E começamos pelo Memorandum endereçado ao Governo Português em 1960, contendo o caderno reivindicativo da Independência, por sinal reproduzido a páginas 497 a 501 dessa obra, documento em que sobressaem os traços essenciais do projecto que o nacionalismo, encabeçado por Amílcar Cabral, decidiu abraçar e empunhar como a sua bandeira emancipadora.
Emancipação da Terra e do Homem, ancorada no primado da soberania popular, como fonte exclusiva da legitimação do Poder Político, e no respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais dos cidadãos, incluindo a de formação de partidos políticos e sindicatos (p. 499, parág. 4).
Por isso, ousaríamos mesmo dizer que está plasmada nesse histórico documento uma certa ideia de Direito, suficiente para dar corpo e alma àquilo que bem podia vir a ser a nossa primeira Constituição.
Ou seja, na sua origem, a reivindicação da Independência Nacional, feita por Amílcar Cabral e seus companheiros de jornada, caminha de mãos dadas com a Liberdade e a Democracia, seguramente a razão que levou importantes segmentos da Sociedade Cabo-verdiana, dentro e fora do Arquipélago, a se identificarem com essa nobre causa.
2. Nem mesmo o facto de, a partir de 1963, Cabral ter lançado mão da via revolucionária, com todos os seus ónus e encargos, será suficiente para desvirtuar essa evidência.
Aliás, esta via pode ser, por vezes, o único caminho para se chegar à democracia, como confirma o exemplo da Revolução dos Cravos em Portugal, tida como a precursora da terceira vaga das democracias, mas que, em abono da verdade, não pode ser dissociada das lutas de libertação nas ex-colónias, que para ela também contribuíram, muito em particular a luta na Guiné Bissau.
De mais a mais, no caso de Amílcar Cabral a via revolucionária não terá sido propriamente uma opção, mas sim uma imposição, decorrente da intransigência do Poder Colonial, que não deixou ao nacionalismo por ele liderado outra alternativa que não fosse o recurso às armas para impor o reconhecimento do direito à autodeterminação e à plena soberania.
3. E porque foi compelido a uma guerra de libertação, não parece justo que Amílcar Cabral seja retirado desse contexto para ser julgado e, porventura, condenado, como se tivesse sido um diletante tribuno do Cartier Latin de Paris, com desconsideração pela máxima de Ortega y Gasset que o homem é ele e as suas circunstâncias.
Efectivamente, não será exagero sustentar que as condições em que o mesmo dirigiu a luta pela Independência, particularmente na Guiné, foram de verdadeiro estado de excepção, na sua modalidade mais premente e rigorosa de estado de guerra2. Aliás, é dele a afirmação de que “a situação da Guiné-Bissau é a de um Estado que tem parte do seu território ocupado por forças estrangeiras”.
Ora, a mera observação empírica dá-nos conta de que o estado de excepção, quando determinado por guerra ou agressão estrangeira, implica, em regra, pelo menos duas coisas: (i) uma liderança forte e personalizada, susceptível de ser facilmente confundida com o autoritarismo, embora por vezes resvale efectivamente para o autoritarismo; e (ii) a compressão, na justa medida do necessário, da democracia, com concomitante suspensão ou restrição de certas liberdades fundamentais, como se pode ver, hoje em dia, dos artigos 27º, 270º e seguintes, da nossa Constituição de 1992.
E,justiça seja feita à liderança dos nacionalistas, a existência desse período de excepção, bem como da sua natureza transitória, está assumida e devidamente fundamentada em documentos, presumivelmente da autoria do próprio Amílcar Cabral:
“...enquanto a nossa luta for a que é e enquanto o nosso tipo de política for aquele que nós temos, o Secretário-Geral do Partido é que é o Chefe Supremo de toda a gente do Partido. (...) Nas condições da nossa terra e da nossa luta, por mais democratas que sejamos, democracia para nós é isso mesmo” (p. 334/5).
Singela adaptação a um movimento de libertação da regra consuetudinária que, em tempo de guerra, confere estatuto de efectivo Comandante Supremo a quem é ou faz as vezes de Chefe do Estado.
4. Infelizmente, Amílcar Cabral, o revolucionário, não pôde dispor da oportunidade para aprofundar e pormenorizar os elementos do seu pensamento que permitissem antever, ao menos com alguma nitidez, a posição que, finda a guerra e conquistada a Independência, ele acabaria por adoptar no que toca a tópicos como a natureza do Estado, o regime político e as liberdades fundamentais dos cidadãos.
