A “abertura política” de 19 de Fevereiro

PorAntónio Monteiro,22 fev 2020 8:51

Cabo Verde não embarcou, em 1975, na chamada terceira onda de democracia, mas em 1990, para fazer face à apatia e insatisfação que se fazia sentir na sociedade e embalando nos ventos políticos vindos da Europa do Leste, o PAICV anunciava, a 19 de Fevereiro, a “abertura política”, ao aprovar medidas que deviam conduzir, “a prazo”, à mudança do regime e ao pluralismo partidário em Cabo Verde.

Não é por acaso que o PAICV reivindica para si a paternidade desta data, pois deste partido partiu, de facto, a iniciativa deste processo, mas, como os jornais da época atestam, a “abertura política” que vingou, não foi a que o PAICV preconizava, nomeadamente uma abertura com base na participação de grupos de cidadãos nas eleições previstas para Dezembro desse mesmo ano, mas a da participação de partidos políticos que, na óptica do PAICV, só deveria acontecer nas eleições de 1995. Visto deste ângulo, o MpD antecipou o pluripartidarismo em Cabo Verde, em termos eleitorais, em cerca de cinco anos.

Faz hoje justamente 30 anos que o Conselho Nacional do PAICV reunido na Praia de 13 a 19 de Fevereiro anunciava a “abertura política” ao aprovar medidas que deviam “conduzir, a prazo, à mudança de regime e à abertura ao pluralismo partidário em Cabo Verde”. (Jornal Tribuna, nº 35 de Fevereiro de 1990).

Assim, o Conselho Nacional propôs que para as eleições legislativas de Dezembro de 1990 fossem admitidas listas alternativas de grupos de cidadãos e a alteração do artigo 4º da Constituição que consagrava o PAICV como força política dirigente do Estado e da sociedade. Entretanto, esta última proposta deveria apenas ser realizada no quadro de uma então anunciada revisão constitucional na 4ª legislatura, ou seja, depois das eleições de Dezembro.

Portanto, como sê lê no mesmo número do jornal, o PAICV pretendia que a abertura se fizesse de forma gradual e planificada e que estas e outras mudanças do sistema político propostas fossem materializadas sob liderança do partido que governava o país desde a independência.

Para aprovar as mudanças propostas, o CN do PAICV decidiu convocar um Congresso extraordinário que realizar-se-ia no ano seguinte.

Ao anunciar os resultados saídos da reunião, Pedro Pires, então secretário geral-adjunto do PAICV e primeiro-ministro deixou transparecer aos jornalistas uma imagem de confiança e segurança, certamente alicerçado numa sondagem encomendada pelo PAICV no mês de Janeiro desse ano que apontava que o governo tinha grande apoio da população. “Cerca de 86 por cento dos cabo-verdianos acham que ‘é graças ao Partido que o país avançou’ e mais 10 por cento apenas concordam em parte com a afirmação. Em relação ao Estado, 79 por cento dos cidadãos pensam que ele ‘ tem trabalhado bem’, 16 por cento concordam parcialmente e apenas quatro por cento discordam”. (Tribuna, Fevereiro de 1990).

É neste novo contexto, criado com as resoluções do CN de Fevereiro e tendo em vista a renovação do partido, que surge o plano de afastar Aristides Pereira, então Secretário-Geral do PAICV e Presidente da República, ficando o campo aberto para Pedro Pires assumir a presidência, com amplos poderes, tendo a seu lado como primeiro-ministro, João Pereira Silva, então ministro do Desenvolvimento Rural e um dos mentores da abertura política. Um elemento impor­tan­te desse plano era cooptar figuras como Carlos Veiga e José Tomás Veiga para um governo de cariz tecnocrata.

“Os objectivos dessa cooptação eram claros. Introduzir novas energias e novas ideias no elenco governamental e retirar aos futuros oposionistas figuras carismáticas que os pudessem liderar”. (Humberto Cardoso, O Partido Único em Cabo Verde). Entretanto o plano saiu gorado, pois Aristides Pereira revela ao jornal Tribuna no mês de Abril que “não ainda decidiu deixar qualquer dos cargos que desempenha”.

O último golpe no plano Pires/João Pereira Silva saiu da reunião do CN do PAICV, realizada no mês de Junho, que apoiou “por unanimidade a candidatura de Pedro Pires ao cargo de Secretário-geral, em substituição de Aristides Pereira que, por sua vez, deixa a liderança do PAICV para se candidatar à Presidência da República, em eleições directas e por sufrágio universal”. (Tribuna, de Junho de 1990).

Aristides Pereira reentra em cena

Desta forma Aristides Pereira voltava a entrar no jogo político, pois no novo contexto o Presidente da República não podia ser ao mesmo tempo o Secretário-geral do Partido e Presidente da República.

“Derrubados, assim, alguns pressupostos do plano Pires/Pereira da Silva, Aristides Pereira retomou a iniciativa política. Na sua qualidade de Presidente da República, apressou-se a receber a delegação do Movimento para a Democracia (MpD), chefiada pelo Dr. Carlos Veiga, que lhe foi entregar a Declaração Política do Movimento. (Humberto Cardoso, O Partido Único em Cabo Verde ). Segundo o mesmo autor, a iniciativa de Aristides Pereira além de dar a conhecer formalmente ao país a existência do MpD, iria reflectir na decisão da referida reunião do Conselho Nacional do PAICV.

A Declaração Política do MpD

A Declaração Política do MpD, de 14 de Março de 1990, tido como documento fundador do partido, foi subscrita e aprovada por 600 cidadãos que reuniram nesse dia numa escola do Brasil, em Achada Santo António, na Praia.

