Em artigo dado à estampa no Nº 951 de 19 de Fevereiro de 2020 do jornal Expresso das Ilhas, sob o título “Foi há 30 Anos – A ‘abertura política’ de 19 Fevereiro” o autor, António Monteiro, afirma na introdução “Cabo Verde não embarcou, em 1975, na chamada terceira onda de democracia, mas em 1990, para fazer face à apatia e insatisfação que se fazia sentir na sociedade embalado nos ventos políticos vindos da Europa do Leste, o PAICV anunciava, a 19 de Fevereiro, a “abertura política”, ao aprovar medidas que deviam conduzir, “a prazo”, à mudança do regime e ao pluralismo partidário em Cabo Verde. Não é por acaso que o PAICV reivindica para si a paternidade desta data, pois deste partido partiu, de facto, a iniciativa deste processo, mas, como os jornais da época atestam, a “abertura política” que vingou, não foi a que o PAICV preconizava, nomeadamente uma abertura com base na participação de grupos de cidadãos nas eleições previstas para Dezembro desse mesmo ano, mas a da participação de partidos políticos que, na ótica do PAICV, só deveria acontecer nas eleições de 1995. Visto deste ângulo, o MPD antecipou o pluripartidarismo em Cabo Verde, em termos eleitorais, em cerca de cinco anos.”
Embora confirme que do PAICV “partiu, de facto, a iniciativa deste processo”, já logo a seguir vem dizer que a abertura política que vingou não foi a preconizada pelo PAICV, mas sim a do MPD. Mais à frente, já no corpo do artigo e após uma parte inicial mais ou menos fatual, entra no domínio da pura ficção ao se referir a um plano para afastar Aristides Pereira, plano da autoria de Pedro Pires e João Pereira Silva. Volto a citar, “É neste novo contexto, criado com as resoluções do CN de Fevereiro e tendo em vista a renovação do partido, que surge o plano de afastar Aristides Pereira, então Secretário-Geral do PAICV e Presidente da República, ficando o campo aberto para Pedro Pires assumir a presidência, com amplos poderes, tendo a seu lado como primeiro-ministro, João Pereira Silva, então ministro do Desenvolvimento Rural e um dos mentores da abertura política”. “Um elemento importante desse plano era cooptar figuras como Carlos Veiga e José Tomás Veiga para um governo de cariz tecnocrata”. “Os objetivos dessa cooptação eram claros. Introduzir novas energias e novas ideias no elenco governamental e retirar aos futuros oposicionistas figuras carismáticas que os pudessem liderar”. (Humberto Cardoso, O Partido Único em Cabo Verde). Continuo a citar, “Entretanto, o plano saiu gorado, pois Aristides Pereira revela ao jornal Tribuna no mês de Abril que ‘ainda não decidiu deixar qualquer dos cargos que desempenha’”. Afirma ainda, o articulista, que “o último golpe no plano Pires/João Pereira Silva saiu da reunião do CN do PAICV, realizada no mês de Junho, que apoiou por unanimidade a candidatura de Pedro Pires ao cargo de Secretário-geral, em substituição de Aristides Pereira que, por sua vez, deixa a liderança do PAICV para se candidatar à Presidência da República, em eleições diretas e por sufrágio universal”. (Tribuna, de Junho de 1990).”
O dito plano de afastamento de Aristides Pereira não tem qualquer fundamentação, tratando-se de mera ficção. O que é que se passou de facto? Em reunião da CP do PAICV realizada em 1990, em data de que não me recordo com precisão, sem qualquer agendamento prévio, Aristides Pereira anuncia a sua intenção de não se apresentar às eleições presidenciais previstas e de se retirar da vida política. A CP era constituída por Aristides Pereira, Pedro Pires, Abílio Duarte, Silvino da Luz, Olívio Pires, Júlio de Carvalho, André Corsino Tolentino e João Pereira Silva. Quais foram as reações? Lembro-me que eu apoiei de imediato assim como o Corsino. O Olívio manteve um sorriso enigmático e não interveio, Silvino da Luz manteve-se ausente, diria mesmo cabisbaixo. Não me lembro bem, mas Pedro Pires terá sugerido que a questão fosse aprofundada noutra sessão.