Ainda assim, daquilo que dele se conhece, nomeadamente a sua concepção da democracia revolucionária3, parece sobressair como elemento estruturante do seu pensamento político o princípio da soberania popular, como se pode ver da seguinte exortação que faz aos seus camaradas:
“Temos de lutar, custe o que custar, para o nosso Povo sentir que ele é que tem o Poder nas mãos na nossa terra. Até agora ele não o sentiu muito bem. Nas áreas libertadas alguns camaradas têm usurpado esse poder ao nosso Povo. Temos de passá-lo (o Poder) para as mãos do nosso Povo; ainda estamos em guerra, é um bocado difícil(mais uma vez a assunção do referido estado de excepção, transitório, e dos seus efeitos constrangedores), mas à medida que avançamos temos de passar (transferir) o Poder para o nosso povo, para ele ter a certeza de que o Poder é seu de facto.4
Esse posicionamento de Cabral, em relação à titularidade do Poder, ganha superior significado no contexto mais abrangente das suas preferências políticas.
5. Por exemplo, era conhecida a sua grande admiração pela social-democracia Sueca, liderada pelo seu amigo Olof Palme, aonde encontrou não só substancial apoio material e moral, como também a mais profunda inspiração para a prossecução da sua luta, com crescente determinação. Isso é comprovado pelo postal que remeteu ao filho, com data de 30 de Outubro de 1972, recheado de ternura: “Raul, vês esta terra linda cheia de gente bem vestida? A nossa luta é para fazer a nossa terra assim: bonita, com toda a gente a viver bem, no trabalho e na justiça. A mamã vai explicar-te isso tudo. Beijo grande do Papá”5.
Ou seja, o exemplo de um mundo melhor, com toda a gente a viver bem, no trabalho e na justiça, que, a escassos meses de ser assassinado, Cabral aponta ao filho, como ilustração do que deseja(va) para a “nossa terra” independente, não é qualquer país do marxismo-leninismo puro e duro, do socialismo real, de “ordem rijo e trato mofino”, como ele chegou de desabafar ao também ícone do nacionalismo Cabo-verdiano, José Leitão da Graça6. Não era também uma república dos trabalhadores, ou dominada pela aliança operário-camponesa, como poderia sugerir o romantismo revolucionário da época.
No auge da Guerra Fria, a referência de Cabral era já mais moderada, política e ideologicamente, e muito mais ambiciosa no que toca ao efectivo bem-estar do povo: a social-democracia escandinava, em especial a implementada na Suécia, na altura uma das mais consolidadas democracias do mundo, com invejável nível de justiça social e menor índice de desigualdade, e que mais tarde passaria a ser conhecida como um país sem excelências e mordomias7.
6. E foi, precisamente, perante o congresso do Partido Social-Democrata Sueco, em Outubro de 1972, que Cabral haveria de fazer um dos seus pronunciamentos políticos mais fecundos, especificando as razões da sua luta e os valores fundamentais da nova ordem a ser erigida na “nossa terra”: (i) respeito pela dignidade humana, (ii) primado da democracia e (iii) igualdade de oportunidades, para todos terem uma vida digna.
Vejamos as suas próprias palavras:
“Porquê semelhante guerra (contra Portugal)?
Porque queremos restabelecer na nossa terra o respeito pela dignidade humana, porque queremos estabelecer na nossa terra uma ordem social em que a democracia seja o elemento essencial de todas as instituições e a base das relações humanas, onde cada ser humano possa ter uma oportunidade igual de viver uma vida plena carregada de significado”8.
Vale ainda acrescentar que essa convergência de Cabral com os valores da social- democracia, em especial a escandinava, encontra confirmação numa testemunha bem posicionada e de credibilidade inquestionável, Leopoldo Senghor, para quem: “certos Europeus, e até Africanos, quiseram ver um “marxista-leninista” no pensador que foi Amílcar Cabral, quando ele próprio, na prática, se referia muitas vezes ao socialismo escandinavo e notava, alguns meses antes da sua morte, num congresso do Partido Socialista Senegalês, as suas convergências connosco”9.
