O populismo e a questão do poder

PorAntónio Ludgero Correia,27 jan 2020 11:51

Muito se tem falado, neste início de milénio, de populismo. Variam as perspetivas, multiplicam-se as definições, divergem as apreciações, mas salta à vista que muito pouca gente parece ter convicções firmes acerca do fenómeno. Por isso, pretendendo falar do assunto, sinto-me obrigado a abordar o seu nexo com a questão do poder.

É que assim agindo, acabam surgindo questões e inquietações que, tratadas, podem ajudar na tentativa de conceituação do fenómeno. Aliás, devemos falar de populismo ou de populistas de serviço? Parece um preciosismo, mas é necessário refletir sobre a questão até para nos situarmos: já estamos convivendo com o fenómeno ou estamos em vias de?

Comummente definido como um conjunto de práticas viradas para a conquista e/ou a perpetuação no poder, embasado na determinação de ganhar a qualquer custo, falando ao coração de cidadãos/eleitores mergulhados em profundo estado de deceção, explorando a esperança dos desgraçados/deserdados da sociedade e caraterizadas por total irresponsabilidade em relação ao futuro, o populismo não chega a ser nem uma ideologia nem uma corrente filosófica.

Não sendo uma questão ideológica, nem podendo, legitimamente, ser considerado uma estratégia de desenvolvimento, o populismo fica-se pelas práticas e pelos ganhos imediatos, não passando de um esquema de que lançam mão agentes políticos ávidos do poder, que querem o poder pelo poder e que acham que os fins justificam os meios.

Sendo mais um conjunto de práticas do que uma ideologia estabelecida, mais um esquema (no pior sentido do termo) para a conquista e/ou a manutenção do poder do que verdadeiramente uma estratégia, abalizada em valores e princípios, para o acesso ao poder, parece ser legítimo falar-se antes de discursos e práticas populistas (de agentes e/ou grupos inescrupulosos) do que, verdadeiramente, de populismo (enquanto ideologia).

E se assim é, estamos já convivendo com discursos/práticas populistas ou estamos em rota de colisão com o populismo? Já estivemos em contato com discursos populistas (do tipo: ganhar a qualquer custo, apelos baixos ao sentimentalismo de dececionados e desesperados, exploração da desgraça alheia, manifesta irresponsabilidade em relação às consequências futuras) ou o populismo começa a aparecer no retrovisor, aproximando-se velozmente e pronto para fazer a ultrapassagem ao status quo vigente?

Sugiro debruçarmo-nos sobre algumas plataformas eleitorais, instrumentos por excelência para o convencimento do eleitorado. A sugestão é analisar tais instrumentos e verificar se se enquadram na categoria de discurso/esquema populista - prometendo mundos e fundos sem qualquer compromisso com a realidade - ou na de proposta/estratégia coerente com os recursos disponíveis e/ou mobilizáveis.

Qualquer observador atento situará as situações mais flagrantes de tiques populistas nos discursos da campanha eleitoral para as eleições gerais de 2011. Mas talvez tenhamos começado bem cedo, ainda na fase pré-independência, com aquela de injetar a mamona para a transformar em… maçãs.

Mas debrucemo-nos sobre as derivas populistas ocorridas nas campanhas de 2011 a esta parte, começando pela plataforma eleitoral de um dos partidos do arco do poder para as eleições desse ano.

1. A PLATAFORMA DAS 18/23 barragens

No salão da Biblioteca Nacional acontecia a apresentação da plataforma eleitoral de um dos partidos do arco do poder. A abrir os trabalhos foi distribuído uma brochura contendo as linhas gerais da referida plataforma. O insólito chega quando o Presidente do partido pediu aos presentes que introduzissem uma retificação na brochura: Lá onde diz 18 (dezoito) barragens, corrijam, por favor, para 23 (vinte e três). Vamos construir MAIS 23 (vinte e três) barragens.

Foi um bafafá. Gritos de apoio e muitos VIVAS. Quem resiste a uma promessa dessas?!

O ponto é que quem prometia 18, aliás 23, barragens, não dispunha de recursos para realizar a promessa. Nem recursos próprios nem mobilizáveis. E a verdade é que o nível de realização da promessa deverá ter ficado pelas 4 barragens em toda a Legislatura. E é este casamento entre as despudoradas ofertas de determinados atores políticos e o desespero e a credulidade de incautos segmentos da sociedade que dá corpo ao que entre nós precisa ser rotulado como prática/esquema populista, que é.

