Fragmentos de um discurso sobre a diplomacia caboverdiana

Diplomata e Cientista Social
Diplomata e Cientista Social

Este ensaio pretende ser uma breve contribuição para um debate sobre a nossa “identidade política” – que pode não ser monolítica mas que possuí traços que identificam a nossa nação crioula e, sobre os rumos da nossa diplomacia.

Partindo do princípio que para entendermos a política internacional e a política externa de um país, devemos recorrer necessariamente à história quando procuramos entender posicionamentos políticos específicos, a interpretação deverá basear-se numa perspectiva mais abrangente e padrões genéricos, não se limitando a acontecimentos recentes nem a casos deste ou daquele sujeito. Ou seja, a condução de casos específicos não define em absoluto a visão global de uma determinada política.

Por outro lado, a ideia de que “a política externa deve ser imutável” ou ter uma coerência ad eternum, é falsa. A democracia e o multipartidarismo, bem como a, expectável e desejável, alternância dos partidos no poder permitem mudanças de visão e de estratégias governativas ao longo do tempo, e até em resposta aos tempos. Essas eventuais mudanças, não têm a ver com o país ser rico ou pobre, mas sim com o grau de democracia e ousadia imprimido por um determinado regime.

1. Da “identidade política” – Antes da independência, a nossa identidade era avaliada sob o prisma antropológico/cultural: habitualmente caracterizado de “mestiça” (os “claridosos”, a morna, a culinária, etc.), e sociológico, maioritariamente rural e povo migrante (EUA, Europa e continente africano). Com a independência, passámos a ter também uma identidade política, ainda que sob forte influência cultural e sociológica. Essa identidade foi-se formatando à luz do contexto político internacional (Guerra Fria, luta contra o Apartheid, parcerias para o desenvolvimento), mas também tendo em conta, as remessas dos emigrantes nos países ricos do Ocidente (EUA, Europa) e a sua crescente participação na política nacional. Os cinco séculos de existência numa geografia saheliana e atlântica, fortemente influenciado pela civilização cristã, fizeram de nós caboverdianos, um povo africano “ocidental”. Estes dados importantes, não podem ficar isentos numa análise do perfil da nossa política externa. Aliás, como lembra Kenneth Waltz (num dos seus primeiros trabalhos) a propósito dos Estados Unidos, existe uma forte relação entre a política interna e a política externa.

A política de “Não-Alinhamento” do Grupo dos 77, durante o período áureo da Guerra Fria, serviu tacticamente a nossa política externa, cuja estratégia preconizava o bom entendimento com os big actors do século passado (EUA, Rússia, China, Reino Unido) e, no entanto, a nível regional africano, certas ambiguidades trouxeram também consequências negativas, nomeadamente no caso dos aviões da South African Airways (SSA) no Sal. Acredito que o peso desse posicionamento acabou por ditar a retirada (pós-Apartheid) da rota da companhia de bandeira sul- africana do Sal (a favor de Dakar), no início deste século, apesar dos esforços diplomáticos de Cabo Verde

Quanto à questão do “alinhamento” de Cabo Verde com os Estados Unidos da América, que directa ou indirectamente, é apontado a este Governo – uma proximidade aliás sustentada pela dimensão atlântica e ocidental da nossa identidade política – é de salientar que, ainda que entendida como tal, não gera um fenómeno de exclusividade. Isto é, a capacidade que Cabo Verde tem para dialogar com parceiros de todos os quadrantes políticos e latitudes geográficas, alicerçada na histórica mestiçagem cultural e da nossa diáspora, não permite “alinhamentos automáticos”, nem etiquetas ideológicas obsoletas. Pelo contrário, a pluralidade de parceiros a que a política externa cabo-verdiana nos habituou, exige que os posicionamentos políticos sejam definidos para além de qualquer pretensão ideológico-partidária, ao encontro dos valores democráticos e do interesse nacional, de acordo com a nossa Constituição. Só a “contrapropaganda” de alguns sectores poderá confundir as duas noções: “alinhamento” e “relacionamento”. Enquanto com o primeiro pode ser visto como um compromisso, o segundo é produto de um percurso de amizade que pode ser reforçada ou estagnada. Vejo simplesmente que este Governo quis reforçar a sua amizade com os Estados Unidos da América, país vizinho, próspero e que acolhe centenas de milhares de caboverdianos no seu vasto território. Neste contexto, é preciso notar também que tivemos recentemente um embaixador “forte” naquele país que certamente conseguiu estreitar ainda mais as relações institucionais entre os dois países.

