A democracia nunca foi (tão) inclusiva

PorEurídice Monteiro,28 set 2020 7:12

Tanto em países de democracias mais antigas, como nas democracias emergentes, a dimensão formal em que o povo ou os representantes do povo parecem governar pode ocultar uma distribuição muito antidemocrática do poder.

A democracia enquanto conceito e prática política teve a sua origem na Grécia Antiga (provavelmente em Atenas), há cerca de dois mil e quinhentos e tal anos. Surgiu a partir das palavras demos e kratos. Demos significava o conjunto de pessoas que viviam num determinado aglomerado ou cidade-estado, mas também podia ser usado para designar a populaça, a ralé ou as camadas mais baixas da sociedade. Kratos significava poder ou governo. Democracia significava, portanto, o governo do povo, o poder era autorizado e controlado pelas pessoas sobre as quais ele era exercido. O conceito foi criado, assim, para descrever uma realidade em desenvolvimento – o tipo de cidade-estado em que o conjunto dos cidadãos se governava efectivamente a si próprio. Este governo apresentava duas características essenciais. A primeira característica prende-se com a composição do próprio governo. No centro do governo democrático em Atenas havia uma Assembleia na qual todos os cidadãos tinham o direito de participar. A segunda característica essencial deste sistema de governo popular directo consistia no preenchimento de quase todos os cargos governamentais e de administração das leis por cidadãos escolhidos por eleições competitivas mas à sorte – um cidadão vulgar tinha, pelo menos uma vez na vida, uma boa hipótese de ser escolhido.

Na mesma altura em que o governo popular foi introduzido na Grécia, surgiu também em Roma. Os romanos chamavam o seu sistema de república. A introdução desse novo conceito no dicionário da política suscitou muitas polémicas entre os pensadores clássicos. Montesquieu, por exemplo, faz distinção entre três espécies de governos: o monárquico, o republicano e o despótico. O autor entende que o Governo republicano é um governo no qual o povo em seu conjunto, ou apenas uma parte do povo, possui o poder soberano. Isso significa que para Montesquieu na república quando o povo em conjunto possui o poder soberano, se está na presença de uma democracia e quando esse poder está nas mãos de uma parte do povo, se está perante uma aristocracia. Em suma, o autor considera que a democracia é um tipo de governo que deriva do governo republicano, tendo assim formulado uma teoria democrática, realista e moderada, inspiradora de muitas Constituições Políticas do século XIX.

Rousseau, por sua vez, também considera que existem três espécies de governos. A diferença reside no facto de Rousseau os classificar de governo democrático ou republicano, governo aristocrático e governo monárquico. O autor entende que num governo democrático ou republicano todos os cidadãos têm os mesmos talentos e as mesmas fortunas. Assim, Rousseau defende uma democracia radicalmente igualitária, atomista e numérica, em que a própria liberdade se funda na igualdade. Este tipo de governo é difícil, para não dizer impossível, de pôr em prática. Também o próprio Rousseau reconhecia que uma verdadeira democracia nunca existiu e nunca existirá.

Robert Dahl considera que as palavras democracia e república não significam quaisquer diferenças nos tipos de governo popular. O que elas reflectiam, no entender de Dahl, era a uma diferença entre o grego e o latim, as línguas de que provinham. No caso de Roma, o direito de participação no governo republicano restringiuse, no princípio, aos patrícios ou aristocratas. Tal como em Atenas, o direito de participar foi restringido aos homens, o que aconteceu igualmente em todas as democracias e repúblicas posteriores, até ao século XX.

Devido à influência de Roma, a república chegou a governar sobre toda a Itália e muito para além dela. Porém, após os primeiros séculos na Grécia e na Itália, a ascensão do governo popular estagnou, começando a declinar até desaparecer.

Todavia, no início do século XII, o governo popular reapareceu em muitas cidades do norte da Itália. Pela segunda vez, foi em cidades-estado relativamente pequenas que os governos populares se desenvolveram e não em grandes regiões ou países. A participação nos órgãos governativos restringiu-se, primeiro, aos membros das famílias da classe alta. Mas, com o tempo, os habitantes das cidades que se situavam mais abaixo na escala socioeconómica começaram a exigir o direito de participação. Embora sendo muito contestadas, essas repúblicas, durante mais de dois séculos, floresceram em muitas cidades italianas. Contudo, em meados do século XIV, começaram a declinar a favor dos governos autoritários. Assim, as cidades-estado desapareceram dando lugar ao estado-nação ou país. Deste modo, as vilas e as cidades passaram a ser incorporadas nesta entidade maior.

Mais tarde, vieram a aparecer na Inglaterra, na Escandinávia, nos Países Baixos, na Suíça e em toda a zona norte do Mediterrâneo, regimes que tinham um governo nacional e um Parlamento nacional composto por representantes eleitos. Esses regimes expandiram-se a larga escala, mas até há dois séculos atrás, a história era muito parca em verdadeiros exemplos de democracias. E até, nos casos raros em que uma democracia existia realmente, a maioria dos adultos não estava autorizada a participar na vida política.

Se hoje a democracia é uma experiência política à escala global, o desafio continua ainda a ser justamente esse de garantir o direito de votar e de ser eleito a grupos distintos que compõem a sociedade: das elites aos pobres; dos homens às mulheres; dos nacionais aos estrangeiros; dos residentes à diáspora. Assim se faz a democracia, com a participação de todos! Entretanto, são várias as resistências a uma democracia plena. Já estamos cansados de ouvir e constatar que, tanto em países de democracias mais antigas, como nas democracias emergentes, a dimensão formal em que o povo ou os representantes do povo parecem governar pode ocultar uma distribuição muito antidemocrática do poder. Também já estamos cansados de constatar o aumento galopante do abstencionismo e de ouvir que os cidadãos se revêem cada vez menos representados por aqueles que elegeram. São estes os dramas da democracia que hoje temos. Quanto mais se acredita que ela é a melhor forma de governo, mas se depara com as formas de a desvirtuar, de onde a fraude eleitoral se desponta, sendo tanto mais dramática consoante o nível de subdesenvolvimento e de desigualdade estrutural de uma sociedade. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 982 de 23 de Setembro de 2020.

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Autoria:Eurídice Monteiro,28 set 2020 7:12

Editado porSara Almeida  em  24 nov 2020 23:20

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