No dia seguinte ou num dos dias imediatamente subsequentes Aristides Pereira chama-me à Presidência e explica-me que precisava de mim para uma missão delicada. O problema seria que, entretanto, um grupo de membros da mesma CP encontrara-se com ele a pedido dos mesmos, tendo-se oposto a tal decisão com base na necessidade de preservar a unidade do Partido. O certo é que acabou por aceitar se candidatar o que implicaria uma decisão do CN a ser ratificada em Congresso. O que ele queria de mim era que eu convencesse o André Corsino Tolentino a não se opor, já que quanto a mim ele já se tinha assegurado da minha colaboração. Devo dizer que a versão que me foi transmitida por Olívio Pires é ligeiramente diferente quanto às razões. Diz Olívio Pires que Aristides Pereira teria referido que ele podia ser substituído e que o problema era substituir Pedro Pires. Nunca existiu nenhum plano de afastamento de Aristides Pereira. Quanto à hipótese de eu poder vir a posicionar-me para o lugar de Primeiro Ministro, nunca houve nenhum plano e nunca sequer o assunto foi abordado por mim, nem sequer ao de leve, com Pedro Pires.
Aristides Pereira nunca me explicou por que razão se propôs retirar-se da vida pública naquela altura. No entanto, posso imaginar que as verdadeiras razões seriam de ordem muito pessoal. De saúde e familiares. No entanto, não vale a pena entrar em especulações ficando pelo que o próprio declarou livro entrevista de José Vicente Lopes1.
A cooptação de elementos como o Carlos Veiga é outra ficção. Carlos Veiga já tinha sido cooptado para as Legislativas de 1985. De facto, o PAICV, no quadro dos diversos ensaios de abertura e contrariamente às teses dos ventos de mudança oriundos do Leste, tinha optado por um processo participativo de elaboração das listas de candidatos a deputados. Foi assim que numa assembleia de base no antigo Centro 1º de Maio o Estevão Rodrigues propôs o nome do Carlos Veiga que, salvo erro, nem estava presente. O certo é que o nome foi aceite e passou em todos os grupos, foi incluído nas listas e assim entrou para a Assembleia Nacional Popular.
Não existiram duas propostas de abertura alternativas. O que aconteceu, de facto, foi que o PAICV tornou públicas antecipadamente as suas propostas e depois, já com o MPD tacitamente reconhecido, num processo negocial, se acertaram as modalidades concretas da abertura.
As primeiras negociações ainda informais para se encontrar um caminho consensual para concretizar as orientações saídas do CN de 19 de Fevereiro foram lideradas por mim. O que se queria era encontrar soluções consensuais. Veja-se a minha entrevista ao jornalista Júlio Vera Cruz Martins para o programa “Face ao Público” difundido a 2 de Abril de 1990. Depois aconteceu a doença de Aristides Pereira e sou designado para o acompanhar aos Estados Unidos para tratamento médico. Quando voltei tudo tinha já sido acordado, nomeadamente o calendário e a sequência das eleições. No novo contexto Aristides Pereira manteve o seu compromisso e depois da derrota do PAICV nas Legislativas agiu como verdadeiro patriota olhando apenas aos interesses da estabilidade e da paz social do povo cabo-verdiano, sujeitando-se a todos os desrespeitos com elevação.
Eu situo o início do processo de abertura no I Congresso do PAICV em Janeiro de 1981. Ao decidirem pela rotura os militantes que formaram o PAICV optaram por um caminho de luta intransigente pelos interesses de Cabo Verde e pela legalidade.
Foi em 1983 no II Congresso que se permitiu que os militantes de base participassem na constituição da Lista do Conselho Nacional a ser eleita no Congresso. Adotou-se o modelo de lista aberta e votação nominal por voto secreto, o que produziu um terramoto quando os resultados da votação no Congresso foram divulgados. Mas desta vez os protagonistas da mudança foram mantidos fora da Comissão Política, o órgão colegial que realmente contava, pela vontade expressa do Secretário Geral.
