A investida afrontosa teria sido a intervenção de uma deputada no âmbito do debate anual sobre o estado de Justiça em que para demonstrar a necessidade de uma justiça eficaz e em tempo útil se serviu do caso em que magistrados judiciais depois de acusados de vários crimes e ilibados por uma investigação do ministério público apresentaram queixa por calúnia e difamação contra o autor e ainda estão à espera do julgamento. Em Fevereiro de 2019 o caso foi ao tribunal mas o juiz posteriormente pediu escusa e o julgamento ficou suspenso. Por decisão recente vai ser retomado em Janeiro de 2021.
Compreende-se o sentimento de frustração dos magistrados perante um caso que os afecta directamente na sua dignidade e que dura tanto tempo a ser resolvido. Não parece razoável é que queiram imputar à deputada na sua intervenção na plenária da Assembleia Nacional “o propósito de emprestar credibilidade a impropérios deferidos contra certos magistrados”. O discurso do deputado na plenária da AN goza de imunidade mas está sujeito ao contraditório das forças políticas presentes num parlamento que é plural. Partes do discurso até podem ser retiradas da acta por decisão do Presidente ou do plenário. Não foi o caso como os próprios magistrados reconhecem na declaração ao se referirem ao facto de em nenhum momento se ter uma só voz a convidar a deputada a respeitar o bom nome de cidadãos indefesos. Ou seja, o mais provável é que não houve propósito de desrespeito e o silêncio de todos os outros sujeitos parlamentares dificilmente pode ser interpretado como “quem cala, consente”.
No parlamento ninguém é calado e ninguém é forçado a consentir. As imunidades, o estatuto de oposição, os direitos das minorias e os procedimentos de garantia do exercício do contraditório existem para assegurar isso. Neste sentido, é claramente excessivo extrair da não contestação do discurso da deputada um eventual posicionamento do parlamento de hostilidade em relação ao poder judicial e presumir que mereceu aprovação dos demais órgãos de soberania porque de nenhum deles houve pronunciamento sobre o assunto nos 27 dias seguintes. Os factos, quanto à relação do poder político com o poder judicial, apontam no sentido oposto.
As sucessivas revisões constitucionais e particularmente a revisão de 2010 sempre traduziram-se em mais independência para os juízes e mais autonomia para o ministério público. As leis aprovadas pelo parlamento em sucessivas legislaturas, tanto em matéria organizacional e funcional dos tribunais e das procuradorias como em matéria cívil e criminal e de aumento da capacidade de autogestão das magistraturas, têm beneficiado de um elevado grau de consenso entre as forças políticas, algo que não se vê noutros sectores da governação. Da mesma forma, os sucessivos governos têm sido pródigos em dispensar meios e recursos para o sector dentro das normais limitações orçamentais. O que vem aumentando é a insatisfação com a administração da justiça traduzida em vários apelos para diminuir a morosidade, aumentar a produtividade e melhorar a qualidade, em particular quando está a ficar cada vez mais claro que a falta de eficácia não é só uma questão de meios insuficientes.
Agora parece que às frustrações das pessoas e do cidadão comum vêm-se juntar à insatisfação de magistrados judiciais que, de há muito, esperam que a justiça se realize e sejam reparados por alegadas calúnias e difamações dirigidas contra eles. Pode ser um bom momento para uma reflexão aprofundada sobre o sistema de justiça que não seja prejudicada por interesses político-partidários e por outros de natureza corporativa.
A democracia e o Estado de direito democrático tem na sua base o respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos, pelo primado da Lei e pela independência dos tribunais. O regime perdura se se assegurar a existência de um poder judicial em que todos podem confiar e que não se deixe condicionar ou limitar por outros poderes do estado e interesses privados. Nesse sentido, é de maior importância dotar as magistraturas da capacidade de autogestão para desempenharem as duas funções sem dependências e sem condicionalismos. Também serem capazes de adoptar uma ética e um ethos essenciais para o exercício da função com competência e sentido do bem público é fundamental para a credibilidade junto ao público, para manutenção de um ambiente de liberdade, paz e justiça e para o equilíbrio dos poderes no sistema democrático.
Na revisão da Constituição de 2010 o legislador constituinte revelou-se bastante inovador com o modelo de autogestão das magistraturas. Foi-se em vários aspectos muito além do que se encontra noutras democracias. Entre outras inovações, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) deixou de ser o presidente do Conselho Superior de Magistratura (CSMJ), as secretarias judiciais passaram para a superintendência do CSMJ e alterou-se a composição do STJ que ficou aberto apenas a magistrados judiciais. Mais responsabilidades e mais meios foram disponibilizados nestes últimos dez anos ao sector da justiça mas é evidente que ninguém está satisfeito. Houve progresso visível em vários domínios mas a questão central da morosidade e as dificuldades em operacionalizar um serviço de inspecção judicial efectivo tem sido matéria sempre retomada no debate parlamentar anual do estado da Justiça. A isso tudo poderá não estar alheio algum corporativismo que por várias formas tende a emperrar o funcionamento de sistemas com perdas de eficácia visíveis.
Passados dez anos após a revisão da Constituição que adoptou o novo modelo de gestão do sistema de justiça talvez seja oportuno uma avaliação das suas virtudes e defeitos e dos seus custos e benefícios no sentido de se encontrar a melhor via para aumentar a eficácia da Justiça. O momento parece o mais apropriado considerando que todos, incluindo os próprios magistrados, se mostram insatisfeitos com a actual situação. É, porém, mais aconselhável para todos os actores no sistema democrático ir por uma via construtiva de diálogo alargado do que entrar por um jogo de culpas mútuas que, como em geral acontece nas críticas ao sistema políticos nas democracias, acabam por fazer do parlamento o alvo principal. Tão pouco é aconselhável subtrair-se aos momentos solenes do sistema democrático como é o do Início do Ano Judicial presidida pelo presidente da República e da responsabilidade do Supremo Tribunal de Justiça que nos últimos anos tem sido realizado nos primeiros quinze dias de Novembro, evocando um suposto “clima de hostilidade institucional”.
Todos têm a responsabilidade de construir para a presente e futuras gerações um Cabo Verde de liberdade, paz e justiça. Como bem dizia alguém, não há maior privilégio do que estar presente no momento da criação. Há que assumir o papel histórico que a cada um coube desempenhar.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 992 de 2 de Dezembro de 2020.