As Epidemias na História de Cabo Verde “A morte vinha do mar,” … De São Vicente, a cólera-mórbus chegou no sudoeste da Ilha de Santo Antão (Setembro de 1856)

PorJosé Silva Évora,19 ago 2020 7:45

​No jornal Nôs Luta, datado de 1975,¹ encontramos um artigo, cujo título suscita alguma reflexão: Tarrafal de Monte Trigo – Santo Antão ou São Vicente?

Com efeito, a adversidade orográfica da ilha de Santo Antão foi, no passado ainda relativamente recente, a principal responsável pelo isolamento dos seus habitantes, de modo tal que, de localidades como Tarrafal de Monte Trigo, sudoeste do atual concelho do Porto Novo, ficava mais fácil contactar por via marítima, com a ilha de São Vicente, contrariamente a muitas regiões da de Santo Antão, desconhecidas, por isso, por muitas pessoas.

Assim, desde muito cedo,2 os contactos entre as gentes do Tarrafal de Monte Trigo com as de São Vicente foram frequentes, contactos esses incrementados através dos navios-cisternas, que por muito tempo transportavam a água daquela localidade para o abastecimento da ilha do Porto Grande.3

Se é verdade que os navios foram fundamentais para esses contactos e para as dinâmicas sociais e económicas daí advenientes, também é verdade que foram veículos de transmissão de doenças, em determinados momentos da história destas ilhas. Daí ter tomado de empréstimo de Amândio Barros,4 a expressão, a morte vinha do mar,5 para o título deste texto.

Introduzida na ilha de São Vicente por navios provenientes de portos estrageiros, em 1856, a epidemia de cólera-mórbus, acabou por chegar no sudoeste de Santo Antão, em setembro do mesmo ano.

“Tendo sido presentes a Sua Majestade, El-Rei, os offícios do Governador-geral da Província de Cabo Verde, de 3 e 16 de Setembro último, em que dei parte de ter aparecido a cólera-mórbus na ilha de S. Vicente, e de ter invadido a parte meridional da de Santo Antão” (…).6

Tendo tomado conhecimento do ocorrido, o então administrador do concelho, tomou algumas medidas necessárias, nomeadamente, “mandando guarnecer com soldados do destacamento os portos compreendidos entre os Carvoeiros7 e Tarrafal de Monte Trigo, e com cabos de polícia, os compreendidos entre a Janela e Ribeira Alta.”8

Porém, ao que tudo indica, as medidas foram extemporâneas, porquanto, “ao ser estabelecido o cordão sanitário, já se encontravam no porto dos Carvoeiros, retidos num barracão pertencente a Thomas Miller, várias pessoas contaminadas vindas de São Vicente.”9 Segundo consta, os próprios elementos da força militar enviados para o local, foram atacados pela doença.

Por ela também foram atacados, mortalmente, uma série de individualidades, consideradas, nessa altura, as mais notáveis da ilha de Santo Antão, conforme informações do então administrador interino do concelho,10 José António Serrão:

Luiz António de Mello- Proprietário e tenente-coronel do Batalhão de 2ª linha d´esta ilha.

Paulo Rodriguez de Susa – Juiz Forâneo e Vigário da Freguezia de N. Sra. do Rosário.

D. Mathide Sousa Silva e sua filha Antónia Mathilde Silva – Proprietárias.

Miguel Manoel Correia – Proprietário e Vereador da Câmara Municipal d´esta ilha.

Pedro Gonçalves Teixeira –Proprietário e Escrivão do Juiz Ordinário d´esta Ilha.

D. Laudina Ferreira Nobre.

Maria Patrocínio Silva e sua filha Maria das Neves Silva – Proprietárias.

Francisca dos Reis Lopes – Filha de Christovão António dos Santos

A filha de Carlos José d´Oliveira – Proprietária.

Zacharias Luis de Mello, e sua Mulher D. Izabel Ferreira L. de Mello – Proprietário e ajudante do Batalhão de 2ª d´esta ilha.

D. Rosa Maria do Livramento – Proprietária.

D. Libânia Ferreira Lima – Proprietária.

Maria do Rosário – filha de D. Libânia Ferreira Lima.

João Baptista Leite – Proprietário.

António Lopes da Fonseca – Proprietário.

Bento António dos Santos – Proprietário.

Luiz Pedro da Costa – Proprietário.

Três filhos menores de Vicente Pires Ferreira – Proprietário.

A filha de Joaquim José d´Oliveira – Proprietário.

O filho de Joaquim Pires Ferreira – proprietário.

Duas filhas de Luiz Rogério Leite - Proprietário.

O filho de Joao Batista Leite – Proprietário.

João Augusto de Fontes Pereira de Mello- Tenente de Caçadores e Ajudante d´ordens de S. Excia o Governador Geral d´esta Província.

