A Constituição de 1992 e a questão (mal compreendida) da “transição constitucional”

PorCasimiro De Pina,24 dez 2019 7:57

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​O Dr. Benfeito Mosso Ramos, após ter defendido, meses atrás, a “tese” peregrina de que Amílcar Cabral é o “pai” da Constituição de 1992, volta agora, de forma mais subtil, a atacar a lei fundamental que inaugura a II República em Cabo Verde, sintonizando o nosso país com a civilização da Justiça e Liberdade.

Como escreveu mui acertadamente o professor Wladimir Brito, após a aprovação da Constituição de 1992, em vigor, “Cabo Verde foi olhado com respeito e deixou de figurar no index da Amnistia Internacional”. É um facto indiscutível. 

Tudo isso é muito estranho, ainda por cima tratando-se de um juiz do Supremo Tribunal de Justiça no activo, sobre quem impende, como é evidente, um certo dever de reserva e, mais ainda, de defesa da ordem constitucional vigente. 

Não compete aos magistrados defender certos arcaísmos político-ideológicos. 

No caso da opinião sobre a (suposta) ligação entre Amílcar Cabral e o constitucionalismo liberal, o absurdo é manifesto e já foi devidamente contestado pelo autor destas linhas (ver https://expressodasilhas.cv/opiniao/2019/03/01/o-...

Benfeito Ramos, desta vez, retoma a velha questão da “ilegitimidade processual” da Constituição de 1992, posição sufragada pelo ex-Presidente António Mascarenhas Monteiro e outros juristas e cidadãos nacionais. 

Trata-se, porém, com o devido respeito, de uma falsa questão, que não encontra guarida nem na história política universal nem, tampouco, na teoria constitucional.

Recordemos, brevitatis causa, o sucedido em 1992.

No mês de Março de 1992 – que eu gosto de chamar a “Primavera do constitucionalismo democrático em Cabo Verde” – começa verdadeiramente o “processo” constitucional, com a apresentação pública da proposta de revisão do MpD e do Governo de então.

A história está muito bem contada em Mário Ramos Pereira Silva, As Constituições de Cabo Verde – Textos Históricos de Direito Constitucional Cabo-Verdiano, 2.ª ed., INCV, Praia, 2010, pp. 31 e seguintes.

A UCID e o PAICV também apresentaram publicamente as suas propostas.

Vale a pena ressaltar este aspecto, que o Dr. Benfeito Mosso Ramos suavemente omite: o PAICV também tinha a sua proposta de revisão constitucional, configurando, praticamente, uma nova lei fundamental, tal era a amplitude das modificações propostas e defendidas pelo líder do Grupo Parlamentar do PAICV.

O jornal Voz di Povo dá-nos conta das linhas essenciais da proposta paicevista. 

A II Sessão Legislativa, durante a qual seria revista, na totalidade, a Constituição de 1980, foi convocada para 20 de Julho, uma Segunda-Feira, às 9 horas. 

Na generalidade, a proposta dos Deputados do MpD foi aprovada sem nenhum voto contra. 

Os problemas começaram com a discussão na especialidade, durante a qual sucedeu o célebre “abandono da sala” por parte dos Deputados do PAICV. 

O que pretendiam os homens do PAICV? 

Basicamente achavam (e acham ainda, como deixou claro o Benfeito, ao escrever, no Expresso, que a questão consistia – e consiste – em saber se a revisão pode ser um meio idóneo de novação constitucional) que havia um problema de ilegitimidade processual, ou procedimental. 

Queriam, mais papistas do que o próprio Papa, uma “assembleia constituinte”. Sem razão. 

Já agora, convém dizer que o PAIGC-CV dá-se mal com as assembleias constituintes.

Violando o disposto no art. 10.º do Acordo de Independência, assinado solenemente com o Governo português, em Dezembro de 1974, não se cumpriu um dos objectivos fundamentais da Assembleia Constituinte eleita em 30 de Junho de 1975, que era, recorde-se, a feitura de uma nova Constituição do Estado independente. Violou-se o acordado. Doucement… 

O PAIGC cedo começou a dar golpes de secretaria, preferindo, ao invés, elaborar a sua enxuta LOPE, por razões mundanas, herdadas de Maquiavel, que têm a ver com a acumulação de poder e a construção de um partido-Estado de feição absolutista (ver a descrição do processo no livro de Humberto Cardoso, O Partido Único em Cabo Verde – Um Assalto à Esperança, de 1993). 

O que aconteceu em 1992 é uma coisa simples e transparente, que Benfeito Mosso Ramos e os outros não compreenderam. 

