Olha-se com perplexidade para o impasse que se instalou nas câmaras municipais da Praia e S.Vicente com o choque entre o presidente e os restantes vereadores da câmara municipal. Também na Assembleia Nacional não se muda o tom do debate político mesmo com a nova legislatura e a meio de uma emergência pandémica. Pela primeira vez deixa-se o órgão mais de dois meses após a sua inauguração a funcionar em reuniões plenárias sem as suas comissões especializadas prejudicando a qualidade do trabalho legislativo e a fiscalização da acção governativa.
O governo, pela forma como lidou com os últimos acontecimentos, vê-se que continua o seu curso no mesmo estilo como se não tivesse recebido um novo mandato e nas condições que o obteve e aconselhariam a uma postura de mais humildade e maior ponderação na abordagem dos problemas complexos do país, particularmente quando incidem sobre sectores-chave para uma eventual retoma da economia. Por seu lado, a sociedade assiste espantada aos ataques desferidos contra o Estado de Direito, o sistema judicial e contra alguns magistrados até a partir do hemiciclo do parlamento e queda-se perplexa perante a aparente incapacidade de uma resposta eficaz e tempestiva das instituições democráticas. A completar todo este ambiente pouco tranquilizador não se pode deixar de ouvir o ruído de fundo que resulta do que aparentemente se afigura uma ofensiva mediática com vista a descredibilizar a democracia cabo-verdiana, o seu percurso e as suas instituições, facilmente verificável numa simples pesquisa no Google. Mas felizmente que nem tudo é negativo. O grau adequado de eficácia conseguido no processo de vacinação, já há mais de 33,8% de pessoas elegíveis que foram vacinadas, e não só, sinaliza que há reservas de competência e liderança que aplicadas podem contribuir para ultrapassar os problemas do momento.
É verdade que o mal-estar verificável nas democracias já vem de longe e só foi aumentado com a pandemia da Covid-19 que há quase um ano e meio anda a limitar o quotidiano, a interromper relações e carreiras e a manter incerto o futuro. Mas, da mesma forma que para uma reacção determinada contra a pandemia vieram as vacinas, houve abertura nacional e internacional para evitar que as pessoas e as empresas fossem completamente submersas pela crise e procurou-se assegurar um rendimento básico a todos, impõe-se que se aja com firmeza para combater as outras causas do mal-estar na sociedade. E não há tempo a perder porque outras ameaças já despontam neste mundo globalizado a começar pelo que de imprevisível pode acontecer com as alterações climáticas. Para as enfrentar há que entre outras coisas reverter a crescente desconfiança em relação à democracia, reforçar a importância do debate na esfera pública com base na verdade e no respeito pela realidade factual e neutralizar a atracção pelas soluções fáceis e polarizantes oferecidas pelos populistas.
Em Cabo Verde há que inverter o caminho que vem sendo trilhado que é o de, com protagonismos pessoais que contrariam as regras do jogo democrático, ampliar na prática competências de órgãos, mudar relações com outros órgãos e seus titulares e imprimir tons autocráticos às relações que deviam ser baseadas essencialmente na colaboração e solidariedade política. O mal-estar instala-se sempre que se procura validar o princípio de que as regras não se aplicam, que o voluntarismo e o não respeito pelos procedimentos é a marca dos bons políticos e que os fins justificam os meios. O que tem ocorrido nas câmaras municipais da Praia e de S. Vicente é paradigmático a esse respeito.
São impasses que estavam destinados a acontecer a partir do momento em que o sentido da colegialidade ficasse mais fraco. A Constituição cabo-verdiana estabelece um sistema diárquico nos municípios com dois órgãos colegiais eleitos directamente. Diferentemente, os Estatutos dos Municípios estabelecem a existência de três órgãos. Inspirados talvez na lei 121/91, que por sua vez é tributária da lei 47/89, preveem um órgão executivo singular no município a par da câmara municipal e da assembleia municipal com competências próprias e abrangentes em relação às quais o recurso só pode ser contencioso e não para o colectivo da câmara municipal como acontecesse, por exemplo, em Portugal onde muitas dessas competências são realmente da câmara municipal e só tacitamente são exercidas pelo presidente. Era só um presidente da câmara ficar em minoria ou mesmo estando em maioria desentender-se com os colegas da lista eleita para que acontecesse o que se vê hoje nestas ilhas.
Num ambiente de enfraquecimento da solidariedade intrapartidária e de exacerbação de ambições pessoais, o mais natural é que situações do género venham acontecer. Negociar compromissos torna-se cada vez mais difícil, quando a tentação do líder é de se impor. Com isso, porém, aumenta o risco de bloqueios e nem a eleição de maiorias para governar dão garantias de estabilidade posterior do mandato. As incertezas que num determinado momento se fizeram sentir à volta da aprovação da moção de confiança no parlamento foram reveladores a esse respeito. Com tais desenvolvimentos confirma-se que nem os partidos estão imunes aos sentimentos anti-política e anti-partidos e que, pelo contrário, há quem se sirva deles para afirmar as suas tendências autocráticas. Aliás, como se pôde ver nas últimas eleições, há partidos a absorver nas suas listas personalidades com esse tipo de discurso populista na perspectiva de alargar o seu eleitorado para certas franjas anti-sistema. Naturalmente que isso tudo tem efeito perverso na democracia e metástasizando dentro do sistema pode levar ao seu descrédito ou mesmo à sua morte.
Uma outra prática que tem um efeito corrosivo na democracia é o de se bloquear o debate político imputando ao adversário intenção antipatrióticas ou de ataque premeditado a classes bem identificadas na administração pública ou na sociedade. Aconteceu no parlamento na semana passada a propósito da alegada ineficácia da polícia em impedir a fuga de um arguido por homicídio em prisão domiciliária. Quando, perante uma situação dessas, o normal seria para o parlamento ouvir em sede da comissão especializada o ministro da tutela e eventualmente o director da polícia o que, de facto, aconteceu foi anular-se como entidade fiscalizadora do Estado ao tomar a declaração política de uma das bancadas como um ataque à polícia nacional. A fazer escola esse tipo de actuação, não há como, por exemplo, discutir a qualidade do ensino sem que alguém diga que se está a atacar os professores, ou que se discuta o sector de saúde, sem que os médicos e enfermeiros sejam mobilizados para enfrentar o “inimigo”.
O resultado de tais práticas só pode ser o descrédito das instituições que fogem ao cumprimento do seu papel, acompanhado de um sentimento de irresponsabilidade conjugado com resistência a reformas dos supostos “atacados”, enquanto que os custos da ineficácia na prestação de serviços públicos são suportados por todos. O mal-estar nas democracias tem muito a ver com a incapacidade continuada de mudar este estado de coisas. Para reforçar a resiliência da democracia há que cumprir e fazer as regras do jogo democrático e imputar responsabilidades a quem é dado o poder de representar, de governar e de julgar em nome do povo.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1025 de 21 de Julho de 2021.