“As ilhas de São Vicente, Sal e Santo Antão, de Cabo Verde, dormiam na pacatez dos seus dias quando, em 1941, milhares de homens vindos da Metrópole invadiram o seu quotidiano, trazendo-lhes aquela dimensão, a um tempo impetuosa e sublime, que é própria da instituição militar, na sua mais pura essência”.
Assim começa a sinopse do livro Forças Expedicionárias a Cabo Verde, de Adriano Miranda Lima, obra que recupera a memória histórica da presença no arquipélago de um contingente militar expedicionário português, formado por 5.820 homens, distribuídos por São Vicente, Sal e Santo Antão, enviado em resposta aos acontecimentos da II Guerra Mundial.
Apesar de se assumir como país neutro, Portugal, sob a égide do Estado Novo, não passou ao lado dos efeitos da guerra 39-45, obrigado que foi a uma permanente gestão diplomática das suas relações com as duas partes em conflito.
Essa maleabilidade diplomática tornou-se ainda mais urgente a partir do momento em que Estados Unidos e Reino Unido, por um lado, e Alemanha, por outro, começaram a trocar acusações sobre alegados planos para invadir as ilhas Atlânticas sob domínio português, particularmente Açores e Cabo Verde. A posição geográfica destes arquipélagos tornava-os particularmente relevantes nos esforços militares pelo domínio do Atlântico centro e Norte.
Nesta contenda, Salazar viu-se obrigado a reforçar as estruturas de defesa, enviando para Cabo Verde um grupo de homens e equipamentos. A São Vicente chegaram, em 41, 3.015 militares, apostados na defesa do Porto. Em São Antão foram colocados 705 efectivos, concentrados no tráfego do canal marítimo e na segurança do abastecimento de água potável, via Tarrafal de Monte Trigo. Para o Sal seguiram 2.100 praças e oficiais, para garantir a integridade do aeródromo.
O regime salazarista sabia que, perante a dimensão dos esforços de guerra, as forças expedicionárias desempenhavam um papel essencialmente simbólico. Ao longo da missão, que se prolongou até 1945, a sua intervenção foi meramente dissuasora.
O livro de Adriano Miranda Lima concentra-se em São Vicente, ilha da qual o autor é natural, e permite compreender o impacto social da chegada súbita de três mil soldados a um território inóspito, com apenas 15 mil habitantes.
Património e memória
Lia Medina, professora do ISCEE, que em 2013 organizou um ‘Passeio com História’ aos pontos de defesa do Mindelo, recorda que tudo mudou com a chegada do contingente.
“O liceu, a câmara, espaços públicos onde as pessoas podiam ir e de repente se tornaram espaços militares Se somarmos a isso as questões que aconteciam nas festas, os desentendimentos, alguns abusos de autoridade que aconteceram e que marcaram muito a população de São Vicente, tudo mudou”, resume.
“Isto marcou de forma inolvidável a dinâmica da ilha e [também] trouxe muitos benefícios, nomeadamente a questão médica e sanitária que foi grandemente apoiada pela presença de médicos, sobretudo pelo Dr. Baptista de Sousa”, acrescenta.
Ao redor da Baía do Porto Grande, em João Ribeiro, Alto Bomba e Morro Branco, ainda é possível encontrar o que resta das estruturas militares aí edificadas. Contudo, a não sistematização da informação e a fraca salvaguarda do património edificado fazem com que as memórias históricas se percam no tempo.
“Por exemplo, a nível dos registos, quando estive a fazer pesquisas, o que me disseram foi que ficaram cá cópias de todos os documentos da altura, só que temos tendência a destruir tudo aquilo que está para trás. A nível militar, para se reconstruir qualquer parte da história, da ilha ou de Cabo Verde, temos que ir a Portugal”, assinala Lia Medina.
Num momento em que se discute a devolução do património histórico às antigas colónias europeias em África, a professora universitária recorda que “antes de se pedir a devolução do património, é preciso ter condições para a sua salvaguarda”.
Forças Expedicionárias a Cabo Verde, “não busca a historiografia como um propósito em si”, esclarece o próprio autor, numa das primeiras páginas. O livro procura, acima de tudo, contextualizar factos e acontecimentos sobre um episódio determinante para a história do país e de São Vicente, em particular, na primeira metade do século XX.
Adriano Miranda Lima nasceu no Mindelo em 1943. Coronel reformado do exército português, é autor de vários artigos de natureza historiográfica, literária e biográfica.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 950 de 12 de Fevereiro de 2020.