A solicitação dessa investigação é justificada, entre outras razões, pelo alegado corporativismo dos magistrados e pela suposta incapacidade do CSMJ em cumprir com isenção o papel que lhe é reservado.
É uma opinião que se respeita, embora dela se discorda.
O figurino de fiscalização dos Tribunais que existe em Cabo Verde é o mesmo que se encontra noutras democracias com quem partilhamos a mesma matriz constitucional: uma Inspecção Judicial, integrada exclusivamente por magistrados, que funciona junto do órgão de gestão da magistratura.
Isso para dizer que, ficar indiferente a denúncias feitas contra os magistrados, é uma coisa. Nunca o CSMJ deixou de investigar qualquer queixa apresentada, com foros de seriedade, contra magistrados judiciais.
Discordar dos resultados de um inquérito mandado instaurar, já é outra coisa. E essa discordância, sobretudo quando tais resultados acabaram por ser confirmados por uma investigação conduzida pela PGR, não pode ser suficiente para se pôr em causa a credibilidade de um CSMJ, nem em Cabo Verde, nem em qualquer outra parte do Mundo.
O que nunca será de esperar do CSMJ é que funcione como uma mera caixa de ressonância de queixas manifestamente infundadas, apresentadas com o único propósito de exercer o assédio contra os magistrados judiciais.
Outrossim, por muito louvável que possa ser o intento dos seus promotores, coloca-se desde logo a questão de saber se a iniciativa encontra respaldo na própria Constituição da República.
Afinal, o que no fundo se pretende com essa investigação “independente” é pura e simplesmente levar o Presidente da República, ou a Assembleia Nacional, a transferir para outra entidade as prerrogativas constitucionais de gestão e fiscalização dos Tribunais, que a Constituição entendeu por bem depositar nas mãos do CSMJ.
Temos, por isso mesmo, sérias dúvidas de que se possa dar acolhimento a essa pretensão, sem se suspender, em simultâneo, a vigência da Constituição da República, nomeadamente o seu artigo 223º. Ou seja, sem se instituir no nosso País um autêntico apagão constitucional na área da Justiça.
Mas, não é só dessa aparente incompatibilidade constitucional que padece a iniciativa em apreço.
Regista-se também nela uma certa contradição, que autoriza a que se questione os seus verdadeiros propósitos.
Na verdade, fala-se na necessidade de uma investigação para se apurar se “o Amadeu não terá razão”.
Porém, antecipando já as conclusões, o porta-voz do grupo vai deixando claro que já muito poucas pessoas reconhecem crédito a “essa gente”, a quem ele verbera a “falta de seriedade”.
Tenha-se presente que a expressão “essa gente” abarca todos os vogais do CSMJ, um órgão constitucional da República, com uma forte presença de membros eleitos pelo Parlamento, os Juízes do mais alto Tribuna Judicial do País e outros magistrados das Relações e da Primeira Instância.
Ou seja, o propósito subliminar, sabe-se lá bem porquê, de mais a mais neste preciso momento, é fazer passar a ideia de que a Justiça Cabo-verdiana, com o Supremo Tribunal de Justiça à cabeça, não desfruta de qualquer credibilidade, nem interna nem internacional.
Assim sendo, é também legítimo colocar a seguinte questão: se essas instituições da República e “essa gente” estão sem crédito, conclusão refutada pelo mais recente estudo de opinião do Afrobarometro, que coloca os Tribunais,apesar da intensa flagelação a que têm estado sujeitos, entre as instituições em que os Cabo-verdianos mais confiam, porquê que não se aproveita a ocasião para, em coerência, exortar todos os cidadãos a que, como fez o outro, deixem simplesmente de reconhecer legitimidade ao sistema judicial do nosso País.
Numa palavra, porquê que não se reconhece a todo o mundo, incluindo os acusados e condenados por crimes mais graves, o direito de também entrar em “módulo” resistência?
Sim, se os cidadãos são todos iguais perante a Constituição, não devendo ninguém estar acima da lei, porquê que a uns é exigido que cumpram as decisões e ordens legítimas dos Tribunais e a outros já lhes é consentido desobedecer e resistir, instigados até por Deputados da Nação?
O estranho em tudo isso, ou talvez nem tanto, é o timing dessa petição.
Ela coincide precisamente com o início e o desenrolar, depois de muitas peripécias, do julgamento do Advogado Amadeu Oliveira por ataques pessoais que os visados, Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, consideram serem atentatórios da sua honra e da sua reputação pessoal e profissional, pelo que decidiram não os deixar passar em claro.
Ataques pessoais que tem na sua base um único motivo e um único processo: os Juízes Conselheiros visados decidiram não se vergar às pressões desse advogado para lhe dar razão num recurso por ele interposto, a favor de um seu constituinte, alguém acusado pelo Ministério Público, e já condenado em primeira instância, por crime de homicídio voluntário.
Esta é a verdade, confessada publicamente até pelo próprio.
Efectivamente, a Imprensa noticiou por estes dias, sem qualquer desmentido, que “Amadeu Oliveira promete parar de atacar os juízes, se o STJ permitir a saída do emigrante Arlindo Teixeira de Cabo Verde (…)”.
Repare-se bem: ele apenas se compromete a parar de atacar, “se o STJ permitir a saída do seu constituinte”, ou seja, se a decisão lhe for favorável. Caso contrário…
Ou seja, o lema dele é: decisão favorável ou ataque aos juízes.
Estamos, assim, perante um sério desafio à robustez do Estado de Direito em Cabo Verde: um único advogado que, por se sentir poderoso, por certo devido ao efusivo apoio que recebe de certos Deputados da Nação, entende que pode impor o sentido das decisões aos Tribunais, em especial ao Supremo Tribunal de Justiça, sob pena de partir para o ataque à honra dos juízes.
Mas, permitir que esse expediente, essa forma torpe de extorquir decisões judiciais, consiga prosperar entre nós, não constituiria apenas uma humilhação. Seria simplesmente o fim do Estado de Direito.
Por isso mesmo, custa acreditar que cidadãos esclarecidos, personalidades de reconhecida influência na sociedade, se predisponham a emprestar crédito a tudo que ele diz, sem o menor esforço de escrutinar as suas reais motivações.
Bastaria questionar: porquê que é o único advogado de Cabo Verde que tem problemas com todo o mundo, incluindo com a própria Ordem dos Advogados? Que ofende tudo e todos, de meros cidadãos, a magistrados, analistas, intelectuais, escritores, políticos, Ministra da Justiça, Líder da Oposição, enfim, todos que não se deixam levar pela sua conversa? Que destrata, ridiculariza e injuria Instituições da República, como fez recentemente com a Procuradoria Geral da República, como se lhe fosse permitido se colocar acima da lei e mandar em todos?
Tudo quanto foi referido já seria suficiente para se colocar algumas reservas ao que ele diz ou escreve.
E a pergunta final que fica é: como se pode basear exclusivamente num tal personagem para se solicitar ao PR uma (inconstitucional) investigação independente à Justiça?
Seja como for, com ou sem investigação “independente”, que por certo ninguém terá razões para temer, que cada um faça em consciência o seu próprio julgamento.
Da nossa parte estaremos sempre prontos a cooperar com os órgãos de soberania e com todas as demais instituições a qualquer momento e em qualquer iniciativa que vise a efectiva melhoria da Justiça no nosso país, contanto que ela esteja em conformidade com a Constituição da República.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1005 de 3 de Março de 2021.