7. Precioso é, sem a menor dúvida, o depoimento do também politólogo Onésimo Silveira, que fala, não numa base puramente especulativa, ou de ouvir dizer, mas sim com o conhecimento directo da realidade, que lhe advém da sua qualidade de companheiro muito próximo de Amílcar Cabral e representante da luta pela Independência nos países nórdicos. Dizia ele que, questionado sobre que fazer com os quadros Cabo-verdianos que estavam na Administração Colonial na Praia, Cabral respondeu: “Vamos aproveitá-los. Eles têm conhecimentos que nos serão muito úteis depois da independência”. E remata: “Cabral era um homem pragmático, não pensava na eliminação de ninguém. Ele pensava, primeiramente, em aproveitar os recursos humanos”10.
Aqui fica bem vincada uma soberba visão de Estado, totalmente blindada ao revanchismo e ao sectarismo partidário, com o foco apenas numa coisa: o aproveitamento de todas as competências para o desenvolvimento do País. Visão de um “homem honrado, no sentido de ser um homem aberto, podia-se discutir com ele qualquer assunto”.
E “via-o como um autoritário também? Não, eu não o vejo assim. Há muita coisa que Cabral não era, era um líder forte e carismático, sobretudo na sua capacidade de argumentação.”11.
8. Curioso é que é na própria obra em referência que vamos encontrar os mais sólidos e persuasivos argumentos para se questionar a tese de que Cabral teria sido autoritário, ou professado ideias autoritárias, como se pode ver pela advertência que, em plena guerra, faz aos seus companheiros:
“Ninguém no Partido deve ter medo de perder o Poder. Muitos países caíram em desgraça porque os que mandavam tiveram medo de perder o lugar de comando” (p.334).
A firmeza, a convicção e a profundidade que brotam dessas palavras, desse desprendimento do Poder, não podem deixar ninguém indiferente, a começar pelo próprio autor Daniel dos Santos:
“A democracia era para Amílcar Cabral, o poder pelo povo, do povo e para o povo ou, mais concretamente, deve resultar do povo, pertencer ao povo e ser exercida pelo povo.
Quem se dispuser a examinar esse enunciado, pode facilmente verificar que o poder dos governantes, em Cabral, deve em tese advir da vontade popular. Ao pretender mostrar que o poder vem do povo, estaria a pensar, sem o mais pequeno equívoco, que àquele cabe unicamente a decisão de designar os governantes” (350/351).
9. Aqui chegados, e a fazer fé no rigor dessa análise, como sinceramente fazemos, já temos matéria suficiente para que cada um possa formar, em consciência, a sua própria opinião em relação à essência do pensamento político de Amílcar Cabral, particularmente no que toca à origem e à legitimidade do Poder.
Efectivamente, se para Cabral, como sublinha o Autor, a origem do Poder reside no Povo, a quem cabe exclusivamente designar os seus governantes, e se é ainda do seu entendimento que estes não devem ter medo de perder o Poder (por decisão soberana do Povo) então estamos, sem necessidade de outros considerandos, nos antípodas da concepção autoritária do Poder.
É que, é da natureza do autoritarismo a pretensão de confiscar o Poder e de nele se eternizar, mesmo contra a vontade do Povo, o que, como o próprio Autor atesta, foi rejeitado categoricamente por Amílcar Cabral.
10. Por conseguinte, aquilo que as passagens acima transcritas descrevem ajusta-se mais ao perfil de um paladino da genuína soberania popular, que defende de forma intransigente que, custe o que custar, mesmo que se tenha de perder o Poder,hipótese que nunca os autocratas colocam, é o Povo quem mais ordena!
Ou seja, tudo indica que Amílcar Cabral tenta incorporar no seu projecto de sociedade, em especial na sua democracia revolucionária, duas componentes que coexistem numa certa e compreensível tensão: a revolução,apontando para uma profunda transformação da sociedade, no sentido de maior e efectiva justiça social, e a legitimidade democrática do Poder.
Por isso mesmo, arriscamos a admitir que essas, juntamente com o respeito pela dignidade da pessoa humana, constituiríam, por certo, as traves mestras do projecto de Constituição que, sob a sua liderança, seria submetido à consideração da Assembleia Constituinte e Soberana de Cabo Verde.
Ora, isso traz-nos à lembrança, precisamente, o ideário da Revolução de Abril, que, de acordo com a versão originária da Constituição Portuguesa de 1976, apontava para a transformação de Portugal numa sociedade socialista, sem classes, mas sempre, e é isso que é determinante nessa afinidade, no estrito respeito pela vontade popular12.
11. Cabe, entretanto, reconhecer que, quer na democracia revolucionária de Cabral, quer no regime político vertido na versão originária da Constituição Portuguesa de 1976, está-se ainda bem longe da democracia liberal, que acabaria mais tarde por conquistar muitos dos revolucionários dos anos 70.
