Financiamento Externo e Eficiente Utilização dos Recursos

PorCarlos Burgo,7 jul 2021 10:00

A capacidade de reacção dos países à crise pandémica vem sendo muito diferenciada.

Nos países menos desenvolvidos, sobretudo por causa da escassez de recursos financeiros, as medidas de combate à crise sanitária, económica e social são mais limitadas, enquanto nos países avançados medidas de estímulo de grande dimensão e a rápida progressão da vacinação da população estão-se traduzindo em perspectivas de rápida recuperação económica.

O prolongamento da crise sanitária ameaça agravar os problemas sociais, designadamente a incidência da pobreza, deteriorar a situação das finanças públicas e comprometer o desenvolvimento dos países mais pobres, num contexto em que estes são particularmente expostos aos impactos das alterações climáticas.

Justifica-se, assim, que o acesso a vacinas, no imediato, e a assistência financeira aos países menos desenvolvidos, sejam colocados no topo da agenda global, tanto mais que a erradicação da pandemia e o alcance da neutralidade carbónica constituem bens públicos de natureza global. A própria erradicação da pobreza é um desafio global da humanidade.

Ademais, os problemas com que se confrontam os países mais pobres devem-se em grande medida a assimetrias estruturais da ordem económica e financeira internacional. É assim que a liquidez internacional é criada sobretudo pela via da emissão da moeda de um país (os Estados Unidos da América), em função das suas próprias necessidades e não em função das necessidades do comércio internacional e do sistema financeiro global. Para financiar a resposta à crise, esse país e outros países desenvolvidos, nomeadamente os da zona Euro, estão recorrendo, amplamente, através da via monetária e de programas orçamentais, à criação de liquidez, não obstante os altos níveis de endividamento público.

Para pôr cobro a essa insuficiência, pensou-se no passado numa solução em que a liquidez internacional passaria a ser criada em função das necessidades globais de liquidez no âmbito do Fundo Monetário Internacional (FMI) pela via da emissão de Direitos Especiais de Saque (Special Drawing Rights, SDR). Porém, porque os SDR criados são distribuídos em função da quota dos países nessa instituição, beneficiando sobretudo as maiores economias, chegou-se a propor, nos anos 70 do século passado, como uma solução mais justa, a afectação da liquidez criada ao financiamento do desenvolvimento (LINK).

Infelizmente, poucos progressos foram registados nesse sentido. Nem os SDR substituíram o US Dollar, nem o LINK foi materializado. Contudo, está-se presentemente a discutir a maior emissão de sempre de SDR, no montante de 650 mil milhões e já foi proposto que os países ricos retrocedam aos países mais pobres, sem juros, as reservas que irão receber nesse âmbito. No FMI, paralelamente, está em discussão a afectação pelos países mais avançados de 100 mil milhões de SDR a um Trust em benefício de países de rendimento médio baixo vulneráveis e pequenas economias insulares, uma iniciativa endossada na última cimeira do G7.

Face às necessidades de financiamento dos países menos desenvolvimentos, os resultados até agora conseguidos – a suspensão do serviço da dívida (Debt Service Suspension Iniciative, DSSI) e o quadro comum para a reestruturação da dívida (Common Framework for Debt Reestructuring), no âmbito do G20 – são modestos. Igualmente insatisfatórios são os compromissos assumidos na última cimeira do G7, em particular no que respeita à cedência de vacinas. Refira-se, ainda, que bem poucos países avançados se aproximaram da meta de ter 0.75% do seu Produto Nacional Bruto afecto à Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD).

Todavia, importa reconhecer que as assimetrias da ordem económica e financeira internacional e a insuficiente transferência de recursos para os países menos desenvolvimentos não constituem as únicas causas dos problemas económicos e sociais destes países. O baixo nível de rendimento per capita, o deficiente acesso a serviços essenciais, a larga incidência da pobreza e o sobre-endividamento externo devem-se de modo determinante a crises políticas, à não realização de transformações estruturais das economias e das sociedades, à desigualdade social, à má utilização e à falta de eficiência na utilização dos recursos e, em muitos casos, à corrupção.

