Pelo mundo fora, as estatísticas têm vindo a desmontar a ideia corriqueira de que esta pandemia de Covid-19 tenderia a ser democrática. É certo que existe uma pluralidade de factores a influenciar, directa ou indirectamente, os seus efeitos. Os dados disponíveis ilustram que as condições sociais e o acesso ao sistema de saúde influenciam bastante.
Um exemplo dramático vem dos EUA, onde constata-se que os negros têm sofrido muito mais com a pandemia. No entanto, anote-se que as justificações para a alta taxa de letalidade entre os negros não tem sido circunscrito aos níveis de pobreza na comunidade negra. Se bem que, por causa da pobreza, a comunidade afro-americana tem tido acesso limitado aos serviços de saúde, é todavia o racismo – implícito e explicito – que vem sendo apontando como tendo forte peso no tipo de tratamento hospitalar concedido aos negros neste momento pandémico.
Brasil é um outro caso de sociedade multirracial, onde os dados já apontam que, de igual modo, é a comunidade afro-brasileira que mais tem sentido os efeitos desta pandemia, que «se mostra mais mortífera entre os negros». Saliente-se que, decorrente das desigualdades no acesso ao sistema de saúde no decurso do ciclo da vida, naquele país da CPLP os negros constituem a «maioria dos pacientes com diabetes, tuberculose, hipertensão e doenças renais crónicas – todos considerados agravantes para o desenvolvimento de quadros mais gravosos da Covid-19.» É dando atenção a este contexto que a professora Nilma Lino Gomes, ex-ministra do governo de Dilma Rousseff, alerta para a relação entre as desigualdades raciais e a pandemia de Covid-19, pelo facto da comunidade afro-brasileira representar mais de 70% dos pobres no Brasil. Tendo a Covid-19 uma incidência mais dura justamente nos pobres (moradores de ruas, das favelas e das periferias), a ausência de intervenção do Estado no atendimento hospitalar, na pronta realização de testes e no amparo socioeconómico significa uma conivência com o linchamento da população negra.
Um outro facto que merece grande destaque, pela sua transversalidade e universalidade em todos os países, já devidamente destacado pelo chefe da ONU, é que a pandemia tem consequências mais devastadoras para mulheres e meninas, na medida em que «quase 60% das mulheres em todo o mundo trabalham na economia informal, ganhando menos, economizando menos e com maior risco de cair na pobreza. À medida que os mercados sofrem quedas e as empresas fecham, milhões de empregos de mulheres desaparecem.» Efectivamente, são essas desigualdades estruturais pré-existentes entre os homens e as mulheres que têm relegado estas para as posições de maior vulnerabilidade socioeconómicas, de subordinação em relação aos homens e tem eternizado um quadro de violência física, psicológica e patrimonial que se acentua um pouco mais perante o imperativo do isolamento social, ficando muitas isoladas com os seus algozes. Mas também, como adianta António Guterres, «ao mesmo tempo em que perdem o emprego remunerado, o trabalho de assistência não remunerada das mulheres aumentou exponencialmente como resultado do fechamento de escolas e do aumento das necessidades dos idosos. Essas tendências estão se combinando como nunca antes e reduzindo os direitos das mulheres e negar suas oportunidades.»
Para além das desigualdades estruturais pré-existentes entre os homens e as mulheres na economia formal, é importante ter em linha de conta que, no particular contexto cabo-verdiano, a maior parte da população activa e, em específico, a maior parte da população feminina activa encontram-se na chamada economia informal. Esta é uma realidade comum na economia africana. Ou seja, há uma preponderância da informalidade em África. Quer isto dizer que, com efeito, é ainda mais acentuado o nível de vulnerabilidade das mulheres, em sociedades complexas como a nossa, onde a economia informal é predominante. Muitas vezes a condição transitória no sector informal se converte em condição estrutural, configurando o pleno emprego como uma meta inacessível. O impacto económico da multiplicidade e intensidade deste fenómeno no tecido social cabo-verdiano traduz-se no agravamento da pobreza e da exclusão social.
Entretanto, quando se toma em consideração a economia informal tende-se a focalizar simplesmente no designado comércio informal, descartando tacitamente outras situações de riscos e informalidades que geram vulnerabilidades e que agora estão ainda muito mais agravadas devido a esta situação de pandemia global que tem provocado uma onda de despedimentos em massa e criado situações de maior precarização do trabalho.
Neste contexto, importa notar que, por exemplo, as empregadas domésticas no país também são maioritariamente trabalhadoras informais, sem vínculo laboral formal, nem inscrição no INPS. Tão-somente 16% das empregadas domésticas estão efectivamente inscritas na providência social. O que significa que, para uma larga maioria das empregadas domésticas, cuja remuneração mensal é na linha do salário mínimo, mesmo quando atingidas pelo desemprego, suspensão temporária ou flexibilização das relações laborais, não ficam abrangidas pelas necessárias medidas emergenciais de apoio económico. Quer isto dizer que a informalidade em que laboram tem implicações directas na vida das empregadas domésticas e na sua relação com as próprias redes de apoio estatais. Com base nas experiências desta primavera de 2020, urge criar mecanismos que permitam a este grupo profissional viver do seu próprio rendimento e também, em caso de desemprego, de se beneficiar dos meios de segurança e assistência social.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 959 de 15 de Abril de 2020.