As Epidemias na História de Cabo Verde : Origem e Contornos da Epidemia de Cólera-mórbus na Ilha do Fogo

PorJosé Silva Évora,4 ago 2020 7:15

Ao que tudo indica, a epidemia foi trazida por um navio proveniente do porto de Savona,¹ que, à caminho da América do Sul (Montevideo), aportou na Vila de São Filipe, no dia 30 de junho de 1855, onde permaneceu por alguns dias.

“Sabe-se hoje, (…) que aquelle navio trazia carta de Saúde limpa, procedente, porém, dos portos do Mediterrâneo, considerado áquella data, pelos editaes do Conselho de Saúde Pública do Reino, suspeitos de cólera-morbus (…) pelos cuidados de desinfecção, e lympeza hygienica, a que a tripulação e passageiros se dedicaram depois de fundeados no porto – caiando o navio – fazendo continuas aspersões de vinagre, etc., segundo referem alguns dos habitantes da Ilha, que forao a bordo.”2

O facto de ter havido contactos entre os tripulantes e os passageiros do navio com a população local, facilitou a transmissão comunitária, de forma bastante rápida.

“(…) havendo a tripulação e passageiros communicado com a gente da terra, aonde comeram, e dormiram algumas noites; e as authoridades e alguns habitantes ido jantar a bordo (…).”3

A rápida propagação da moléstia e o aumento acelerado do número de mortes, aterrorizou os habitantes da Vila, e mesmo as autoridades locais, que acabaram por fugir, deixando São Filipe em estado de abandono.

“N’esse mesmo dia 6, as principaes famílias, e habitantes, incluindo as authoridades (…), abandonaram precipitadamente suas casas e a povoação, e refugiaram-se a bordo do patacho Portuguez Cordialidade, que partindo da Villa da Praia, tinha dois dias antes chegado áquella ilha. (…) sahio na madrugada do dia 7, para ir deitar na Ilha Brava. N’aquela ilha, porém (…) não forao admitidos a livre prática; – volta o navio para a ilha do Fogo. Sabem ahi que a epidemia continuava cada vez com mais força a fazer vitimas – observam de bordo que se estavam enterrando no cemitério de S. Felippe grande numero de cadáveres; que fóra do mesmo se estava abrindo valas para enterrar os que n’elle já não cabiam; afluem muitos outros, procurando refugio e salvação a bordo – finalmente, em numero de 142 pessoas, pela maior parte senhoras e creanças, e já então divididas em 2 navios, o referido Patacho Cordialidade, e a pequena Chalupa Benjamim, (…), sahem ao anoitecer do dia 7 do porto d´aquella Ilha, com destino a Villa da Praia, aonde chegam o primeiro no dia 9, e segundo no dia 10.”4

Antes, porém, da chegada dos navios com os fugitivos da ilha, as autoridades da Praia tomaram conhecimento da ocorrência, começando, de imediato, a tomarem as providências necessárias, nomeadamente o envio para a ilha do Fogo do cirurgião d´Armada, e a enunciação de uma ordem expressa e imediata, no sentido de isolar a ilha e os seus habitantes do resto doa arquipélago, impedindo, por esta via, a disseminação da doença.

Outrossim, uma vez chegados no porto da Praia, reconhecendo o perigo “de conservar a bardo de dois pequenos navios, um tão avultado numero d´individuos, composto na maior parte de senhoras e crianças,” foi determinado que fizessem quarentena no Ilhéu de Santa Maria, sendo que foram tomadas medidas no sentido de criar as condições necessárias para o efeito.

“(…) O Exmo Governador Geral da Província mandou apromptar no referido ilheo, e no curto prazo de dois dia, um grande barracão, bem coberto, com portas e janelas (…)dividido em seis boas casas assoalhadas.”5

Deve-se aqui realçar a solidariedade vinda da parte dos habitantes da Vila da Praia, que se prontificaram em ajudar as autoridades na materialização das medidas urgentes e necessárias que se impunham tomar.

“Os principaes habitantes da Villa da Praia cederam os seus carros gratuitamente para os transportes de material para a construção do lazareto, fazendo donativo ao Estado dos matereaes para a cosntrução dos telhados do mesmo (…).”6

No espaço de três dias, os passageiros e os tripulantes dos dois navios desembarcaram no Ilhéu, onde, em casas arranjadas e mobiladas iniciaram a quarentena, numa altura em que a bordo de um dos navios já tinha ocorrido uma morte.

O Ilhéu passou a ser vigiado por um cordão sanitário de soldados em terra, e em lanchas tripuladas no mar, durante um período de 25 dias em que decorreu a quarentena. Cumpridos todos os protocolos, fim desse período, a quarentena foi levantada, sendo os passageiros acolhidos no seio das principais famílias da Vila da Praia, antes de regressarem à ilha do Fogo.

Enquanto isto, no Fogo era necessário medidas urgentes e enérgicas, face à proporção que a epidemia ia assumindo. Para ali foi enviado reforço médico, medicamentos, alimentos, e foram criadas comissões de socorros que, diariamente, distribuíam alimentos aos habitantes. Por outro lado, medidas higiénicas e de salubridade pública foram tomadas, como o aterro as sepulturas mal feitas, a desinfeção das casas, em muitas das quais chegou-se a encontrar cadáveres por sepultar, a higienização das ruas, entre outras.

Em ofício dirigido ao Governador-geral, no dia 18 de agosto de 1855, o Presidente da Junta de Saúde da Província, informa que a epidemia, depois de ter percorrido quasi todos os pontos da Ilha, se achava aquela data em decadência, (…).”7

Porém, um ano depois, em agosto de 1856, temos notícias de uma outra epidemia de cólera-mórbus, a assolar, desta feita, a ilha de São Vicente.

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Notas

  1.  Comuna italiana, localizada ao noroeste daquele país.
  2.  Boletim Oficial do Governo-Geral de Cabo Verde, nº 175, 1855, de 18 de Agosto, Portaria nº 133, p. 730.
  3.  Idem, ibidem.
  4.  Boletim Oficial do Governo-Geral de Cabo Verde, nº 175, 1855, de 18 de Agosto, Portaria nº 133, p. 731.
  5.  Idem, ibidem.
  6.  Boletim Oficial do Governo-geral de Cabo Verde, nº 184, 1856, 29 de Fevereiro, Parte Não Oficial, p. 790.
  7.  Boletim Oficial do Governo-Geral de Cabo Verde, nº 175, 1855, de 18 de Agosto, Portaria nº 133, p. 732. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 974 de 29 de Julho de 2020. 

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Autoria:José Silva Évora,4 ago 2020 7:15

Editado porSara Almeida  em  19 mai 2021 23:21

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