Para os signatários, nas condições pretendidas pelo PAICV, as próximas eleições realizar-se-ia numa base anti-democrática, dado que só ao PAICV seria permitido concorrer com um projecto de sociedade e um programa de governo e os chamados “Grupos de Cidadãos” confinar-se-iam nos limites geográficos dos seus círculos eleitorais.

Entre vários pontos que vertiam a ideologia do novo partido, destacavam-se os referentes às eleições legislativas marcadas inicialmente para Dezembro desse ano:  . A democracia pressupõe igualdade de todos os cidadãos. Nessa base, para que as próximas eleições legislativas  sejam democráticas é indispensável que a sociedade se dote, desde já, de mecanismos institucionais e legais que  permitam a livre expressão das diversas correntes e/ou de plataformas políticas em pé de igualdade.  . O PAICV, com o objectivo de perpectuar o seu poder, pretende impor à sociedade civil um processo de mudanças a  conta-gotas, e, num horizonte temporal que lhe permite ganhar tempo para preservar as bases sobre que assenta o  seu poder. De igual modo, pretende seduzir a sociedade, introduzindo a figura de “Grupos e Cidadãos”, o que, na  actual conjuntura, constitui uma armadilha para fragmentar as forças da oposição.  . A figura de “Grupo de cidadãos”, para além de dividir as forças que se opõem ao PAICV, tira todas as chances à  sociedade civil de se organizar em partidos políticos que concorrem às eleições legislativas com programas   verdadeiramente alternativos e dirigidos a toda a Nação cabo-verdiana.  

A Declaração preconizava ainda uma revisão constitucional que consagrasse o sistema democrático e pluralista, devendo prever nomeadamente: a separação efectiva dos poderes legislativo, executivo e judicial; a eleição do Presidente da República por sufrágio directo, secreto e universal e a limitação do mandato; a criação de um Tribunal Constitucional, o princípio da existência de partidos políticos; as bases do estatuto da oposição, entre outras reivindicações.

Estes princípios e valores defendidos no documento fundador do MpD seriam plasmados na Constituição de 1992.

Entretanto, como acima referido, com a reentrada em cena de Aristides Pereira o PAICV acelera as mudanças preconizadas.

Na sua intervenção de abertura do Conselho Nacional de Abril de 1990, Pereira dá o tom para a aceleração do processo cuja tónica fica reflectiva no comunicado final do Conselho Nacional do PAICV que decide antecipar o congresso extraordinário para Julho; decide uma revisão constitucional para Setembro e propõe a realização das eleições presidenciais por sufrágio directo e secreto em Novembro, com base em candidaturas apresentadas por grupos de cidadãos e recomenda eleições legislativas pluripartidárias após as eleições presidenciais a serem marcadas pelo presidente eleito.

Mudança do calendário das eleições previstas

Entretanto, como relata Humberto Cardoso, no seu citado livro, com base em fontes imediatas publicadas nos jornais da época, os “encontros com o MpD levaram a uma mudança do calendário das eleições previstas. O calendário, apresentado pelo PAICV, previa eleições presidenciais em primeiro lugar e só depois eleições legislativas. O argumento apresentado era que assim garantia-se através de um presidente eleito e suprapartidário “…a estabilidade política e institucional… a existência de um órgão independente dos partidos políticos…. O MpD pensava que não se devia eleger um presidente sem definir concretamente as suas funções, o que só deveria ser feito no âmbito de uma nova Constituição. Afirmou, ainda, que, fundamentalmente, o que o PAICV pretendia com esse calendário era aproveitar o fenómeno de arrastamento proveniente da eleição de Aristides Pereira, seguros como estavam da vitória deste”.

Entretanto, como o MpD fazia finca-pé que se realizem primeiro eleições legislativas, para ultrapassar este impasse, realizaram-se, no mês de Setembro, conversações entre delegações do PAICV e do MpD no Palácio da então Assembleia Nacional Popular. Como regista o jornal Tribuna, na sua edição de 24 de Setembro de 1990, o “ PAICV e o MpD concordaram que as eleições legislativas sejam marcadas para Janeiro de 1991. As presidenciais, por sufrágio directo e universal, terão lugar pouco depois, em Fevereiro…”.

Com este acordo, com a queda do Artigo 4º da Constituição e com a aprovação da Lei dos Partidos pela Assembleia Nacional Popular estava tudo a postos para o início do primeiro embate eleitoral que o Partido Único enfrentava em 15 anos de poder. A campanha iniciou-se no dia 4 de Dezembro e prolongar-se-ia até 11 de Janeiro de 1991.

Durante a noite de 13 de Janeiro foram surgindo as contagens de votos e a vitória delineou-se muito mais expressiva do que o esperado. Por volta da meia-noite, Carlos Veiga assumiu a vitória. Às 2h, Pedro Pires admitia a derrota. O MpD venceu com cerca de 70% dos votos, garantindo 56 deputados na nova Assembleia contra 23 do PAICV.

A expressiva vitória do MpD nas legislativas e de Mascarenhas Monteiro apoiado pelo mermo partido nas presidências de 17 de Fevereiro punha termo a 15 anos de regime de partido único e dava início a um novo ciclo de vida política marcado pela mudança do regime e pelo pluralismo partidário em Cabo Verde a que se convencionou chamar segunda república.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 951 de 19 de Fevereiro de 2020. 

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Autoria:António Monteiro,22 fev 2020 8:51

Editado pormaria Fortes  em  17 nov 2020 23:21

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