2. A PLATAFORMA DAS BOLSAS PARA TODOS

Na mesma ocasião, mas, desta feita em outdoors, custando os olhos da cara, outra candidatura prometia bolsas de estudo para todos e perguntava ‘PORQUE NÃO DÃO BOLSAS DE ESTUDO PARA OS NOSSOS FILHOS?’. Como se houvesse recursos disponíveis e o Governo escondesse o leite, deixando estudantes de parcos recursos sem poder continuar os estudos e posicionando-se o postulante como quem tinha a varinha mágica que ia proporcionar a todos leite e mel em abundância.

3. A PLATAFORMA DO PLENO EMPREGO E DA ALÍQUOTA ZERO

5 anos depois, aconteceu um candidato oferecer pouco menos do que o pleno emprego e um paraíso fiscal em um único pacote. MAIS 45 mil postos de trabalho e alíquota 0 (ZERO) em matéria de IRC para micro e pequenas empresas (em um universo quase que totalmente dominado por empresas dessa dimensão) levariam o país para um patamar de (quase) pleno emprego e o transformaria em um paraíso fiscal mesmo para empresas autóctones.

A plataforma até foi sufragada pelo eleitorado. Mas, também, que sociedade não anseia pelo pleno emprego e pela renúncia fiscal do Estado? A questão que não se quer calar é: NÃO TINHAM OS PROMETENTES CONSCIÊNCIA DE QUE A PROMESSA ERA IRREALIZÁVEL? Alguém tem dúvidas de estar perante um esquema populista? Aliás, o apelo aos sentimentos e à credulidade de desesperados e dececionados concidadãos seus, sem pudor, respeito ou a mínima réstia de ética, apenas para dar vazão a seus instintos de predador, configura inequívoca prática populista.

Atitudes, posturas e comportamentos que oferecem programas, planos e projetos sem a mínima hipótese de serem financiados, que assumem decisões incompatíveis com a capacidade de execução (técnica e financeira) e que dão de ombros com o “AMANHÃ? LOGO SE VÊ”, sem o mínimo compromisso com a verdade, nem respeito para com os concidadãos, com o escopo único de conquistar o poder a qualquer custo, configuram esquemas populistas.

Mas quem teria escancarado as portas a essas práticas, esses esquemas (que alguns benevolamente, podem ainda chamar de estratégias)? O mais certo é que tenham sido as sucessivas desilusões, deceções e aos arrependimentos tardios. Quem não escutou já um transeunte manifestando sua desilusão ou seu arrependimento? Quantas vezes escutamos pessoas prometendo não voltar às urnas porque o resultado é sempre ‘mais do mesmo’? Ora, quando surge um discurso novo, falando ao coração do eleitor, apelando aos seus sentimentos, explorando suas fraquezas e indo ao âmago dos seus desejos mais profundos (e de satisfação ‘n’ vezes adiada), o cidadão assume o papel complementar, disponibiliza-se para escutar e apoiar e pode cair na esparrela. Depois de tantas promessas de ‘nabiu na mar’ e de, a final, receber, nada mais nada menos do que, ‘lantxa nkadjadu’, o mais certo é deixar-se embalar pelo canto da sereia.

Não há nada de mal em falar ao coração do eleitorado. Nada de mal advirá ao mundo por se fazer ao eleitorado promessas inovadoras e aliciantes. O que não é aceitável é que façam concidadãos de trouxas ou sacrifiquem as esperanças do eleitorado no altar dos seus instintos de predador. Que é isso que os populistas de serviço fazem.

Mas a maior preocupação nem é por conta disso. O eleitorado cabo-verdiano é de luxo. Aprende rápido. E é bom a dar lições a quem brinca com os seus sonhos ou lhe falta ao respeito. A preocupação – pelo menos da minha parte – tem a ver com a eventualidade de um casamento entre este tipo de esquemas para a conquista do poder e o alto nível de abstenção que se verificam nas eleições.

O QUE ACONTECERIA SE DINHEIRO SUJO SE APODERASSE DE UMA SIGLA NACIONAL INÓCUA, POR INOPERANTE, E JOGASSE – MOLHANDO A MÃO DE INCAUTOS, COMPRANDO CONSCIÊNCIAS E SE APROVEITANDO DAS ABSTENÇÕES RESULTANTES DE REITERADAS DESILUSÕES?

Cinicamente, diria que reduziríamos drasticamente a abstenção. Mas a hipótese de, por essa via, virmos a ter os donos do dinheiro sujo no Parlamento ou no Governonão é de descartar.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 947 de 22 de Janeiro de 2020. 

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Autoria:António Ludgero Correia,27 jan 2020 11:51

Editado porSara Almeida  em  18 mar 2020 23:21

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