Tanto assim é que entre os países em que prevalecem os problemas acima referidos se encontram alguns dotados de abundantes riquezas naturais. Neste contexto, é comum o uso do conceito de resource curse, maldição dos recursos. Nalguns casos, em que os países começam a gastar e a endividar-se por conta de recursos futuros, fala-se até de presource curse, maldição do pré-financiamento. Infelizmente, não são raros os exemplos desses fenómenos.

Em Cabo Verde, uma das principais propostas governativas para a presente legislatura é o alívio da dívida externa. De facto, o país tem um nível excessivo de endividamento, sendo considerado de high risk of debt distress. O elevado nível de endividamento externo resultou da opção feita pela governação anterior no sentido de, a um tempo, aproveitar financiamento bilateral disponibilizado e implementar um programa de construção de infraestruturas e habitação social numa perspectiva contra cíclica. Essa opção merece críticas justificadas pelo seu risco e a sua ineficiência. Efetivamente, pelo menos em alguns casos, o valor económico das infraestruturas construídas é inferior à dívida contraída, embora formalmente em condições concessionais.

É inquestionável, porém, que a gestão orçamental na última legislatura se traduziu na continuação da redução do espaço fiscal e no agravamento da situação das finanças públicas, pela via da expansão das despesas públicas. O aumento de receitas fiscais resultante da expansão económica foi em grande medida usado para aumentar despesas obrigatórias do Estado, nomeadamente com o pessoal. A limitação do espaço fiscal e a rigidez da estrutura das despesas públicas condiciona a resposta à crise pandémica, o investimento público e a adopção de medidas com vista ao relançamento da economia, no quadro do orçamento. Essa situação só pode ser gerida porque num contexto de grande informalidade da economia grande parte das famílias vêm suportando custos que não podem ser ignorados. A colocação de alguns custos nas contas do INPS e a não consideração no Orçamento do Estado dos custos das garantias amplamente concedidas apenas constituem subterfúgios que atentam contra a transparência orçamental.

A nível internacional há muita sensibilidade para a situação da África e dos Pequenos Estados, em particular dos insulares. São reconhecidas a vulnerabilidade aos choques externos e as desvantagens destes últimos. Em Cabo Verde, acrescem ainda as dificuldades de um país arquipelágico e as condições climáticas adversas.

O contexto internacional é favorável à obtenção de financiamentos adicionais e à negociação com os credores de soluções conducentes ao alívio da dívida. Cabo Verde já beneficia de financiamentos adicionais no quadro do DSSI, assumindo o compromisso de usar os recursos libertos em despesas com a saúde e de natureza social e económica, em resposta à crise.

A construção de uma economia resiliente e com elevado potencial de crescimento e a própria mobilização de recursos externos adicionais requerem, todavia, transformações estruturais, adequadas políticas de desenvolvimento e uma eficiente utilização dos recursos. É ilusória a tentação de querer usar recursos adicionais disponibilizados pela comunidade internacional para reproduzir estruturas esclerosadas da economia e da sociedade e prosseguir com políticas inadequadas e ineficientes.

A pior coisa que nos podia acontecer seria usar a perspectiva de mobilização de recursos adicionais, nomeadamente através do alívio da dívida, para adiar reformas necessárias e prosseguir com políticas inadequadas e as conhecidas ineficiências na utilização dos recursos. O risco seria grande e estaríamos a sujeitar-nos ao presource curse, com todas as suas consequências nefastas. A melhor atitude neste contexto deve ser fazer o necessário trabalho de casa e encarar os benefícios de um eventual alívio da dívida como uma surpresa positiva. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1022 de 30 de Junho de 2021.

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Autoria:Carlos Burgo,7 jul 2021 10:00

Editado porAndre Amaral  em  9 abr 2022 23:20

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