Assim mesmo, sem tirar nem pôr. Amiúde, via-o passar de carro. Fui estudar e nunca mais ouvi falar dele.
Num dia qualquer do ano da graça de 1986, o escrivão do Tribunal da Comarca de Santa Catarina entrou no meu gabinete, anunciando que o Dr. Carlos Veiga estava na secretaria e queria falar comigo. Disse-me, quando o cumprimentei, que era uma visita de cortesia, pois, era de tradição antiga nas comarcas, quando um juiz iniciava funções, os Advogados e os responsáveis dos principais serviços desconcentrados do Estado terem esse gesto e manifestar disponibilidade para colaborar no que fosse possível. Acrescentou que a tradição estava a perder-se, mas que fazia questão de a cumprir. Incentivou-me no exercício das minhas funções e manifestou o seu contentamento pelo facto de uma nova geração de juristas estar a dar o seu contributo para a afirmação do judicial. Foi assim que o conheci pessoalmente: simples, disponível e modesto.
Já no Tribunal da Comarca da Praia, para onde fui transferido, pude conhecê-lo melhor, apreciar as suas peças processuais sintéticas, bem fundamentadas, de facto e de direito, escritas numa linguagem escorreita, com argumentos doutrinários e jurisprudenciais pertinentes; normal, por ser então considerado no meio o maior Advogado do País, com um curriculum judiciário de fazer inveja.
Na verdade, iniciou a sua carreira em Angola, como Conservador e Juiz de Direito em acumulação e, a partir de 1975, em Cabo Verde, como Delegado do Procurador-Geral da República de Sotavento, mais tarde nomeado Procurador-Geral da República e juiz cível da Comarca da Praia. Para um neófito nas lides judiciárias, como era o meu caso, este trajecto inspirava respeito; nem todos podiam orgulhar-se deste percurso.
Em 1985 foi eleito Deputado e a sua voz era respeitada na Assembleia Nacional Popular pela pertinência das suas intervenções, especialmente no respeitante à discussão e aprovação de leis, mas foi como formador que tomei o pulso à sua paciência e verifiquei as suas qualidades pedagógicas, num curso pioneiro de feitura de leis, em que falou da experiência cabo-verdiana. No entanto, foi quando fundámos a Revista Cabo-Verdiana de Direito, em Outubro de 1989 (Alfredo Teixeira, Arnaldo Silva, Carlos Veiga, Eurico Correia Monteiro, José Manuel Pinto Monteiro, Simão Monteiro e eu próprio), a primeira revista privada publicada depois da independência, cuja direcção ele assumiu, é que começámos a trabalhar de perto e ficou mais claro para mim a sua grande capacidade de escrita e a sua generosidade para com os juristas mais jovens. Foi nessa Revista que a palavra cabo-verdura ganhou foros de cidade.
A partir da abertura política, em Fevereiro de 1990, e durante todo esse ano, a sua contribuição na Assembleia Nacional Popular para a criação de um quadro normativo multipartidário, tendente à realização das eleições legislativas de 1991, começou a ser visível. A circunstância das sessões serem transmitidas em directo pela rádio tornou-o muito conhecido a nível nacional e catapultou-o para a personalidade mais popular da área da mudança.
Se é verdade que a abertura política o afastou das lides judiciárias e mergulhou-o na política, não menos verdade é que os primeiros anos da II República foram tempos de intensa actividade legislativa; e a sua participação foi decisiva na consagração de muitas soluções que hoje estão consolidadas, ele que do grupo dos juristas no Governo e no Parlamento era o mais antigo e experiente de todos, por ter concluído a licenciatura em 1971.
Não obstante ser ainda cedo para se falar de pormenores relativos aos primeiros meses do Governo Intercalar, recordo-me de ter havido ameaças em relação a alguns dirigentes do partido único, pois, muitos populares queriam vingar factos que sofreram na pele ou relativos a familiares e amigos seus. Então, deu instruções no sentido de ser garantida segurança pessoal e familiar a todos, partindo do princípio de que serviram o País, independentemente do juízo valorativo de cada um, sempre respeitável, claro. Uma simples decisão, incompreendida então por alguns, evitou problemas, e garantiu tranquilidade.
Liderou os debates constitucionais durante a década de noventa: em 1992, na aprovação da Constituição; em 1995, no momento da sua revisão extraordinária; e, em 1999, redigiu o projecto de revisão constitucional. Já agora, foi decisivo no desbloquear da situação política tendente à revisão constitucional de 2010.
Uma vez deixado o Governo e o Partido e geridas as eleições presidenciais de 2001, cujos resultados aceitou com estoicismo, dedicou-se também à função docente na Universidade Jean Piaget e no Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais, ensinando os jovens; deste modo, contribuiu para uma nova geração de quadros que começa a afirmar-se: os formados em Cabo Verde.
Manteve um contacto permanente e uma relação cúmplice com as bases do seu partido e, aqui, a herança é pesada: não está fácil para os sucessores seguirem o seu caminho ou outros que satisfaçam inteiramente os militantes, sempre muito exigentes.
Costuma dizer-se que um grande político é aquele que traz no seu curriculum vitórias e derrotas, lida bem com ambas, e sabe fazer a digestão e a gestão dos resultados eleitorais, sejam eles quais forem. Veiga é um deles: não se deslumbrou com as vitórias, nem entrou em depressão com as derrotas. Esteve sempre pronto para encarar a etapa seguinte com optimismo e determinação.
Carlos Veiga é um dos rostos da democracia cabo-verdiana – o rosto mais visível de todos - e um dos pais fundadores desta II República, por ter liderado a oposição vencedora das eleições legislativas de 1991 e as profundas reformas políticas, económicas e sociais que hoje identificam este Estado de Direito. Deu a cara por tudo isto, e muito mais! Claro que juntamente com dezenas de dirigentes, ou não fosse a política uma actividade colectiva.
O seu percurso pelos caminhos do Direito, da Justiça e da Política é esplendoroso, e a República dispõe de um filho que a conhece muito bem, na sua complexidade organizativa e nas aspirações de felicidade dos seus cidadãos, encontrando-se sempre pronto para servi-la. A sua personalidade inspira tranquilidade e dá-nos garantias de harmonia social a este nosso Cabo Verde de Esperança cantado por Norberto Tavares.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1022 de 30 de Junho de 2021.