Covid-19 em África

PorEurídice Monteiro,5 mai 2020 7:44

Neste tempo de pandemia, há que ter em mente que os ciclos económicos vão e vêm, mas quanto ao ciclo de vida, quando interrompido, jamais se encontrará a porta de retorno.

Esta crise vem pôr a descoberto as fragilidades dos grupos mais vulneráveis, o perigo das desigualdades sociais acentuadas e a importância das organizações de base comunitária, que chegam lá onde nem os governos alcançam. Mas, qualquer tentativa de examinar, compreender e projectar o nosso futuro à luz desta situação pandémica em que o mundo se encontra neste início de primavera poderá incorrer num erro de cálculo grosseiro diante da enorme imprevisibilidade em que vivemos. Pois, se é mais fácil fazer um estudo do impacto económico da Covid-19 numa dada economia, o mesmo não se poderá dizer quanto às ramificações sociais desta crise que tem afectado todos os países. De maneira que, neste tempo de pandemia, há que ter em mente que os ciclos económicos vão e vêm, mas quanto ao ciclo de vida, quando interrompido, jamais se encontrará a porta de retorno.

É certo que, no particular caso de Cabo Verde, não se pode ignorar que as medidas de isolamento insular e social têm implicações de várias ordens em termos sociais e económicos. Antes de mais, há que ter em conta o impacto do fechamento da fronteira numa economia insular que, além da sua dependência da importação de produtos e bens primários para a população e pequenas indústrias, dependente fortemente da emigração e do turismo. As remessas dos emigrantes dos EUA e da Europa vão diminuir drasticamente, atendendo a perda de emprego, endividamento e precariedade dos emigrantes não documentados que constituem um contingente significativo na nossa diáspora. O turismo vai sofrer um abalo, porque os emissores são sobretudo países da Europa, região duramente atingida por esta pandemia. Os operadores turísticos e agentes culturais já estão a manifestar sinais de retracção e de redução expressiva do rendimento dos trabalhadores, factos já assumidos no programa de mitigação divulgado pelo governo.

Contudo, alargando o panorama a um contexto mais amplo e numa perspectiva mais vasta, avanço algumas reflexões. Uma nota breve sobre o impacto internacional da pandémica da Covid-19 nas desigualdades pré-existentes entre o norte e o sul nesse mundo cada vez mais globalizado e globalizante se revela importante. Denota-se que as tensões sociais serão mais acentuadas à medida que os efeitos da pandemia se alastrarem aos países que enfrentam condições extremas de instabilidade económica, política e social. Serão tensões socias locais e nacionais com potencial de se escalarem a nível internacional. Daí a importância de uma nova abordagem por parte das diversas organizações internacionais (FMI, OMS e ONU) na mobilização e distribuição de apoios emergenciais.

De assinalar que o Fundo Monetário Internacional (FMI) já anunciou medidas especiais quanto ao pagamento das prestações da dívida externa de 25 dos países mais pobres nos próximos seis meses. Isto atiça toda a discussão sobre as dívidas externas e a sua génese, bem como as medidas de reajustamento impostas pelas agenciais financeiras internacionais. O que é realmente importante é pensar em formas de combater esta crise como uma decisão estratégica dessas organizações internacionais e não como uma mera esmola.

No quadro da geopolítica da Covid-19 e para além dela, importa destacar um cenário já em emergência. Trata-se da erosão ainda mais da liderança mundial dos EUA, com a China se posicionando para ocupar um lugar de destaque no concerto das nações, como é no fornecimento de bens públicos essenciais, especialmente equipamentos médicos usados na luta contra Covid-19. Com esta crise, a China passa a pôr em evidência o seu potencial hegemónico.

Para além das desigualdades entre o norte e o sul neste mundo global, é importante ter em atenção as desigualdades no interior dos Estados nacionais. Larga proporção da população mundial vive na extrema miséria, dependendo da economia informal. Esta é uma realidade corriqueira em África, onde se sente ainda hoje o legado da economia política colonial, mormente o sistema de dual economies (coabitação entre economia formal e informal). Porém, há uma preponderância da informalidade na economia africana, atingindo fortemente a camada feminina da população africana. Significa que deixar desprotegidas as mulheres africanas pode colocar em risco a sobrevivência de várias famílias africanas nas periferias urbanas e no mundo rural, criando espaços para violência doméstica e sexual, com ênfase na prostituição forçada e no tráfico de seres humanos.

Outra preocupação importante é que as medidas de isolamento social, que são imprescindíveis no combate à disseminação da Covid-19, trouxeram ao debate a questão do défice habitacional e da exiguidade do espaço interior das habitações nas comunidades mais pobres ao redor do mundo. Os subúrbios das grandes cidades carecem de uma atenção, devido à densidade populacional, à concentração de população precária (sobretudo migrantes de origens diversas) e à tipologia de alojamentos onde residem conjunto de pessoas com ou sem relações de parentesco entre si. Junta-se a carência de água e os problemas de saneamento básico.

Tudo isso ajuda a configurar um ambiente de insegurança social e incerteza. Desde já, pode-se dizer que são imprevisíveis as consequências da pandemia tanto no crescimento económico, como na estabilidade social. Urge a forte intervenção do Estado, das agências de cooperação internacionais e das organizações de base comunitária para atenuar os efeitos nefastos da recessão económica e da instabilidade social.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 961 de 29 de Abril de 2020. 

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Autoria:Eurídice Monteiro,5 mai 2020 7:44

Editado porSara Almeida  em  12 fev 2021 23:21

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