As listas de candidatos para as Legislativas de 1985 foram elaboradas com ampla participação dos militantes e cidadãos.
Em Novembro 1988 as ideias de mudança chegam ao congresso, o III do PAICV, após quase um ano de intensos debates ao nível da Subcomissão de Redação da Comissão Organizadora, nas estruturas partidárias e na imprensa. Os apoiantes da abertura perderam na votação da principal Tese apresentada ao Congresso. No entanto, as sementes estavam lançadas e começavam a germinar. Eu e o André Corsino Tolentino fomos eleitos para a Comissão Política.
Finalmente, em Fevereiro de 1990 as teses de mudança foram adotadas. Desta vez Pedro Pires tomou cedo a palavra e fez pender a balança para o lado dos defensores da mudança do regime político.
Fizemos um caminho de oito anos e produzimos a mudança mais transparente, pacífica e democrática que a África conheceu. De quem é o mérito da instauração da democracia em Cabo Verde? Seguramente que não pertence a um partido só, muito menos a uma pessoa. O mérito pertence ao povo de Cabo Verde. Claro que alguns filhos deste povo fizeram mais do que outros para que a democracia fosse instaurada de forma pacífica e transparente. De quem é o mérito da transparência do processo? Seguramente que do PAICV. Quem foi capaz de organizar as eleições justas e transparentes de Janeiro de 1991 e aceitou sem qualquer artimanha ou ódio os resultados que lhe foram desmesuradamente desfavoráveis?
Em Julho de 1989 foram aprovadas duas Leis que já estavam fora do que deveria ser legislação de um regime de partido único. Trata-se da Lei nº 47/III/89 de 13 de Julho (Lei de Bases das Autarquias Locais) e da Lei nº 48/III/89 (Lei Eleitoral Municipal).
Durante o ano de 1990 foi aprovada toda a legislação necessária para que as primeiras eleições pluripartidárias decorressem com total transparência. Veja-se que todo o processo eleitoral até à divulgação dos resultados foi conduzido pela Comissão Eleitoral presidida por um Juiz de Direito, comissão totalmente independente. Foram publicados dois despachos que têm de ser citados, sobre a suspensão das funções de ministros candidatos. Legislou-se para proibir os membros das Forças Armadas e da Polícia de participarem em organizações partidárias. Os Comandantes que tinham vindo da Luta Armada na Guiné e que vinham exercendo cargos políticos tiveram de passar à reforma para poderem continuar na vida política ativa.
O PAICV nunca pretendeu perpetuar o seu poder e provou-o pela forma como preparou as primeiras eleições pluripartidárias, tendo sido capaz de trazer para a mesa das negociações a oposição mesmo antes da sua legalização formal.
O PAICV não entregou o poder de bandeja ao MPD. Contou-me um antigo deputado do MPD que quando da campanha eleitoral para as eleições de Janeiro de 1991, as diversas sondagens davam o PAICV sempre à frente até que um dia, o responsável do PS português encarregado de apoiar o MPD sugeriu que a única maneira de inverter a situação seria criar um fato com tais características que pudesse motivar os eleitores, a mudarem o sentido das intenções de voto. Essa falsa notícia deveria referir-se a uma matéria que fosse altamente sensível para os cabo-verdianos. Deveria ser divulgada nos últimos dias da campanha tornando impossível ou ineficaz a resposta do PAICV. A matéria a escolher deveria ser a corrupção. Disse-me esse ex-deputado que o Carlos Veiga ainda se opôs ao início, mas acabou por ter de dar o seu assentimento face à argumentação do assessor português.
