O levantamento da imunidade parlamentar foi, neste processo, tratado de forma superficial como se não fosse um assunto que merecesse um tratamento cuidadoso e com especial rigor.
As imunidades parlamentares, historicamente, visam preservar dignidade e a independência do parlamento perante os outros órgãos do Estado ou de quaisquer autoridades. O seu fundamento reside na necessidade de proteção do parlamento e, reflexamente, do deputado, face à eventual utilização da via penal com o propósito de perturbar o funcionamento da assembleia ou alterar a composição resultante da vontade popular.
É importante ter-se presente que a imunidade é conferida ao parlamento, e que o deputado goza de imunidade por ser membro do parlamento, contrariamente ao que muitos julgam e que, eventualmente, estará na origem de algum descaso verificado no tratamento dado ao pedido feito ao parlamento para o seu levantamento a um deputado.
O parlamento cometeu um grave erro ao autorizar a detenção de um dos seus membros para o interrogatório judicial, através de um simples pedido da PGR, como se de um indivíduo qualquer se tratasse. Detenção para interrogatório porquê? Havia algum problema com a convocação do deputado para um interrogatório desde que autorizado pelo parlamento? E porque o parlamento autorizou o pedido de detenção fora de flagrante delito e sem nenhuma acusação formulada, e não optou por apenas permitir que o deputado fosse interrogado pelo juiz?
O parlamento, ao autorizar o pedido da PGR para que o deputado fosse detido e sujeito ao primeiro interrogatório, e para que fosse estabelecido eventuais medidas de coação, permitiu simultaneamente três coisas:
a) Detenção do deputado, sem nenhuma justificação, para o interrogatório judicial;
b) Prisão preventiva do deputado fora de flagrante delito (sem um pedido expresso para esse efeito);
c) Prisão de um deputado, sem que sequer tenha sido acusado ou definitivamente acusado.
Porque razão o parlamento permitiu isso?
Porque motivo o parlamento se rebaixou tanto?
Um órgão de soberania que se preze não pode e nem deve ser vulnerável a pressão popular ou de qualquer outro órgão de soberania, porque no dia em que isso acontecer, a sua soberania ficará inexoravelmente “comprometida”.
A verdade é que não sabemos, e é difícil que algum dia se venha saber, porque razão a casa da democracia e da liberdade agiu da forma como agiu.
Parece que se agiu mais administrativamente do que politicamente, embora não se deva esquecer que o parlamento é um órgão político e as suas decisões são essencialmente políticas.
Importa, ainda, não ignorar que um membro do parlamento tem um estatuto especial, e matérias que se prendem com detenção ou prisão dos seus integrantes têm um ritual próprio, por força do disposto no artigo 170º da Constituição, no artigo 11º do Estatuto dos Deputados e na alínea c) do artigo 135º do Regimento da Assembleia Nacional, exigências que impõem uma tramitação procedimental com a participação efetiva do plenário do parlamento.
Deve-se destacar, ainda, um outro especto menos digno do processo que se prende com o fato do parlamento ter decidido pela autorização do levantamento da imunidade do deputado com base numa “simples nota” da PGR. O parlamento para decidir sobre uma matéria tão relevante e que briga com a liberdade individual deveria dispor de informações substanciais para que pudesse formular um juízo pleno, com relação ao pedido, a sua natureza e os seus fundamentos.
Em outras paragens ou parlamentos, a formulação do pedido de autorização ao parlamento, para ser aceite, deve ser suficientemente fundamentada, de modo a habilitar o Parlamento de elementos que lhe permitam comprovar a verificação das circunstâncias que justificam o levantamento da imunidade parlamentar. O pedido de autorização ao parlamento deve conter os elementos que afirmem a existência de fortes indícios de que o Deputado tenha praticado um determinado crime, bem como a sua qualificação, de modo a permitir a aferição da respetiva moldura penal. O pedido, ainda, deve mencionar a data da prática dos crimes, elemento de relevo para se apreciar a aplicação do regime das imunidades, devendo, finalmente, o mesmo conter a indicação do facto e das circunstâncias do crime.
Só com esses elementos, o parlamento estaria e estará em condições de formular um juízo que esteja a altura do dever e das responsabilidades deste órgão constitucional, de maneira a verificar que o pedido não insere perseguição indevida, que os indícios são fortes e reais e que a qualificação da infração cometida se adequa à moldura penal passível de aplicação do regime de imunidades.
