Actualmente o epicentro localiza-se na Europa, mas já é evidente o seu avanço pelos Estado Unidos e não tarda muito que o seu forte impacto seja sentido na África e América do Sul onde até agora não se verificaram grande número de casos para além dos importados. Em Cabo Verde os casos suspeitos têm-se revelado negativos, mas é uma questão de tempo para que também no país apareçam pessoas infectadas e na sequência casos derivados de contágio. Em todo o mundo a preocupação com a contenção do coronavírus e a mitigação dos seus efeitos na população tem conduzido a medidas cada vez mais exigentes a culminar no estado de emergência declarado primeiro na China e depois em vários países da Europa a começar pela Itália. Cabo Verde ciente dos riscos existentes e da possibilidade de contágio e tendo em conta eventuais transmissões furtivas a partir de pessoas sem sintomas, já declarou estado de contingência. Medidas efectivas a partir desta quarta-feira foram tomadas para provocar o social distanciamento necessário entre as pessoas e dificultar o quanto possível a progressão do vírus na população.
A híper conectividade das sociedades modernas determinou que o surto do vírus se transformasse em pandemia em menos de três meses. A contenção do contágio vai depender da disponibilidade de todos em contribuir para quebrar as cadeias de transmissão do vírus numa perspectiva de ganhar tempo. Ganhar tempo para proteger os mais vulneráveis entre os quais os idosos e os com outros problemas de saúde. Ganhar tempo para que se encontre tratamento específico para a doença e se desenvolva vacina contra o vírus. Ganhar tempo para que o sistema imunitário reaja ao novo vírus. E sobretudo importa, com o abrandamento do número de casos infectados, não sobrecarregar o sistema de saúde por forma a que esteja disponível para os que criticamente precisam de assistência. Para o sucesso nesse esforço colectivo de mitigação dos efeitos da Covid-19 vão contribuir todas as medidas tomadas de controlo das fronteiras, a proibição de entrada de cruzeiros e iates, o cancelamento de eventos, fecho de estabelecimentos e condicionamento de presença nas lojas, serviços e locais públicos de entretenimento. A contribuição maior virá da total disponibilidade de cada pessoa em cumprir com as regras de higiene e as regras de civilidade aplicáveis aos tempos extraordinários de hoje e também em demonstrar uma especial sensibilidade na protecção dos mais vulneráveis. Nos tempos actuais agir nesses termos é o maior acto de cidadania que se espera de todos e que todos esperam de cada um.
É evidente que as medidas tomadas para garantir esse distanciamento social são prenhe de consequências particularmente no domínio económico. Por exemplo, já se tem por garantido uma recessão mundial. Não se sabe até onde irá e qual será a duração, não obstante as iniciativas em curso de tentar imprimir alguma dinâmica à economia através da baixa nas taxas de juro e outras intervenções dirigidas para manter liquidez do sistema financeiro, garantir rendimentos a trabalhadores obrigados a ficar em casa e assegurar que as cadeias de abastecimento continuem abertas. Quanto às consequências políticas, uma questão que se coloca é como ficarão afectadas as relações entre os Estados no mundo pós-pandemia depois de na contenção do coronavírus se ter visto o ressurgimento do protagonismo do Estado-Nação com recurso a declarações de estado de emergência, fecho de fronteiras e limitação das viagens e outros intercâmbios. Um outro elemento novo a considerar é a ausência da liderança americana num problema global pela primeira vez depois da II Guerra Mundial e as dificuldades da União Europeia e de organismos multilaterais em articular uma resposta conjunta dos seus membros.
Numa nota mais positiva já se vê e se constata uma adesão das pessoas ao esforço da luta contra o coronavírus e uma disponibilidade em seguir as regras e em mudar os comportamentos. É uma nova atitude que pode vir a marcar o fim do período de egocentrismo levado ao extremo pela emergência das redes sociais e que não parecia esmorecer perante a evidência das alterações climáticas, dos extremos do consumismo e do aumento das desigualdades sociais. Também pode significar uma inflexão no que já parecia um enviesamento da relação com a verdade e com os factos e que alimenta fake news, cultiva posições anti-ciência e alicia muitos com realidades alternativas. De facto, não é possível continuar a alimentar esse tipo de posições perante a realidade incontornável de um vírus que pode vir a contaminar entre 60 e 70% da população mundial e que só poderá ser combatido com ciência pura e dura, com instituições confiáveis e com informação correcta. Espera-se também que pelas mesmas razões a conquista do poder fique mais difícil aos políticos e ao populismo que polarizam as sociedades, desprezam o conhecimento e descredibilizam as instituições.
Cabo Verde já se encontra em estado de contingência declarado ontem pelo governo. Imagine-se o quanto foi difícil decidir pelo “lockdown” de um país com as fragilidades de um país arquipélago dependente do turismo e com problemas de conectividade e uma base produtiva pobre e pouco diversificada. E isso acontece precisamente no momento em que globalmente se reduzem as comunicações, cadeias de abastecimento estão sob stress e a generalidade dos Estados que têm sido parceiros do desenvolvimento e são emissores dos fluxos turísticos estão concentrados na resolução dos seus próprios problemas de contenção da Covid-19. Na ponderação que antecedeu a decisão ter-se-á certamente levado em conta os efeitos no emprego em particular nas ilhas do Sal e da Boa Vista derivados da interrupção brusca de actividades nos sectores do turismo e da aviação e o facto que a recuperação ao nível actual poderá levar algum tempo. A prioridade em garantir a saúde pública no país e em particular dos mais vulneráveis prevaleceu, mas os problemas de hoje e de amanhã não desapareceram.
Tanto a eventualidade de elevado desemprego nessas duas ilhas como o aparecimento de fluxos migratórios em sentido inverso para as ilhas de origem irão exigir uma resposta pronta das autoridades. Problemas outros terão muitas empresas com falta de actividade e muitos dos novos empreendedores sobrecarregados com a amortização de investimentos feitos que também deverão merecer a atenção do governo. A verdade é que a paz social, confiança nas instituições e boas maneiras e civismo das pessoas são requisitos fundamentais para manter o ambiente de serenidade e autodisciplina que o país precisa neste momento. Garanti-los é o que vai permitir que se consiga o “distanciamento social” imprescindível para se ter sucesso na contenção do coronavírus e evitar que o sistema de saúde fique sobrecarregado.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 955 de 18 de Março de 2020.