O acesso universal ao saber, tanto o das humanidades como o das artes, ciências e técnicas, torna-se num ideal mais próximo da realidade com a invenção da imprensa e com a Enciclopédia (Encyclopédie). A luz espiritual das religiões e das ideias de Bem, Belo, Justo e Verdadeiro na filosofia platónica tornam-se nas luzes da liberdade, democracia e autonomia, consignadas na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Este percurso histórico da educação, desde a paideia (misto de cultura, educação e formação) helénica, passando pelo trivium (retórica, gramática, lógica) e quadrivium (matemática, música, física, astronomia) nos currículos das primeiras Universidades medievais, até ao humanismo renascentista e à Enciclopédia Iluminista, chega hoje aos tempos da chamada escola numérica e a uma Universidade ainda por (re)inventar.
Hoje assistimos à emergência de um homo numericus (homem numérico) dispensado de pensar e decidir porque, do tratamento da informação às decisões, ocorre uma resposta automática, com base em algoritmos. O paternalismo que se substitui à autonomia e á decisão (pessoal ou social, coletiva), ou seja, à responsabilidade (individual e societária) regressa a um estado pré-crítico, anterior às luzes e ao projeto que, de Kant a Popper, defende a razão crítica e a sociedade aberta. Há um paralelismo entre o que ocorre ao nível socio-político e no âmbito académico. Nos modos de governação, após um certo consenso sobre a democracia liberal como forma de governo mais adequada, apresentada em termos de filosofia jurídica, política, e de valores universais, na obra de Francis Fukuyama intitulada O Fim da História, assistimos ao crescimento de modelos neo-hobbesianos de tipo autoritário, onde se apresenta a segurança como valor prioritário sobre a liberdade, legitimando um Estado “Leviatã” que tudo decide, desde a cultura até á educação, justiça ou economia. Na academia, o sociólogo Frank Furedi, da Universidade de Kent (Reino Unido), denuncia o processo que designa como “infantilização da Universidade”, que consiste na restrição da liberdade académica, menorizando a capacidade da academia – docentes, investigadores e estudantes - para construir livremente o saber. Tal como a revolução científica da modernidade promoveu a experimentação no âmbito da construção do conhecimento científico, ou seja, da ciência experimental, a Universidade tem uma tradição de experimentação intelectual onde novas ideias são livremente discutidas.A investigação científica implica a possibilidade de um pensamento divergente face ao estabelecido: sem este não teria havido uma revolução científica, nem a emergência da revolução copernicana divergindo da Astronomia aristotélico-ptolomaica, nem da relatividade einsteiniana face à física newtoniana, por exemplo. A uniformidade das visões dogmáticas, que seriam pretensamente corretas e nos dispensariam de exercer a nossa própria reflexão, contraria esta possibilidade de divergir, não apenas baseado em diversas opiniões, mas num debate sustentado por argumentos, ou seja na tradição da razão crítica e na sociedade aberta. O lema de Kant sobre as luzes como capacidade para Pensar por si mesmo (Sebstdenken), sem sermos tutelados, e a sua referência ao atingir de uma maioridade que corresponderia a esse uso autónomo do seu próprio entendimento, é retomado pelo sociólogo e professor universitário Peter Kemp,numa obra em que se interroga sobre o que ocorre atualmente na Universidade e na sociedade. Kant definia as luzes como maioridade pessoal e social, enquanto Kemp se refere a uma “infantilização da Universidade” quando se restringe a liberdade académica, ainda que em nome das melhores ideias. Perante a proliferação de notícias falsas e da pós-verdade, a Universidade não deve menorizar o estudante propondo-se tutelá-lo ao por ele, mas dotá-lo com uma formação que o leve a questionar os lugares comuns e a exercer autonomamente o seu juízo crítico. Nenhum pretexto ideológico ou tecnológico pode anular este valor fundamental da liberdade no mundo social e académico, impondo um pensamento dogmático ou substituindo a autonomia do pensamento, decisão e acção por um procedimento algorítmico ou automático. Os avanços tecnocientíficos não anulam, mas aumentam a nossa responsabilidade perante as opções que nos vêm colocar: será preciso encontrar um novo equilíbrio entre a tecnociência e a sabedoria, entre a razão e a sapiência, entre racionalidade científica e a ética, o logos e o ethos). A tecnociência não suprime a necessidade de uma sabedoria ética, mas implica-a (Cf. Gilbert Hottois, Technoscience et sagesse) – donde decorre a importância das humanidades, onde se forma a consciência ética e axiológica (valores) na Universidade. Quando, justamente, celebramos os direitos humanos, devemos incluir neles, com destaque, o direito à educação integrando o que Montesquieu designa como as condições da liberdade e Patrice Canivez enuncia: Reconhecer a outrem a qualidade de sujeito é reconhecer-lhe ipso facto o direito à educação. Porque a educação é o que lhe permite construir-se como um ser de pensamento, de palavra e de comunicação. Um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, em conjunto com a liberdade, é o de adquirir os meios intelectuais para se tornar livre. A Universidade tem como missão mais elevada proporcionar esses meios com os quais se constrói a liberdade.
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 896 de 30 de Janeiro de 2019.