D. Antónia Barros Leite – Proprietária.

Pedro Thomaz Mello – Proprietário.

João Augusto Silva Durão – Proprietário.11

O número de vítimas mortais foi muito grande, a ajuizar pelos dados apontados por Sena Barcellos:

“Na freguesia de Nossa Senhora do Rosário, com 837 fogos e uma população de 3:981 almas, houve 655 victimas; freguesia de Santo Crucifico, com 1:053 fogos, e 4:807 almas, 792 víctimas; S. Pedro Apóstolo, com 393 fogos e 1: 417 almas, 100 víctimas; São João Baptista com 375 fogos e 1:652 almas, 129 víctimas; Santo António das Pombas, com 930 fogos e 5:137 almas, 523 víctimas.”12

Ainda sem sarar completamente da moléstia, em dezembro de 1857, temos notícias de uma epidemia de varíola a grassar em Santo Antão.

“(…) Continua a epidemia da varíola fazendo grande estragos, com a particularidade na freguesia da Garça, onde o número de victimas já excede a 150.”13

Sobre essa, e outras patologias que assolaram Santo Antão e Cabo Verde, falaremos em outras oportunidades.

________________________________________________________

Notas

1. Nôs Luta, Ano I, nº 9, 31/05/1975, pp. 4-5.

2. A informação de que, em 1896, a propriedade do Tarrafal de Monte Trigo achava-se inscrita em nome de João Burnay, família escravocrata, residente em São Vicente em 1856, não deixa dúvidas relativamente a esta ligação com Tarrafal de Monte Trigo (Cfr. ANCV-SGG- Lv. 870. Registo de escravos no concelho de São Vicente, em 1856).

3. O transporte de água a partir do Tarrafal de Monte Trigo, para o abastecimento da ilha de São Vicente, remonta ao início dos anos oitenta do século XIX (1881), na altura levado a cabo por Clarimundo Martins, tendo incrementado a partir de 1919, altura em foi criada a Firma Ferro & Companhia, que teve um papel importante na dinâmica socioeconómica do Tarrafal de Monte Trigo e da cidade do Mindelo.

4. Investigador português – Universidade do Porto. Especialista em História Económica e marítima, autor de, Porto. A construção de um espaço marítimo no início dos tempos modernos, editado em Lisboa, em 2016, pela Academia da Marinha.

5. YouTube. Pandemias e História na Era da COVID-19. Entrevista concedida em 14/05/2020.

6. Boletim Oficial do Governo-geral de Cabo Verde, nº 199, 1856, de 31 de outubro circular n. 2842, do Ministério da Marinha e Ultramar, p. 911.

7. Situado na Costa Sudeste da ilha de Santo Antão, o povoado foi designado, Porto dos Escraveiros - Porto dos Carvoeiros-Porto Novo-, designações relacionadas com as principais atividades que, em épocas diferentes, desempenhou. Primeiramente, foi o principal porto de entrada e escoamento de escravos em Santo Antão, razão pela qual se chamou porto dos Escraveiros. Após a abolição da escravatura na ilha, no intuito de tentar apagar qualquer vestígio relacionado com o tráfico negreiro, o topónimo foi mudado para Porto dos Carvoeiros. Com a construção do cais acostável, que foi em Cabo Verde o segundo na ordem de primazia, acabou por se justificar plenamente a mudança do nome do Porto dos Carvoeiros para Porto Novo.

8.Vieira, Henrique Lubrano de Santa-Rita (1999). História da Medicina em Cabo Verde, Praia: Ministério da Saúde,p.315.

9. Idem Ibidem.

10. Tendo o administrador do concelho e delegado da comarca, José Maria da Costa, deslocado à Praia, com o objetivo, segundo ele, de informar ao Governador- geral, António Maria Barreiros Arrobas, o estado da situação, este considerou inoportuno ter abananado a ilha numa altura tão critica como aquela, acabou por o exonerar, nomeando para o cargo, Vasconcelos Correia Júnior, em setembro do mesmo ano. Até lá, o cargo foi exercido, interinamente, por José António Serrão.

11. Boletim Oficial do Governo-geral de Cabo Verde, nº 203, de 20 de Dezembro de 1856, p. 941.

12. Barcellos, Christiano José de Sena (1898). Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné, Parte VI, Lisboa: Academia Real das Ciências, p. 71.

13. Boletim Oficial do Governo-geral de Cabo Verde, nº 20, anno 1857, 18 de Dezembro.

Parte Não Oficial. Notícias Locaes, p. 107.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 976 de 12 de Agosto de 2020.

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Autoria:José Silva Évora,19 ago 2020 7:45

Editado porSara Almeida  em  1 jun 2021 23:21

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