É um processo quase incontornável considerando o impacto que o Sars-coV-2 tem tido em todos os aspectos da vida. As previsões para o regresso a uma normalidade, que certamente não será a mesma de antes, apontam para um mínimo de dois ou três anos. Entrementes, para combater os efeitos disruptivos do coronavírus, não obstante a vacinação em massa das populações, vão-se exigir novos comportamentos e novas formas de trabalhar. Para se posicionarem com vantagem para o futuro os países terão de renovar a capacidade de resposta a pandemias e a outras catástrofes naturais. Muita coisa vai mudar e nem sempre para melhor. Já há sinais de proteccionismo e de repatriação de indústrias estratégicas, mas também de priorização de investimentos no sector da saúde e em geral medidas de reconfiguração do comércio internacional.
Para os países mais pequenos e insulares o desafio é ainda maior. Muitos como Cabo Verde têm uma economia pouco diversificada e qualquer perturbação nas transacções de mercadorias e no fluxo de pessoas e de capitais tem efeitos demolidores. A retracção do turismo tem um efeito demolidor porque põe em causa sectores-chave como a construção, transportes e acolhimento que depois afectam por arrastamento várias indústrias e serviços. O desemprego e a perda de rendimento que daí resultam têm consequências sociais e até psicológicas graves que juntas com as exigências de distanciamento social e outros constrangimentos podem levar a situações muito complicadas.
Saber reagir perante o choque inesperado que foi a pandemia é crucial para poder conter os seus efeitos perniciosos e preparar-se para potenciar eventuais vantagens. Uma das vias a ser considerada numa perspectiva de maior diversificação da economia e de criação de mais riqueza nacional é a exploração dos recursos naturais existentes. A celebração do Dia do Pescador veio relembrar a importância actual do sector para a economia e para o rendimento das pessoas e o que potencialmente podia ter, se ao longo dos tempos, nele se tivesse investido com uma outra visão.
O sector, de facto, teria outra relevância se ao invés das quinze mil toneladas pescadas anualmente se se aproximasse das 40.000 toneladas possíveis. Se houvesse capacidade para suprir com captura de origem cabo-verdiana os milhares de toneladas de peixe que a Frescomar precisa processar durante o ano e depois vender como enlatados nos mercados da Europa sem necessidade de pedidos anuais de derrogação dos direitos de origem. Se, ao invés de milhares de operadores na pesca artesanal e na distribuição de peixe sobrevivendo com pequenos rendimentos e a viver precariamente, fosse possível organizar o sector em outros moldes, por forma a aumentar a produtividade da faina, alargar a área de actividade da mesma e ainda melhorar a qualidade do produto que chega ao consumidor. Todos ganhariam com consequente ampliação do mercado e maior mais-valia nas vendas.
A verdade é que, como todos reconhecem - operadores, público e Estado - o sector das pescas, mais de 45 anos depois da independência, está muito aquém do que seria desejável. Ouvindo os debates públicos sobre a matéria, fica-se com a sensação que praticamente ainda se está nos primórdios do que seria necessário para um verdadeiro arranque. Da captura nacional, cerca de 43% vem da pesca artesanal feita com botes frágeis e de alcance muito limitado mesmo quando motorizados. A outra parte é feita com embarcações semi-industriais que, não obstante os esforços, mostram-se incapazes de explorar devidamente os vários bancos de pesca existentes no arquipélago. Toda a actividade da pesca nos termos referidos apresenta riscos que dificultam investimentos no sector e tendem a onerar créditos já conseguidos. As tentativas de quebrar o círculo vicioso e diminuir os riscos de financiamento com fundos públicos não tiveram grande sucesso. Talvez tenha contribuído para isso o facto de nunca se ter encontrado uma visão e desenvolvido uma estratégia que efectivamente fizesse o sector crescer de forma sustentável e ir além do estádio artesanal e semi-industrial que sempre o limitou.
A omissão em matéria de políticas públicas estranhamente parece conviver com mitos à volta do potencial de pescas no país que ainda em 2021 se luta por ultrapassar. Um esforço provavelmente inútil considerando que até agora ninguém o conseguiu. Continua-se a acreditar que o país é rico em peixe. Num mesmo fôlego dá-se por assente que os recursos haliêuticos andam a ser roubados por estrangeiros. Paradoxalmente não há acção consequente para criar riqueza a partir dos recursos reais nem mesmo para fiscalizar as águas nacionais e os acordos de pesca assinados com outros países. Assim é, porque alimentar mitos e nutrir sentimentos de vitimização nunca beneficiaram ninguém e convidam à inacção.
Um primeiro resultado é o espectáculo que se assiste todos os anos à volta da possibilidade da Frescomar fechar com perda de centenas de empregos e prejuízos enormes nas exportações. Um outro é o debate patético que se faz à volta dos acordos de pesca com a União Europeia. Já no que diz respeito à capacitação de uma Guarda Costeira, virada para a fiscalização da zona económica exclusiva do arquipélago e para busca e salvamento de forma a diminuir os riscos de perda de vida dos pescadores, não se discute, talvez para não se intrometer em domínios “reservados”. O facto é que Cabo Verde continua indefeso perante as incursões ilegais de entidades outras e dependente da ajuda externa num sector em que por excelência devia criar riqueza, submetendo-se, pelo contrário, a uma lógica redistributiva de botes, motores, caixas térmicas e até bicicletas e motos eléctricos para procurar superar vulnerabilidades que insistem em se manter. Economias de escala e acesso a outros mercados seriam necessários para diminuir os riscos inerentes à actividade, mas mesmo quando essas condições são criadas, pela via das conserveiras viradas para exportação como a Frescomer, faltam políticas para as aproveitar em pleno.
Outros mitos alimentados por gerações servem muitas vezes para distrair do essencial, justificar investimentos duvidosos e convidar a uma espécie de resignação que de tempos em tempos é sobressaltada com euforias particularmente na sequência de construção de infraestruturas, seguida de frustrações quando os objectivos não são atingidos para depois a ela se regressar. Um desses mitos baseia-se na crença que se o país chovesse “todos seriam felizes e ninguém precisaria do Estado”. Muito da euforia à volta da mobilização da água via barragens ontem, e via dessalinização de água hoje, resulta desse mito. Água é importante assim como ter mar e peixe. Mas não chega, como mostra a persistente vulnerabilidade das populações envolvidas nessas actividades.
Há que ter políticas consequentes com investimento, desenvolvimento do capital humano e acesso organizado a mercados para se criar um círculo virtuoso que resulte em mais riqueza para o país e mais rendimento para as pessoas. Cabo Verde precisa libertar-se dos mitos que o mantém ainda conformado a esperar a ajuda dos outros. O impacto da pandemia sobre o turismo e sobre toda a economia nacional deveria ser choque suficiente para se livrar desse torpor e mobilizar energia e vontade para construir a prosperidade que todos almejam.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1002 de 10 de Fevereiro de 2021.