Literaturas em Tempo de Resistência

PorDina Salústio,18 dez 2019 10:59

O nosso país podia-se chamar Resistência, sim, porque para além de tudo o que o põe em contramão com outras terras é um país incrivelmente belo este que nós estamos a construir.

Na crónica de viagem de hoje trago o Brasil e o título “São Luís do Maranhão - III Congresso Internacional de Letras, Línguas e Literaturas em Tempo de Resistência”, agosto, 2019. Do texto extraí umas notas que mais se adequam a uma página de jornal, embora mantendo o nome que escolhi: 

“Se o meu País não se chamasse Cabo Verde, seu nome seria Resistência”. 

Antes, devo dizer que a partir do momento em que conheci o Brasil, perdi a noção das distâncias. Ali tudo é terras sem fim à vista, o que naturalmente confunde qualquer ilhéu. Aliás, nunca mais volto a falar em perto ou longe. Eu já criticava os patrícios de Santiago e de Santo Antão com a mania que têm de dizer: “É perto. Trás daquel lumbim”. E tu andas montes e vales, lombos e lombinhos e quando chegas ao destino indicado há outro lombinho para andar. Acho que os brasileiros também não devem ter o mesmo entendimento que nós sobre lonjuras, porque quando eu pergunto, por exemplo: “O mercado é perto”? Atrapalham-se e respondem: “Melhor pegar um táxi, menina”. 

“Falta muito, amigo? – pergunto depois de quatro horas de viagem. - O condutor faz um sorriso de novela e diz-me: vamos parar para almoçar. O escritor que vai ao lado dele inicia uma conversa sobre os pratos da região. Estamos no Amazonas Legal. A rádio fala nos incêndios no Amazonas e eu pergunto sobre possibilidades de contaminação dos fogos e o meu colega, tranquilo, refere à divisão do território e diz os Estados que nos afastam do perigo. Definitivamente fecho a curiosidade sobre os caminhos e os tempos que consomem. 

Na cidade de Bacabal, já na Universidade o clima é de alegria. Centenas de jovens em licenciatura, mestrado e doutoramento preparam-se para participar em mais um congresso. Ao lado da juventude que transborda esperança há preocupação no ar e nas conversas medidas que circulam pelos gabinetes. 

Muito antes de se conhecerem através da Língua, Brasil e Cabo Verde já se tinham cruzado através de gentes trazidas da África para os cafezais do Brasil e é impossível que não nasçam perguntas quando nos encontramos, nos olhamos e pensamos, sobretudo, em pessoas e culturas que partilhámos. 

Hoje a literatura aproxima-nos e desafia-nos a contar na nossa língua comum essa história que traz no íntimo e no princípio a certeza de uma revolta e de uma resistência. As vozes chocam-se em sons que nos fazem querer contar as nossas coisas e sentir o som das histórias dos outros de fala igual. As palavras desfilam. A presença feminina no anfiteatro não deixa dúvidas que vamos ocupar todo o espaço que conseguirmos. Não se pede licença para passar nem para falar e o futuro desenha-se. 

Lembro o silêncio que existiu sobre a situação das gentes de Cabo Verde durante séculos, o seu isolamento, a morte lenta e a resistência do povo de Cabo Verde como a grande inspiração e alimento da nossa literatura. Refiro ao Nativismo, romântico, com personagens à procura de um lugar no mundo; aos Claridosos, modernos e com os pés fincados no seu chão, com uma escrita de um realismo viril e assertivo, no limite desafiador e suicidário; lembro a nossa independência e o papel que a literatura teve no processo; vou ao Contemporâneo com nova dimensão, com outra liberdade e com a mulher e sua escrita a estabelecerem a justiça na literatura. 

Saúdo o Congresso e o tema Resistência mobilizados num tempo em que fragilidades, ameaças incontáveis e incomportáveis atingem o mundo, continentes, pessoas, crenças, bens. Num tempo em que os populismos e os radicalismos de todos os quadrantes políticos possíveis, da esquerda e da direita, em atuações planetárias concertadas, pretendem tomar posse do mundo, e em que assistimos o ambiente, mares, montanhas florestas e seus animais, em que vemos o planeta e mesmo culturas e ganhos democráticos, de diversas formas desfazendo-se. Um tempo atual em que desesperadamente ou com indiferença se assiste ao desespero de crianças, jovens, homens e mulheres, tentando atravessar fronteiras, mares, procurando uma oportunidade, no meio de estradas e morrendo nelas, ou à beira delas. 

Cabe dar conta da conquista dos direitos e do uso que se faz deles. Cabe à literatura mostrar os nossos países de barriga aberta, como se diria na minha ilha, em linguagem familiar e feminina querendo dizer para não esconder nada, para incomodar, para renascer, sabendo que nunca os partos são fáceis, até porque há laços que se quebram. 

Disse que o nosso país se podia chamar Resistência. Não porque as frágeis ilhas estão no meio do Atlântico, nem por termos pouco chão, ou ser apenas algumas linhas ou uns pontinhos no mapa. Também não é pelas estiagens e fomes vencidas ou pelas fronteiras de sonhos que não se abrem. 

A nossa literatura dá conta disso. Toda ela é resistência. Porque todos os cenários imaginados e imagináveis são de resistência; porque todos os temas imaginados e imagináveis colhidos nas ilhas são de resistência; porque todas as personagens das várias escolhas dos diversos autores são de resistência. 

O nosso país podia-se chamar Resistência, sim, porque para além de tudo o que o põe em contramão com outras terras é um país incrivelmente belo este que nós estamos a construir. Ainda com falhas e ainda com injustiças, é verdade, mas todos os dias estamos tentando um lugar melhor.

Lembro Ovídio Martins que escreveu no poema Somos os Flagelados do Vento Leste: “As cabras ensinaram-nos a comer pedras para não perecermos”. Haverá algo maior do que esse verso para traduzir a resistência?

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 941 de 11 de Dezembro de 2019. 

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Autoria:Dina Salústio,18 dez 2019 10:59

Editado porSara Almeida  em  7 set 2020 23:21

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