Aqui não há verão

PorEurídice Monteiro,25 ago 2020 7:16

O último quarto do ano será ainda assinalado por tantos acontecimentos mundiais de extrema importância em termos geopolíticos e nacionais, mas, em todo o caso, nenhum será, nem no imaginário nem na prática, tão marcante ou terá tanto impacto como esta pandemia que surpreendeu o primeiro quartel deste ano.

Parece que tudo já foi dito sobre o ano de 2020. Porém, já se denota que o último quarto do ano será ainda assinalado por tantos acontecimentos mundiais de extrema importância em termos geopolíticos e nacionais, mas, em todo o caso, nenhum será, nem no imaginário nem na prática, tão marcante ou terá tanto impacto como esta pandemia que surpreendeu o primeiro quartel deste ano. De maneira que não será nada difícil adivinhar que quando, em jeito de balanço geral, for escolhido a palavra do ano, esta poderá certamente recair sobre uma dessas possibilidades: «Quarantine», «Coronavirus», «Pandemic». Palavras que, embora já existissem no dicionário e na realidade da vida, popularizaram-se durante este ano, causando perdas humanas, danos materiais e horrores à escala planetária.

Ao fim e ao cabo, o que vale de facto é que a humanidade, por mais frágil que poderá ser, aparenta ter uma grande capacidade de resistência, reinvenção, renovação, esperança e fé. Talvez hoje mais do que nunca, ganha significado aquele velho ditado popular que diz que, depois de uma tempestade, virá a bonança. É a esperança em dias melhores e num futuro mais compassivo que fazem resplandecer os corações de homens e mulheres, jovens e crianças. Mesmo para o povo crioulo, por mais que a chuva seja boa para as ilhas e para os seus habitantes, o que acalenta a alma deste povo é a esperança de que, depois da chuva, o sol brilhará. É a fé num novo sol, de paz, sossego e farturas, que faz mover o universo crioulo.

Estamos em tempo das águas. O tempo das águas acontece na época mais quente do ano em Cabo Verde (entre Julho a Outubro), período esse que em outras latitudes compreenderia uma parte do que seria designado por verão. Mas aqui não há verão. Aqui é o tempo das águas ou a estação da chuva. Entretanto, por uma influência da nossa grande diáspora e principalmente agora que miúdos e graúdos viraram as costas ao campo por causa de tanta seca cíclica, já se fala mais de verão por cá do que do tempo das águas ou da estação da chuva. Tempo das águas ficou para as páginas de romance históricos, as entrelinhas de novelas bucólicas ou a doce boca de gente grande nas horas mortas de rememorações nostálgicas.

Então, se é de verão que agora se fala tanto, este ano o verão vai de mal a pior. Não há fluxos de emigrantes de regresso a casa, nem de turistas nas ilhas. Tal como Djarmai pará na temp, as ilhas também parecem quedadas num canto do mundo. As esplanadas permanecem sem gente risonha, os bares sem clientelas, as praias desertas, as festas sem convivas e bafas, o calor muito mais salpicado, a boca sem fala harmónica, a juventude enfadada, os velhos novamente resignados. Por todos os lados, já só se fala na recessão económica, no desemprego e na falta de engenho. Não apenas a juventude anda impaciente. Até os velhos mais-quereriam ter o frenesim em casa e nas ruas do que todo esse tédio por falta de coisas para fazer. Falta de coisas como quem diz. Urge repensar a vida, mas ânimo é que tende a se escassear. Há toda uma necessidade de reinvenção dos afazeres e do lazer.

O verão é para se juntar em família, com os amigos, com as novas amizades, nas ilhas de origem, nas zonas portuárias, nas ilhas de sol e mar, nos povoados mais frescos, nos baptizados e casamentos, com a diáspora, com os estrangeiros. Mas, este ano, por ordem superior, cancelaram tudo. As praias continuam interditas, os bares e os restaurantes com horários encurtados e poucos amigos, os festivais só acontecem pela via do digital e no sufá. Manter o distanciamento físico, evitar aglomeração, usar máscara em espaço público, reduções de espaço e horários nos estabelecimentos de convívio social e restrições no acesso a zonas balneares são parte de um novo pacote de regras de contenção da pandemia numa ou noutra ilha deste arquipélago do sol e das praias edénicas. Estando ou não estas novas regras em conformidade com a Constituição da República, o certo é que o verão parece cancelado até ordem em contrário. Assim estamos nós no meio de uma pandemia. Sem dias de praias, nem esplanadas apinhadas de gente. Que resta fazer? Ler um livro, ninguém quer. Dizem que faz muito calor e que já se leu muito durante o ano inteiro. Tocar a guitarra, também sabe a enfadonho. Contar histórias aos miúdos, talvez! Mas os miúdos não estão com paciência. Visitar velhinhos, nem se pode. Que fazer? Viajar para outra ilha, só depois do teste!

Que tal turismar em África? Não, não faz parte das preferências crioulas e ultrapassa de longe o reduzido rendimento das famílias crioulas. As viagens de férias crioulas são quase sempre para países onde a diáspora se encontra instalada. Logo, preferencialmente para a Europa e os EUA. O rendimento das famílias cabo-verdianas não permite grande manobra de diversão. Férias são para poucos e um número muito residual é que se dá ao luxo de se instalar em estabelecimentos hoteleiros e alimentar-se fora de casa. O turismo dos crioulos é de base doméstica e no núcleo doméstico. As viagens e aventuras são modernidades de uma pequena faixa da classe média nacional e diaspórica e mantêm-se fora do alcance das camadas populares que compõem a larga estrutura social da sociedade crioula. Quando houver uma classe média mais engrossada, haverá decerto uma maior diversificação dos destinos e das preferências turísticas dos habitantes das ilhas de Cabo Verde. Por agora, as viagens são mais para visitar a família que partiu para terra longe, realizar consultas médias e algum repouso sem gastos exorbitantes.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 977 de 19 de Agosto de 2020. 

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Autoria:Eurídice Monteiro,25 ago 2020 7:16

Editado porSara Almeida  em  7 jun 2021 23:21

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