordiais”, “...may become too close...”, devido a conjunturas muito específicas, dando lugar àquilo que os anglo-saxões chamam de “...opportunistic behaviour by the regulator...” o que a acontecer é altamente desestabilizador e prejudicial para o sistema no seu todo.
Entendemos que foram “esquecidas” referências interessantes do negócio na nossa região e à guisa de exemplo vejamos as seguintes : para se viajar na classe económica, o europeu (nosso cliente) continua a gastar para ter acesso à nossa região e na classe económica $12.38 USD por cada 100km percorridos; para os destinos com os quais concorremos esse mesmo europeu gasta $8.95 USD por cada 100Km percorridos (só a nossa TSA é de $34USD que dá para percorrer 400km aos nossos clientes); em mais de uma dúzia de rotas no interior da nossa vizinhança, com $1USD o turista europeu compra apenas 1.49 km/classe económica e para os destinos com os quais estamos a disputar mercado, com esse mesmo $1USD o europeu (nosso turista) compra 3.98 km/classe económica. Mas mais, aterrar uma aeronave de 200 toneladas, p.e., numa cidade global como Londres, cidade alvo de muitos atentados, com um nível de serviço aeroportuário de TOP, custa três vezes mais barato do que num dos nossos citados concorrentes. A que propósito essa dulcificada comparação(?); estamos olhando para que mercados, para que práticas, para que referências e competidores?
O nosso driver é o turismo, o mercado emissor é a Europa, os nossos competidores não estão na nossa sub-região, mas sim na “renovada” Tunísia, na exótica Turquia, nas atraentes Croácia e Grécia, em Espanha, no Egito e no Marrocos, destinos que à nossa semelhança conjugam Sol&Praia, conseguem agregar património arquitetônico, cultural e histórico de invejável valor. Como vir agora e a que propósito estabelecer paralelo com países que não têm turismo (evocando cirurgicamente estudos da IATA para ludibriar incautos) e, porque não olhar e trazer dados, práticas, opções relacionadas com os casos de sucesso e que nos dizem respeito? Como se pode comprovar, em todos esses países que realmente nos interessam, as TSA´s são muito menores do que os 30€ que iremos passar a cobrar pois que, entre o Marrocos e a Turquia, passando por Tunísia, Canárias e Grécia, as TSA´s variam entre 0,0€/passageiro (Turquia) a 5€/passageiros (Croácia).
Cabo Verde com uma fatia de mercado correspondente a 3,5% do mercado africano (Magreb com 42%) deve aspirar a ganhar mais peso, mas para isso tem que olhar para os pacotes de acesso às infraestruturas aeroportuárias dos seus verdadeiros competidores e não para os pacotes da vizinhança. Nos mercados onde predomina um monopólio natural do tipo do negócio aeroportuário, uma opção para a determinação de uma TSA justa, poderá ser um modelo simples e transparente, em que a empresa que detém o monopólio do negócio aeroportuário e a quem o estado delegou a função de segurança, cobra um valor em que a receita total (RT) seja exatamente igual ao custo total (CT), e o ponto de interseção do custo marginal (CMg) com o custo médio (CMe) se situa no limiar da rentabilidade pelo que o lucro é zero, cumprindo-se assim o princípio universalmente aceite de que a TSA não pode ser superavitária e que o estado, tendo em conta as suas atribuições e deveres, cobre como lhe compete qualquer “perda” eventual.
É um mecanismo simples e recomendado que impede que se caia na tentação da geração dos perversos “monopoly profits”, quando os governos tendem a maximizar os seus revenues, via taxas arbitrariamente aplicadas, para no final do dia sustentarem artificialmente sistemas ineficientes, de baixa qualidade, inibidoras de um mercado vibrante, que não estimula o despertar da demanda latente. No caso da recém aprovada TSA, estamos perante um caso em que uma taxa sofre um incremento dramático, o autor desse incremento é o único “acionista” das instituições que vão receber as receitas ou seja a ASA, a PN e o tesouro. Não se explica como se chegou ao valor e sem titubear esclarece-se que um dos objetivos é gerar receitas para financiar atividades do estado...; em que uns utentes pagam pelo serviço prestado e outros beneficiam desse mesmo serviço, mas não pagam, isso em função da sua nacionalidade(?!)... mais, acrescenta-se (uma cereja) que se pretende securizar as fronteiras nacionais, mas o único a arcar com os custos é o utente do transporte aéreo(!?). O regulador, que goza de um estatuto independente, inamovível, para poder manter a isenção e a objetividade, na defesa dos interesses intrínsecos à indústria, seus provedores e utilizadores, consegue ver nisso «mais-valias» onde são óbvios a falta de transparência e de coerência com as melhores práticas internacionais e o desvio grosseiro em relação às recomendações produzidas pelas instâncias de regulação e supervisão supranacionais; os parlamentares só despertaram para o problema 1 ano depois da alteração do diploma que deu origem a toda essa salgalhada; S.E. o Senhor Presidente da República admitiu publicamente que pensava que a TSA era mais uma forma legítima de gerar receitas para o financiamento de serviços da responsabilidade do estado (?!); o Sr. Primeiro Ministro já admitiu a possibilidade de uma revisão e parece que o Tribunal Constitucional vai ser acionado... Até lá, os principiais players do game devem ter em mente que o turismo gera emprego e ajuda a criar riqueza em Cabo Verde ao mesmo tempo que nos permite consolidar-nos como um destino de referência e plataforma de prestação de serviços diversos, sendo que os aeroportos nesse puzzle todo devem cumprir dentre outros o papel de facilitadores e impulsionadores de outros sectores económicos e não de “predadores”.
Ora, cairmos na tentação (outros já o fizeram com consequências nefastas) de impor gradualmente aqui e acolá custos não devidamente ponderados e justificados poderá funcionar como um desincentivo à demanda, um destino menos atrativo. Poderá Cabo Verde dar-se a esse luxo?
1 A ICAO que goza no território de cada estado contratante da capacidade jurídica necessária para o exercício das suas funções, e na qualidade de agência especializada da ONU tem capacidade judiciária, podendo apresentar reclamações internacionais contra os estados.
2 Normas e práticas recomendadas cuja aplicação uniforme é reconhecida como desejável por todos no interesse da segurança, da regularidade, da eficiência e sustentabilidade do sector.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 876 de 12 de Setembro de 2018.