Recordemos que em França, corria o ano de 1982, quando o Conselho Constitucional declarou inconstitucional uma norma que pretendia introduzir quotas nas eleições municipais francesas, numa decisão que marcou profundamente o sistema jurídico de vários países, perante um projecto legislativo que estatuía no sentido de que uma lista de candidatos não podia ter mais de 75% de pessoas do mesmo sexo.
Portugal, França e Bélgica levaram a cabo revisões constitucionais para resolverem o problema. Nós fizemos o mesmo na revisão constitucional de 1999, e o Código Eleitoral previa uma subvenção para as listas que tivessem obtido 25% de mulheres eleitas, mas a respectiva lei não foi aprovada.
As quotas, que nunca foram pacíficas, apesar de terem sido consagradas nalguns Países como a Bélgica, foram ultrapassadas pela paridade, que se consagrou como conceito chique na década de noventa, não obstante ter surgido no século XIX, quando se defendeu a ideia de representação paritária, segunda a qual devia caber às mulheres metade dos lugares do Parlamento. Se então não vingou, a sua popularização ocorreu em 1992, com a publicação da obra-manifesto de Françoise Gaspar, Claude Servan-Schreiber e Anne Le Gall, na qual defenderam que esta era uma matéria que dizia respeito aos fundamentos da própria democracia e, por isso, preconizaram um novo direito: a paridade dos sexos; um direito que devia ser legislativamente consagrado, nos seguintes termos: as assembleias eleitas, a nível territorial como nacional, são constituídas de igual número de homens e de mulheres. Neste sentido, defenderam que só a paridade, entendida como «igualdade perfeita», medida de equilíbrio e de justiça, podia fundar um novo contrato democrático.
O conceito de paridade, de tão exigente, foi matizado, contentando-se uns com 33% e outros com 40%, dado o ponto de partida muito baixo de muitos países e por se considerar que estas percentagens estabeleciam algum equilíbrio entre os sexos. É também por isso que se esqueceu a palavra quota, mas a substância manteve-se: na pureza do conceito, 33% ou 40% não são paridade. Separar as águas é sempre importante para melhor projectarmos o futuro.
Cabo Verde fez o seu percurso e, se nas primeiras eleições municipais de 1991, apenas 8% das mulheres foram eleitas, este número aumentou para 28% em 2012, e 27% em 2016, num desenvolvimento natural, tendo sido atingidos os 25% em 2008, nove anos após a sua estatuição pelo Código Eleitoral. No entanto, se considerarmos especificamente alguns municípios, os dados são surpreendentemente positivos, no respeitante às câmaras municipais: na Brava, em 2016, as mulheres representavam 60% dos vereadores e, em São Vicente, em 2000, houve 56% de mulheres; outros exemplos de 40% podem ser apresentados. É óbvio que estes casos são excepcionais, por a esmagadora maioria dos municípios apresentar números muito baixos.
A ambição legítima de se ter mais mulheres representadas na Assembleia Nacional e nos órgãos municipais desencadeou um movimento no sentido da intervenção do legislador e assim foi aprovada a lei da paridade.No momento da sua aprovação final global foi dito que construiria«um cenário de repartição justa do poder e de oportunidades entre homens e mulheres».
Marcadas as eleições municipais para o dia 25 de Outubro último, houve manifestações públicas de desagrado, pois, nenhuma lista apresentada pelos partidos políticos com representação parlamentar foi encabeçada por uma mulher. O primeiro momento negativo estava à vista: as mulheres não iriam exercer o cargo de presidente de câmara, seguramente um dos mais importantes, o que era tanto mais de assinalar quanto é certo que no passado três mulheres foram eleitas.
Uma análise que vai para além da dimensão formal-quantitativa mostra-nos o segundo momento negativo: as mulheres estão em minoria em todas as câmaras municipais. Mais: em dois dos três principais municípios do País – São Vicente e Santa Catarina de Santiago – ficou-se pelos 30%. Este é o terceiro momento negativo:não se atingiu a meta legal dos 40%, logo em dois municípios pesados.
Estas conclusões são baseadas na foto do mapa dos resultados das eleições municipais, mas há que fazer o filme do mandato, já que a situação vai-se alterando de ano para ano, em virtude da dinâmica da profissionalização dos vereadores e das substituições, podendo vir a acontecer que, no final dos quatro anos, o quadro participativo seja profundamente alterado (veja-se o caso de Santa Catarina de Santiago). Daí a necessidade de distinguirmos atribuição do mandato e o seu exercício efectivo pelas mulheres. Para isso énecessário levarmos em conta as características da governação municipale o sistema eleitoral municipal. Por outras palavras, só uma perspectiva holística do ordenamento jurídico-municipal, pode fazer funcionar a igualdade efectiva entre homens e mulheres no exercício do poder municipal.
Se compararmos com a situação em 2016 o balanço é positivo. Aplausos! Se levarmos em conta o conceito de paridade e os objectivos da lei, já não se pode dizer o mesmo, pelo seguinte: nos órgãos com maior capacidade de transformação política e social municipal, a mulher ficou de fora ou está em minoria; na câmara municipal, a mulher ocupa sempre o segundo lugar (factos são factos), fazendo-nos lembrar, ironicamente, o segundo sexo de que falava Simone de Beauvoir, e nada garante que pode substituir o presidente nas suas faltas, ausências e impedimentos.
Deste modo, o título deste artigo fica justificado: a parte mais importante do poder municipal, infelizmente, continua nas mãos dos homens. A crença quase divina no sentido de que a lei transforma a realidade tem os seus limites e, entre nós, a lei da paridade veio provar isso.
Cabo Verde tem condições para nas próximas décadas atingir patamares invejáveis no plano internacional, até porque esta II República é a da afirmação da Mulher, mas para além de políticas públicas adequadas, impõem-se reformas de cirurgia jurídica em várias leis para acomodar a lei da paridade.
OBS – As percentagens constantes do presente texto foram calculadas a partir dos mapas das eleições publicados no Boletim Oficial.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1019 de 9 de Junho de 2021.