A Ofensiva dos “Melhores Filhos” e a Cumplicidade dos “Filhos Pródigos” e “Adoptivos”

PorArmindo Ferreira,21 fev 2019 6:06

​O respeito pela dignidade, pela diferença, pelas instituições e pelo primado da lei são indicadores essenciais para uma primeira abordagem sobre a saúde de uma democracia.

Hoje proliferam as chamadas “fake news” (notícias falsas). Alguns estudiosos sobre este assunto dizem que não existem “fake news” e que as situações a que dão esse nome deviam ser designadas por “misinformation” (desinformação), o que é bem diferente.

Há quase três décadas que o período de 13 a 20 de Janeiro é marcado no nosso calendário político recorrentemente por uma narrativa histórica efabulada e hiperbolizada que de forma calculada, estudada, visa efeitos bem definidos, ao fugir deliberadamente da verdade dos factos e se situar no domínio, não das “fake news” mas das “misinformations”, da manipulação da informação, com a intenção expressa de reescrever uma suposta História “gloriosa” do nosso País, curiosamente, vivida e ocorrida na Guiné- Bissau, como se de acerca de um corpo expedicionário, devidamente mandatado, se tratasse.

Amílcar Cabral (AC), o centro nevrálgico de toda a narrativa, a trave mestra de toda a trama, o instrumento necessário e indispensável para a credibilização da narrativa, é, bizarramente elevado ao estatuto de fundador de uma nação – a nossa – que já existia uns séculos antes do seu nascimento. Ele que, por razões tácticas, estratégicas ou outras, nunca se considerou cabo-verdiano, não obstante ter usufruído durante toda a sua vida académica de uma bolsa de estudo destinada aos “naturais da Província de Cabo Verde”, pelos vistos “indevidamente”. (Vide Daniel dos Santos in Amílcar Cabral – Um Outro Olhar).

Considerar AC o fundador da nacionalidade cabo-verdiana seria (ou é), de uma certa forma, como se alguém tivesse a ideia patética e estapafúrdia de considerar Ben Gurion o fundador da nacionalidade judaica. O mesmo não acontece com a Guiné-Bissau em que, por via da luta para a independência se deu início a um processo liderado por AC de formação de uma única Nação através da unificação das quase três dezenas de nações (Vide Ruth Benedict – Padrões de Cultura) existentes no território, aliás, um dos parâmetros conducentes a considerar a “luta da Independência”, sobretudo em África, também um acto de cultura.

E nesta obsessão de fazer de Amílcar Cabral o fundador da nacionalidade e para dar alguma consistência a este desiderato, chega-se a forjar a sua própria naturalidade, como se esta – a naturalidade – fosse algo que se outorga ou se herda.

Abrindo um pequeno pa­rên­tese clarificador, convém aqui referir que Amílcar Cabral, natural de Bafatá - Guiné, viveu apenas dez anos em Cabo Verde: três (2 + 1) anos na Praia, terra da mãe – Iva Pinhel Évora – e sete no Mindelo, para onde a mãe se mudara para o acompanhar nos seus sete anos do Liceu Gil Eanes. Depois de terminar o curso em Portugal, na viagem para a Guiné com escala na Praia, sequer saiu do barco para se encontrar com familiares e eventuais amigos, tendo preferido ficar a bordo onde recebeu a visita do Dr. Arnaldo França, seu antigo condiscípulo do liceu.

Fechando o parêntese e retomando o assunto, a gravidade da questão não reside apenas na exaltação da figura de AC que é apenas um meio, mas na investida de impor a sociedade cabo-verdiana uma História que não é a sua e ao Estado uma ideologia (que a Constituição proíbe), com recomendações várias de a alargar e perenizar através das nossas escolas e de todo o sistema educativo. Não tem faltado incursões pelas Escolas e produções literárias de cariz paigcista panegíricas.

Este ano de 2019 foi particularmente prenhe de ofensivas feitas pelo PAIGC cabo-verdiano de consolidação da sua estratégia de fagocitar o “novo” MpD e dominar todo o aparelho do Estado impondo a sua idiossincrasia política, a sua ideologia.

A ofensiva paigciana chegou ao desplante de assumir, em alguns casos, a paternidade do 13 de Janeiro – data da nossa autodeterminação, isto é, da conquista da nossa liberdade e da nossa democracia – considerando-o uma ocorrência menor, e subordinando-o à “nossa” independência sob a égide de um Partido que não foi só autoritário e repressivo como foi manifestamente hostil à uma importante parte da nação cabo-verdiana – a emigração – que tratou de a ampliar com a criação de uma verdadeira diáspora política.

O 13 de Janeiro, ao contrário, é uma data de liberdade e de democracia de todos os cabo-verdianos – dentro e fora do País – e não apenas de alguns, de uma parte, de um Partido restrito a um pequeno território.

Mas tudo vem sendo possível graças ao “Pacto da Cidade Velha” que impôs o silêncio sobre a Ditadura do Partido Único ao mesmo tempo que facilita e promove a reelaboração – reconfigurando-a – de uma História com base nela.

Nesta movimentação não faltou a cumplicidade de importantes figuras do Estado e da sociedade política que tendo sido outrora maltratadas e escorraçadas do seio dos “melhores filhos” para eles regressam hoje quais “filhos pródigos” na ânsia de recuperar um lugar na História reconfigurada e reescrita na qual vêm participando activamente.

A vontade de agradar e de se subordinar é tanta que hoje, de entre outras coisas, determinados actos particulares e partidários da esfera do PAIGC ou de inspiração paigciana foram trasvestidos, com pompa e circunstância, em cerimónias e celebrações de Estado.

Encontram-se ainda em várias Repartições e, ao que se diz, até no Palácio, retratos de Amílcar Cabral. E a verdade é que ele não consta em nenhuma linha ou página da nossa Constituição. Em suma: Ele não é figura do Estado, o que não quer dizer que não seja da História…

Por este andar, com a manipulação, a formatação e a subordinação do Sistema Educativo bem como um certo desleixo ou desconhecimento de alguma comunicação social, não tarda muito que tenhamos uma espécie de “União Nacional” como metáfora de partido único a comandar os nossos destinos.

O que se está a passar na nossa sociedade política é simplesmente inqualificável. Mas que ninguém tenha dúvidas: Conseguido o objectivo o “Pacto” será desfeito.


Publicado em http://coral-vermelho.blogspot.com/


Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 898 de 13 de Fevereiro de 2019.

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Autoria:Armindo Ferreira,21 fev 2019 6:06

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  11 nov 2019 23:21

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