Foi a chamada…transição constitucional

Os próprios Deputados do MpD não souberam explicar esse fenómeno, o que só veio, de forma explícita, a acontecer em 2014, num artigo científico que este vosso criado publicou na conceituada revista portuguesa Nova Águia

A explicação rigorosa só surgiu, portanto, 22 anos após a promulgação da Constituição. 

Benfeito M. Ramos, Mascarenhas Monteiro e tutti quanti partem de uma premissa errada. E por isso chegam a uma conclusão lapidarmente incorrecta, inválida. Acham que a revisão constitucional nunca é um meio (idóneo) para se chegar a uma nova Constituição. Ora, isso é redondamente falso! E não tem, consabidamente, qualquer base científica. 

Para começar, a Constituição de 1980, na versão resultante da lei constitucional n.º 2/III/90, de 29 de Setembro, não tinha nenhum limite material de revisão. Isto alcança-se facilmente pela leitura dos seus artigos 90.º, 91.º e 92.º.

A Constituição de 1980 era, segundo a importante classificação de Karl Loewenstein, uma Constituição semântica, ou seja, um mero simulacro de um poder originariamente totalitário. 

Era uma Constituição de fachada, em bom rigor. Podia ser revista a qualquer momento (art. 90.º/1). 

Não possuindo, assim, qualquer limite material, e só possuindo limites procedimentais (: as propostas de revisão deviam ser subscritas por pelo menos 1/3 dos Deputados em efectividade de funções, ou pelo Governo, e as propostas de revisão deviam ser aprovadas pela maioria de 2/3 dos Deputados), estava, naturalmente, completamente à mercê da ampla maioria parlamentar saída das eleições legislativas de 13 de Janeiro de 1991. 

Era a “vontade do povo”, na sua primeira e decisiva manifestação histórica neste chão do Atlântico! 

Expliquemos, todavia, o processo com mais precisão e pormenor. 

A transição constitucional integra, no seu iter constitutivo, dois momentos fundamentais. Leia-se o constitucionalista Jorge Miranda sobre isto. 

No primeiro momento, utilizam-se as regras de revisão da velha Constituição (os tais artigos 90.º, 91.º e 92.º). Foi exactamente o que o MpD fez. No segundo momento, opera-se entretanto a ruptura, a transição constitucional propriamente dita, através da supressão do velho texto constitucional e da feitura/aprovação de um novo totalmente diferente. 

A constituição “material” harmoniza-se, deste modo, com a constituição “formal”, conferindo coerência onto-lógica à ordem jurídica nacional, e evitando, com palavras pedidas a Claus-Wilhelm Canaris, “quebras intra-sistemáticas”.

A tremenda confusão do Dr. Benfeito Ramos está, precisamente, na (in)compreensão da legitimidade disto tudo! 

Ora, é evidente que a transição não cobra nem podia cobrar a sua legitimidade à luz da velha Constituição, que acaba por revogar. Não é isso. 

A transição constitucional legitima-se sim, unicamente, à luz da nova Ideia de direito ou de justiça entretanto formada, a qual logra, inquestionavelmente, um vasto consenso comunitário. Esta Ideia pode ser explicitada numa fórmula jurídica breve e compreensiva: Estado de Direito Democrático, com a sua típica Axiologia e os seus irrenunciáveis fundamentos materiais, hoje bem captados pela dogmática constitucional mais representativa. 

Trata-se, lembrando a genial intuição do Doutor Rogério Soares, do imarcescível “conceito ocidental de Constituição”. Aqui reside a fonte de legitimidade primeva da Constituição de 1992. 

A transição constitucional só ocorre em épocas históricas “fortes”, especiais, quando exista uma mudança significativa dos valores políticos e das aspirações colectivas. É um fenómeno excepcional. Raro, por natureza. Traduz, enfim, uma nova ideia do “governo civil”. 

A Constituição mais emblemática e estável do mundo moderno, a norte-americana de 1787, não nasceu através da “assembleia constituinte” eleita. 

Não existe um modelo constitucional único, ao contrário da suposição de alguns. 

António Mascarenhas Monteiro, já agora, tentou iludir a nação em 1992. 

Não houve nenhum “esbulho” dos seus poderes presidenciais, nem foi apanhado “de surpresa”, porque ele já conhecia, na perfeição, o projecto do MpD, o tal parlamentarismo mitigado, defendido por Carlos Veiga já na revisão de Setembro de 1990, ao contrariar as teses do PAICV, e reafirmado, depois, nos documentos centrais do novel partido. Temos que ser coerentes. E sinceros. 

Há que aprofundar mais a “leitura constitucional”, e não transformar os nossos preconceitos em verdades históricas definitivas, tão ao gosto de um certo sector (neo)marxista.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 942 de 18 de Dezembro de 2019. 

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Autoria:Casimiro De Pina,24 dez 2019 7:57

Editado porSara Almeida  em  15 set 2020 23:21

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