Na verdade, em ambos há uma combinação da legitimidade democrática, o princípio da soberania popular, com a legitimidade revolucionária, isto é a legitimidade, ainda que transitória, dos que fizeram a revolução (para transmitir o Poder ao Povo, tal como preconizava Cabral), como confirma a existência nos primeiros cinco anos da Democracia Portuguesa de um órgão tutelar, o Conselho da Revolução, integrado apenas por militares, desprovido de qualquer legitimidade eleitoral, mas que funcionava como o garante da fidelidade do processo político aos ideais da Revolução, com poderes até para anular, por inconstitucionalidade, as leis aprovadas pelos órgãos legitimados pelo sufrágio universal, o Parlamento e o Governo.
Por conseguinte, não parece de todo infundada a hipótese de que, tivesse sobrevivido à guerra e exercido a sua liderança em ambiente de paz, Amílcar Cabral, paladino da soberania popular, haveria de se esforçar, para acentuar ainda mais as suas afinidades com a social-democracia ou o socialismo democrático, matriz política em que, antes da sua morte, já o situava o Presidente Senghor.
12. Deixando de lado as hipóteses, as conjecturas e o julgamento que cada um poderá, em seu livre arbítrio, fazer de Amílcar Cabral, o que constitui facto irrefutável é que a sua liderança terminou abrupta e tragicamente num momento em que ele gozava de invejável projecção e admiração por todo o Mundo, reconhecimento que não se costuma creditar a autocratas, como deixam perceber as insuspeitas palavras de Marcelo Caetano, chefe do Governo de Portugal no culminar da guerra, por conseguinte, seu directo antagonista nesse combate libertador, sobre a ideia de negociações para se pôr termo ao conflito na Guiné:
“Observei ao general (Spínola) que por muito grande que fosse o seu prestígio na Guiné – e eu sabia que era enorme – ao sentar-se à mesa de negociações com Amilcar Cabral ele não teria na frente um banal chefe guerrilheiro, e sim o homem que representava todo o movimento antiportuguês (leia-se, todo o movimento anticolonialista), apoiado pelas Nações Unidas, pela Organização da Unidade Africana e pela imprensa do mundo inteiro”13.
Com esse DIFERENTE OLHAR, que confirma o seu enorme prestígio, em especial junto da imprensa livre do mundo inteiro, fica evidente o porquê do lugar que é reservado a Amílcar Cabral na História Contemporânea e, por maioria de razão, neste também seu País, para cuja Independência entregou abnegadamente a sua própria vida.
Reconhecê-lo com naturalidade, em inclinação ao seu sacrifício supremo e àquilo que ele representa, na diferença e no dissenso, sem a pretensão de fazer dele um santo, ou de se apropriar do que ele representa como símbolo, é apenas uma questão de justiça.
Cremos que é justamente isso que acaba por fazer o antigo primeiro-ministro Carlos Veiga, para quem, “muito justa e inquestionavelmente, Cabral é, para todos os Cabo-verdianos, o primeiro dos seus Heróis, o maior dos seus Homens Grandes”14.
1 Chiado Editora, Julho 2014
2 Sobre tais conceitos, Jorge Bacelar Gouveia, Enciclopédia da Constituição Portuguesa, pág. 143
3 Diferente de “Democracia Nacional Revolucionária”.
4 UNIDADE E LUTA, A ARMA DA TEORIA, Vol. I, p. 206
4 Itinerários de Amílcar Cabral, Rosa de Porcelana, pág. 110.
6 José Vicente Lopes, OS BASTIDORES DA INDEPENDÊNCIA, p. 125.
7 Título do livro da jornalista brasileira CLAUDIA WALLIN.
8 A LUTA CRIOU RAÍZES, ed. Fundação Amílcar Cabral, Praia 2018, p. 313-314.
9 CONTINUAR CABRAL, Praia, 1983, p. 62.
10 José Vcente Lopes, ONÉSIMO SILVEIRA, UMA VIDA, UMA MAR DE HISTÓRIAS, pág. 129
11 Ib.
12 Preâmbulo e artigo 1º.
13 DEPOIMENTO, Distribuidora Record (Brasil), 1974, pág. 190
14 Cabral e a Construção do Estado em Cabo Verde, in Cabral no Cruzamento das Épocas.
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 896 de 30 de Janeiro de 2019.