No Círculo Eleitoral do Tarrafal pelo qual concorria estávamos confiantes, longe de saber o que se tramava. Num dos últimos dias de campanha fizemos o percurso da estrada da Serra da Malagueta para Lagoa e depois subimos a encosta íngreme para Achada Lagoa de onde continuamos por um caminho vicinal em muito mau estado até Mato Brasil onde deveríamos retomar as viaturas, do outro lado do Concelho. Durante essa noite o Círculo foi inundado com os célebres e infames panfletos em que os dirigentes do PAICV, em geral os que tinham feito a luta armada na Guiné apareciam com enormes quantias depositadas em bancos na Suíça. Nem se deram ao cuidado de inventar números credíveis. No dia seguinte tínhamos comício marcado para a Ribeira Principal. Ficamos sozinhos na praceta da localidade sem ninguém com quem falar, nem mesmo os nossos próprios militantes e simpatizantes. A seguir vieram as traições e defeções. Era impossível resistir já que os nossos próprios militantes em muitos casos acreditaram e deixaram de lutar, claudicando em toda a linha.
Em minha opinião a direção do PAICV não teve em devida conta as conclusões do estudo elaborado no Instituto Amílcar Cabral por uma equipa de quadros nacionais e liderada pelo Professor François Houtard da Universidade de Católica de Louvain (Bélgica). De facto, em Janeiro de 1988 o Instituto Amílcar Cabral, através do seu Centro de Estudos Sociais, realizou a primeira sondagem de opinião pública sobre questões políticas na Praia e no Mindelo. Ao mesmo tempo foi realizado um estudo sobre os membros do PAICV. A sondagem e o estudo foram mantidos como assuntos secretos. Apesar das limitações inerentes, as conclusões redigidas pelos próprios autores são de muito grande pertinência e a não tomada em conta das mesmas causou um prejuízo irreparável ao PAICV.
Voltemos à tal notícia falsa que desestabilizou completamente o PAICV em Janeiro de 1991 e estabeleçamos a ligação com as conclusões pertinentes do estudo referido acima.
Ø Essa falsa notícia deveria referir-se a uma matéria que fosse altamente sensível para os cabo-verdianos. Os autores do estudo de opinião elencam como críticas mais frequentes no capítulo do estudo referente a Confiança no Estado, frases como “Dirigentes que vivem no luxo enquanto há miséria no campo”; “Há que punir os corruptos”. Essas críticas indicam que a corrupção é um tema das conversas dos eleitores e a ele são sensíveis.
Ø O estudo indica que 52% dos militantes do Partido era de opinião que “a igreja deve dar orientações a toda a sociedade”, “55% opõem-se à liberdade face ao divórcio” e “60% opõem-se à liberalização do aborto”. Vê-se, assim, que nós que estávamos no terreno nos encontrávamos desarmados face a uma notícia falsa, sobre um tema que já estava na cabeça dos eleitores e, de alguma forma, veiculada por agentes da Igreja e, logo, percecionada como validada por esta.
Ø Deveria ser divulgada nos últimos dias da campanha tornando impossível ou ineficaz a resposta do PAICV. De facto, a falsa notícia caiu como uma bomba sobre as nossas cabeças deixando-nos atordoados e sem militantes aguerridos para continuarem a lutar até ao dia das eleições.
Em conclusão eu direi que:
1. Não só foi do PAICV a Iniciativa da mudança do regime político como foi este partido que preparou todo o processo de forma que ela se efetuasse com a máxima transparência e fidelidade;
2. A mudança foi o fruto de uma evolução interna iniciada muito antes de 1990 mesmo considerando o impacto dos ventos do Leste em todos os países governados por partidos únicos;
3. A derrota do PAICV nas eleições de 13 de Janeiro de 1990 resultou de um conjunto de fatores dos quais não convém excluir aqueles ligados à utilização massiva de falsas notícias, ao papel ambíguo da Igreja Católica e ao apoio técnico externo de que beneficiou o MPD;
4. Nos fatores que influíram na derrota do PAICV não se pode deixar de referir a forma como a direção do Partido geriu a informação de que dispunha não somente antes, mas também durante a campanha eleitoral;
5. O PAICV não entregou o poder de bandeja ao MPD. A vontade de mudança do sistema político já se encontrava enraizada na sociedade cabo-verdiana.
Fundo das Figueiras, 16 de Março de 2020.
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1 Lopes (José Vicente). Aristides Pereira, Minha Vida Nossa História. Praia, Spleen Edições, 2012, Pgs 304 e 305, pg 329 e pg. 368.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 955 de 18 de Março de 2020.