Indignado, pois, o referido senhor acusa a Ministra de falta de decoro, e pede que a história seja ensinada, com verdade.
Tenho o maior respeito pelo senhor Júlio Carvalho e apreço mesmo, pela entrega com que se votou à causa da auto-determinação e independência dos povos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. Por isso mesmo, comungando, por um lado, a sua preocupação, e correspondendo, por outro, ao apelo por ele lançado de se ensinar a história, com verdade, venho pública e serenamente expressar a minha modesta opinião, sobre esta questão, que reputo da maior pertinência.
Eu também sou daqueles (e penso que somos muitos; seguramente, uma maioria confortável) que têm alguma dificuldade em compreender como é que um país com apenas quarenta e seis anos de independência pode ter umas Forças Armadas com cinquenta e cinco anos de existência.
O argumento do senhor JC é o de que, em 1967, em Cuba, um grupo de combatentes jurou, após preparação militar naquele país e perante Amílcar Cabral, à data Secretário-Geral do PAIGC, libertar Cabo Verde.
Para abreviar razões, não vou entrar em questões de soberania e correlativos.
Admitamos, por mera hipótese demonstrativa, que o senhor Carvalho, após os estudos liceais feitos à custa e sob os pátrios poderes do avô, tivesse jurado perante este, já acamado e lutando contra a morte, que continuaria a estudar para se formar em medicina e voltar para Cabo Verde, para ajudar a salvar vidas. E que depois de esforços desmedidos, contra a falta de meios e dificuldades mil, tivesse, efectivamente, obtido um diploma em medicina. O médico JC considerar-se-ia como tal desde o juramento feito perante o avô, ou só após a obtenção do diploma e regresso a Cabo Verde, para exercer a medicina?
Na minha óptica, umas Forças Armadas, não existirão para, fundamentalmente, conquistar ou obter vitórias militares (que, eventual e necessariamente, terão consequências politicas e diplomáticas), mas sim para garantir e defender a Independência, de um dado país.
É claro, que tanto a história antiga, como a moderna são pródigas em exemplos da existência de exércitos cuja preocupação ofensiva era maior que a defensiva. Na contemporaneidade e após a instituição da chamada Defesa Colectiva, corporizada na Organização das Nações Unidas, a pretensão agressiva é, todavia, mal vista e desaconselhada. Diria que a ética é outra. Tanto assim que a figura do mercenário que era comum e perfeitamente aceite nos exércitos, desde a antiguidade, até ao século XIX é, hoje, absolutamente condenável.
É verdade que nas matas da Guiné, combateram pela independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde não só naturais destes países, mas outros indivíduos, considerados amigos do movimento e da causa libertadora. Se tal situação pode ser configurada como de solidariedade internacional para com os povos oprimidos, julgo, todavia, que é mais uma razão para que essas forças militares e militarizadas não possam ser consideradas como sendo as Forças Armadas nacionais. E falei de naturais e não de cidadãos, precisamente porque, nessa altura, ainda não se podia falar, com propriedade, de cidadãos.
E poderia, perfeitamente, ficar por aqui, para justificar por que razão tenho dificuldades em aceitar que as Forças Armadas da República de Cave Verde possam ter já cinquenta e cinco anos de existência, quando o Estado soberano existe há apenas quarenta e seis.
Sei, todavia, que o problema do senhor JC está relacionada com o simbólico.
Concedendo – por conta própria, sublinhe-se – aceitaria que, simbolicamente, o dia 15 de Janeiro fosse considerado como sendo o Dia das Forças Armadas. Seria, vá lá, uma demonstração do reconhecimento da importância que a preparação, início, desenvolvimento e desfecho da luta armada tiveram, no contexto da Independência Nacional e da história recente, de Cabo Verde. Mas, nunca aceitando o absurdo de, por essa via, concluir-se que as Forças Armadas foram constituídas em Janeiro de 1967.
Aliás, sabemos todos que a manipulação dos símbolos dá muitas vezes origem a mitos, tão do gosto e conveniência dos que se consideram protagonistas preferenciais e qualificados da História.
Dir-me-ão: a História é feita também de mitos! É verdade! Para tal, porém, é preciso que eles sejam aceites e incorporados pela Comunidade, como tal.
Hoje, a questão está ainda muito pessoalizada e é, portanto, compreensível, para não dizer natural, que o cidadão cabo-verdiano Júlio Carvalho, militante, dirigente histórico e pessoa ideologicamente ligado a um partido político que se diz continuador do Movimento de Libertação, que nas matas da Guiné lutou pela independência de Cabo Verde, entenda que a história de Cabo Verde é a história (quiçá, uma dádiva) do PAIGCV – Movimento de Libertação Nacional. Eu diria, sem rebuços, que a história do PAIGCV – Movimento de Libertação Nacional, faz parte da história de Cabo Verde. E é uma parte importante, por isso que elemento activo e preponderante da criação do Estado, enquanto entidade soberana.
Pretender, no entanto, utilizar esse capital inestimável para fins outros, designadamente, para capturar e subjugar a República, deixando o travo orwelliano de que, afinal, somos todos iguais, mas uns são mais iguais do que outros é de todo inaceitável, num Estado de Direito democrático.
Sem pretender ensinar a missa ao vigário, permito-me lembrar aos absortos que, segundo os cânones marxistas, “a prática é o único critério da verdade”.
Se, de facto, alguém está a faltar à verdade, a falta vem, pois, de trás. E não colhe o argumento, algo vitimizante, de que, face à pandemia, a hora devia ser de união e não de divisões. É sempre hora de união, para tudo o que seja a bem da verdade e em prol de Cabo Verde e das suas gentes.
Os equívocos e absurdos, porém, são propensos a corporativismos, que minam a democracia e adiam, irremediavelmente, o desenvolvimento harmonioso e saudável da comunidade nacional.
A meu ver, bastava que o então partido no Poder assumisse uma posição inequívoca, em 1990, declarando, sem reservas – como poderia tê-lo feito, outrossim, em 1980, aquando do cisma com a Guiné-Bissau, por iniciativa desta, já que o Programa Maior do partido estava irremediavelmente posto em causa – que a luta de libertação tinha cumprido o seu objectivo essencial e que, doravante, estava pronto a sanar erros de percurso e competir, em pé de perfeita igualdade sistémica, com as demais forças políticas cabo-verdianas, e estou certo que o legado histórico da luta de libertação seria por todos assumido, pacífica e orgulhosamente, como património indiscutível da Nação.
Contudo, a obsessão de considerar ser a luta pela libertação nacional, na sua vasta dimensão, património cativo de um partido político e trunfo a ser jogado na luta pelo Poder falou mais alto, e acabou por abafar o discernimento e toldar a honestidade intelectual.
Uma coisa é certa: o Estado de Cabo Verde precisa libertar-se desse e de outros equívocos, passe o eufemismo. Porque, não obstante as eleições de 13 de Janeiro de 1991 e a promulgação e entrada em vigor da Constituição da República, em 25 de Setembro de 1992, a verdade é que o Estado continua capturado pela ideologia e procedimentos nele incutidos, durante os anos do regime de partido único, com consequências de longo prazo, o que condiciona, sobremaneira, a convivência política e o futuro do país.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1052 de 26 de Janeiro de 2022.