A paridade e a parte do leão do poder municipal

PorMário Silva,14 jun 2021 7:32

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Realizadas as eleições municipais é tempo de se começar a reflectir sobre a paridade, para lá do tradicional balanço positivo. Orgulho-me de pertencer a um grupo de pessoas que colocou na agenda constitucional e legal, nos finais dos anos noventa, a igualdade entre homens e mulheres, especificamente no que tange ao exercício de cargos políticos, tendo sido então resolvidos os problemas de constitucionalidade levantados no debate que se travou nalguns países europeus.

Recordemos que em França, corria o ano de 1982, quando o Conselho Constitucional declarou inconstitucional uma norma que pretendia introduzir quotas nas eleições municipais francesas, numa decisão que marcou profundamente o sistema jurídico de vários países, perante um projecto legislativo que estatuía no sentido de que uma lista de candidatos não podia ter mais de 75% de pessoas do mesmo sexo.

Portugal, França e Bélgica levaram a cabo revisões constitucionais para resolverem o problema. Nós fizemos o mesmo na revisão constitucional de 1999, e o Código Eleitoral previa uma subvenção para as listas que tivessem obtido 25% de mulheres eleitas, mas a respectiva lei não foi aprovada.

As quotas, que nunca foram pacíficas, apesar de terem sido consagradas nalguns Países como a Bélgica, foram ultrapassadas pela paridade, que se consagrou como conceito chique na década de noventa, não obstante ter surgido no século XIX, quando se defendeu a ideia de representação paritária, segunda a qual devia caber às mulheres metade dos lugares do Parlamento. Se então não vingou, a sua popularização ocorreu em 1992, com a publicação da obra-manifesto de Françoise Gaspar, Claude Servan-Schreiber e Anne Le Gall, na qual defenderam que esta era uma matéria que dizia respeito aos fundamentos da própria democracia e, por isso, preconizaram um novo direito: a paridade dos sexos; um direito que devia ser legislativamente consagrado, nos seguintes termos: as assembleias eleitas, a nível territorial como nacional, são constituídas de igual número de homens e de mulheres. Neste sentido, defenderam que só a paridade, entendida como «igualdade perfeita», medida de equilíbrio e de justiça, podia fundar um novo contrato democrático.

O conceito de paridade, de tão exigente, foi matizado, contentando-se uns com 33% e outros com 40%, dado o ponto de partida muito baixo de muitos países e por se considerar que estas percentagens estabeleciam algum equilíbrio entre os sexos. É também por isso que se esqueceu a palavra quota, mas a substância manteve-se: na pureza do conceito, 33% ou 40% não são paridade. Separar as águas é sempre importante para melhor projectarmos o futuro.

Cabo Verde fez o seu percurso e, se nas primeiras eleições municipais de 1991, apenas 8% das mulheres foram eleitas, este número aumentou para 28% em 2012, e 27% em 2016, num desenvolvimento natural, tendo sido atingidos os 25% em 2008, nove anos após a sua estatuição pelo Código Eleitoral. No entanto, se considerarmos especificamente alguns municípios, os dados são surpreendentemente positivos, no respeitante às câmaras municipais: na Brava, em 2016, as mulheres representavam 60% dos vereadores e, em São Vicente, em 2000, houve 56% de mulheres; outros exemplos de 40% podem ser apresentados. É óbvio que estes casos são excepcionais, por a esmagadora maioria dos municípios apresentar números muito baixos.

A ambição legítima de se ter mais mulheres representadas na Assembleia Nacional e nos órgãos municipais desencadeou um movimento no sentido da intervenção do legislador e assim foi aprovada a lei da paridade.No momento da sua aprovação final global foi dito que construiria«um cenário de repartição justa do poder e de oportunidades entre homens e mulheres».

Marcadas as eleições municipais para o dia 25 de Outubro último, houve manifestações públicas de desagrado, pois, nenhuma lista apresentada pelos partidos políticos com representação parlamentar foi encabeçada por uma mulher. O primeiro momento negativo estava à vista: as mulheres não iriam exercer o cargo de presidente de câmara, seguramente um dos mais importantes, o que era tanto mais de assinalar quanto é certo que no passado três mulheres foram eleitas.

Uma análise que vai para além da dimensão formal-quantitativa mostra-nos o segundo momento negativo: as mulheres estão em minoria em todas as câmaras municipais. Mais: em dois dos três principais municípios do País – São Vicente e Santa Catarina de Santiago – ficou-se pelos 30%. Este é o terceiro momento negativo:não se atingiu a meta legal dos 40%, logo em dois municípios pesados.

Estas conclusões são baseadas na foto do mapa dos resultados das eleições municipais, mas há que fazer o filme do mandato, já que a situação vai-se alterando de ano para ano, em virtude da dinâmica da profissionalização dos vereadores e das substituições, podendo vir a acontecer que, no final dos quatro anos, o quadro participativo seja profundamente alterado (veja-se o caso de Santa Catarina de Santiago). Daí a necessidade de distinguirmos atribuição do mandato e o seu exercício efectivo pelas mulheres. Para isso énecessário levarmos em conta as características da governação municipale o sistema eleitoral municipal. Por outras palavras, só uma perspectiva holística do ordenamento jurídico-municipal, pode fazer funcionar a igualdade efectiva entre homens e mulheres no exercício do poder municipal.

Se compararmos com a situação em 2016 o balanço é positivo. Aplausos! Se levarmos em conta o conceito de paridade e os objectivos da lei, já não se pode dizer o mesmo, pelo seguinte: nos órgãos com maior capacidade de transformação política e social municipal, a mulher ficou de fora ou está em minoria; na câmara municipal, a mulher ocupa sempre o segundo lugar (factos são factos), fazendo-nos lembrar, ironicamente, o segundo sexo de que falava Simone de Beauvoir, e nada garante que pode substituir o presidente nas suas faltas, ausências e impedimentos.

Deste modo, o título deste artigo fica justificado: a parte mais importante do poder municipal, infelizmente, continua nas mãos dos homens. A crença quase divina no sentido de que a lei transforma a realidade tem os seus limites e, entre nós, a lei da paridade veio provar isso.

Cabo Verde tem condições para nas próximas décadas atingir patamares invejáveis no plano internacional, até porque esta II República é a da afirmação da Mulher, mas para além de políticas públicas adequadas, impõem-se reformas de cirurgia jurídica em várias leis para acomodar a lei da paridade.

OBS – As percentagens constantes do presente texto foram calculadas a partir dos mapas das eleições publicados no Boletim Oficial. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1019 de 9 de Junho de 2021. 

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Autoria:Mário Silva,14 jun 2021 7:32

Editado porAndre Amaral  em  21 jun 2021 17:07

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