Formação universitária e liberdade académica

PorCarlos Bellino Sacadura,4 fev 2019 13:53

Carlos Bellino Sacadura
Carlos Bellino Sacadura

​As questões relativas ao Ensino Superior têm estado na ordem do dia em Cabo Verde, a propósito da implementação de algumas estruturas de gestão nesta área, no âmbito da regulação do sistema, do Estatuto do Investigador, ou da carreira docente. Por outro lado, ocorreram recentemente as comemorações do dia liberdade e democracia, celebrado em diversas instâncias, tendo esta referências dado origem a esta breve reflexão, que mais não visa do que suscitar a do próprio leitor.

O acesso universal ao saber, tanto o das humanidades como o das artes, ciências e técnicas, torna-se num ideal mais próximo da realidade com a invenção da imprensa e com a Enciclopédia (Encyclopédie). A luz espiritual das religiões e das ideias de Bem, Belo, Justo e Verdadeiro na filosofia platónica tornam-se nas luzes da liberdade, democracia e autonomia, consignadas na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Este percurso histórico da educação, desde a paideia (misto de cultura, educação e formação) helénica, passando pelo trivium (retórica, gramática, lógica) e quadrivium (matemática, música, física, astronomia) nos currículos das primeiras Universidades medievais, até ao humanismo renascentista e à Enciclopédia Iluminista, chega hoje aos tempos da chamada escola numérica e a uma Universidade ainda por (re)inventar.

Hoje assistimos à emergência de um homo numericus (homem numérico) dispensado de pensar e decidir porque, do tratamento da informação às decisões, ocorre uma resposta automática, com base em algoritmos. O paternalismo que se substitui à autonomia e á decisão (pessoal ou social, coletiva), ou seja, à responsabilidade (individual e societária) regressa a um estado pré-crítico, anterior às luzes e ao projeto que, de Kant a Popper, defende a razão crítica e a sociedade aberta. Há um paralelismo entre o que ocorre ao nível socio-político e no âmbito académico. Nos modos de governação, após um certo consenso sobre a democracia liberal como forma de governo mais adequada, apresentada em termos de filosofia jurídica, política, e de valores universais, na obra de Francis Fukuyama intitulada O Fim da História, assistimos ao crescimento de modelos neo-hobbesianos de tipo autoritário, onde se apresenta a segurança como valor prioritário sobre a liberdade, legitimando um Estado “Leviatã” que tudo decide, desde a cultura até á educação, justiça ou economia. Na academia, o sociólogo Frank Furedi, da Universidade de Kent (Reino Unido), denuncia o processo que designa como “infantilização da Universidade”, que consiste na restrição da liberdade académica, menorizando a capacidade da academia – docentes, investigadores e estudantes - para construir livremente o saber. Tal como a revolução científica da modernidade promoveu a experimentação no âmbito da construção do conhecimento científico, ou seja, da ciência experimental, a Universidade tem uma tradição de experimentação intelectual onde novas ideias são livremente discutidas.A investigação científica implica a possibilidade de um pensamento divergente face ao estabelecido: sem este não teria havido uma revolução científica, nem a emergência da revolução copernicana divergindo da Astronomia aristotélico-ptolomaica, nem da relatividade einsteiniana face à física newtoniana, por exemplo. A uniformidade das visões dogmáticas, que seriam pretensamente corretas e nos dispensariam de exercer a nossa própria reflexão, contraria esta possibilidade de divergir, não apenas baseado em diversas opiniões, mas num debate sustentado por argumentos, ou seja na tradição da razão crítica e na sociedade aberta. O lema de Kant sobre as luzes como capacidade para Pensar por si mesmo (Sebstdenken), sem sermos tutelados, e a sua referência ao atingir de uma maioridade que corresponderia a esse uso autónomo do seu próprio entendimento, é retomado pelo sociólogo e professor universitário Peter Kemp,numa obra em que se interroga sobre o que ocorre atualmente na Universidade e na sociedade. Kant definia as luzes como maioridade pessoal e social, enquanto Kemp se refere a uma “infantilização da Universidade” quando se restringe a liberdade académica, ainda que em nome das melhores ideias. Perante a proliferação de notícias falsas e da pós-verdade, a Universidade não deve menorizar o estudante propondo-se tutelá-lo ao por ele, mas dotá-lo com uma formação que o leve a questionar os lugares comuns e a exercer autonomamente o seu juízo crítico. Nenhum pretexto ideológico ou tecnológico pode anular este valor fundamental da liberdade no mundo social e académico, impondo um pensamento dogmático ou substituindo a autonomia do pensamento, decisão e acção por um procedimento algorítmico ou automático. Os avanços tecnocientíficos não anulam, mas aumentam a nossa responsabilidade perante as opções que nos vêm colocar: será preciso encontrar um novo equilíbrio entre a tecnociência e a sabedoria, entre a razão e a sapiência, entre racionalidade científica e a ética, o logos e o ethos). A tecnociência não suprime a necessidade de uma sabedoria ética, mas implica-a (Cf. Gilbert Hottois, Technoscience et sagesse) – donde decorre a importância das humanidades, onde se forma a consciência ética e axiológica (valores) na Universidade. Quando, justamente, celebramos os direitos humanos, devemos incluir neles, com destaque, o direito à educação integrando o que Montesquieu designa como as condições da liberdade e Patrice Canivez enuncia: Reconhecer a outrem a qualidade de sujeito é reconhecer-lhe ipso facto o direito à educação. Porque a educação é o que lhe permite construir-se como um ser de pensamento, de palavra e de comunicação. Um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, em conjunto com a liberdade, é o de adquirir os meios intelectuais para se tornar livre. A Universidade tem como missão mais elevada proporcionar esses meios com os quais se constrói a liberdade.

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 896 de 30 de Janeiro de 2019.

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Autoria:Carlos Bellino Sacadura,4 fev 2019 13:53

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  27 out 2019 23:21

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