2. Outrossim, entendo que a Política Externa de um país sofre (como todas as políticas) mutações próprias delineadas pelo contexto internacional num determinado momento, com determinados atores. Resta saber se tais mudanças produzem ou não bons resultados. Erros existem? Claro que sim, em todos os governos. De um pragmatismo “passivo” a que estávamos habituados (eventualmente ainda assombrado pelo contexto internacional bipolar em que se deu a fundação da nossa identidade política), passamos a ter um pragmatismo mais “activo”, com escolhas claras que certamente poderão questionar certas relações. Porém, não deixam de ser opções políticas que, formuladas no respeito do interesse nacional, devem ser compreendidas e respeitadas, assim como futuramente, em caso de alternância, deverão ser respeitadas as opções de um outro Governo, independentemente da respectiva “família” política ou linha ideológica. Portanto, nada é imutável nem tampouco isento na política externa de um país ao longo da sua história.

3. Os três pilares da política externa de Cabo Verde, durante a Primeira República (1975 – 1990), a saber: 1) a diplomacia política (Nações Unidas, União Africana, CEDEAO, etc.); 2) a cooperação internacional e ajuda pública ao desenvolvimento (APD); 3. As comunidades emigradas e suas remessas; dizia, permitiram por um lado, granjear um certo “reconhecimento diplomático” do país, e por outro, algum equilíbrio socioeconómico durante aquele período da Guerra Fria - não isento de sacrifícios das populações nas suas ilhas. Mas grande parte desses ativos ou fazem já parte do museu da diplomacia ou foram revistos e têm novos conteúdos. Notou-se uma viragem, por exemplo, na Segunda República, para o capital externo, através das privatizações e investimentos; participação política da diáspora; maior relacionamento com instituições financeiras internacionais (Banco Mundial, FMI, etc); o surgimento do Poder local e a cooperação descentralizada, etc..

4. A questão recorrente da nomeação dos chamados “embaixadores políticos” é colocada pelos diplomatas com alguma legitimidade mas como alguém da casa disse “é normal”. Lembramos aqui que no início do primeiro mandato do PAICV (princípios de 2000) quase todos os destacados “históricos” do partido foram enviados como embaixadores para países importantes (EUA, Alemanha, Portugal, Angola) e mais tarde, substituídos por alguns diplomatas “políticos”. Trata-se portanto, de um déjà vu esta história dos “embaixadores políticos”. Nesta legislatura, tínhamos três, passamos a ter quatro e possivelmente, poderemos vir a ter cinco ou seis. O importante é não exagerar no cunho partidário que damos à acção diplomática, uma tentação a que qualquer governo pode sucumbir, e escolher pessoas que poderão trazer benefícios ao país, afinal são sustentadas pelos cidadãos contribuintes.

5. Por fim, não é segredo para ninguém que uma nova era da política internacional será largamente definida pelos resultados de novembro próximo nos EUA, e o seu impacto nas relações com a República Popular da China. Do mesmo modo, permanecerão na agenda internacional as questões ligadas à segurança internacional e ao combate contra o crime organizado e transnacional, mas sobretudo no domínio de segurança humana (saúde, alterações climáticas, segurança alimentar, terrorismo, etc.).

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 983 de 30 de Setembro de 2020. 

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Autoria:Camilo Querido Leitão da Graça,5 out 2020 7:12

Editado porSara Almeida  em  12 jul 2021 23:21

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