A resolução do parlamento que autoriza o levantamento da imunidade, ou não, deve fundamentar a decisão tomada, demonstrando de fato e de direito a justeza da deliberação adotada, contrariamente ao que se constata na Resolução nº 3/X/2021, em que apenas se descreve as normas legais habilitantes e se autoriza a detenção do deputado, e sem mais.
O parlamento, como órgão de soberania, tem de decidir com base em elementos substanciais, para poder, sustentado numa apreciação aprofundada e criteriosa, deliberar com ciência e justiça.
Não é compreensível à luz de qualquer bom senso, que um deputado esteja preso, há aproximadamente 10 meses, sem o respetivo mandato suspenso e, o mais caricato, com as respetivas faltas às sessões do parlamento devidamente justificadas e sem que isso preocupe minimamente a ninguém.
Isto dá que pensar!
Um outro ponto relevante para o debate no parlamento, e que este não deverá deixar de analisar, é sobre a aplicação da lei que regula os crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos.
Essa lei no seu artigo 1º define o seu objeto da seguinte forma: “A presente lei define e estabelece os crimes de responsabilidade que titulares de cargos políticos cometam no exercício das suas funções e por causa delas, e, bem assim, as sanções que lhes são aplicáveis e os seus efeitos”.
Desde logo, parece claro que a lei visa punir aqueles crimes cometidos por titulares de cargos políticos no exercício de funções e por causa delas, e não aqueles crimes que não têm, manifestamente, nada a ver com atividades funcionais estabelecidas em lei.
A lei ao estabelecer essa baliza, admite, sem dúvida, de que nem todos os crimes cometidos por titulares de cargos políticos são crimes de responsabilidade. Os estudiosos da matéria fazem clara distinção entre crimes cometidos no exercício de funções dos crimes de natureza pessoal, cometido por titulares de cargos políticos.
Por exemplo, HENRIQUES GASPAR fala de «crimes funcionais», para se referir àqueles praticados no exercício das funções, ou seja, àqueles que derivam do exercício das competências e de acordo com procedimentos próprios do exercício funcional, e não de crimes de qualidade pessoal. No fundo, entende-se que os crimes no exercício de funções são aqueles que são praticados ao serviço do Estado, no qual o cargo que o titular ocupa se insere, traduzindo-se na violação de bens jurídicos que os agentes deveriam, pelo contrário, preservar.
Deve-se sublinhar este aspeto importante: práticas de ato público ao serviço do Estado, são consideradas enquadradas no exercício de funções. Tudo o que sai dessa esfera, não está coberto pelo exercício de funções, logo não protegido pela imunidade e nem acesso ao foro especial.
As “funções parlamentares” são expressamente definidas pela Constituição da República e reafirmadas pelo Estatuto dos Deputados, determinando quais são as funções do cargo a serem exercidas pelo agente detentor do mandato.
Já na atividade pessoal do parlamentar, os fins são nitidamente privado-pessoais, sendo os atos praticados nessa esfera deverem ser caracterizados como atos da pessoa do parlamentar com fins privados, obviamente não merecendo proteção via irresponsabilidade parlamentar.
Deste modo, se um deputado, não estando em nenhuma missão do parlamento, e estando a tomar um copo num bar e desentender-se com uma pessoa e decide socá-la, comete um crime.
E perante essa infração do deputado, estamos face a que tipo crime? De responsabilidade ou crime comum?
E qual seria o foro a que deveria ser submetido o deputado em causa? Foro especial ou
comum (primeira instância)?
Parece um facto aceite que quando não se tratam de crimes praticados no exercício de funções, os agentes praticantes da infração são considerados cidadãos comuns, e devem ser julgados perante tribunais comuns.
Estranhamente neste processo se junta num único pedido de suspensão de mandato, imputação de crimes diversos, aparentemente praticados em momentos distintos e submetidos a foros diferenciados ao que parece com claro intuito, como se diz na gíria popular, de “com uma cajadada matar vários coelhos”.
E será que o parlamento vai aceitar ser tratado desta forma?
É fundamental que os deputados, no momento em que estiverem a tratar desta matéria, esqueçam, por uns instantes o caso Amadeu de Oliveira, e pensem nos deputados (todos os deputados) e em especial no parlamento. A dignidade do parlamento assim o exige e afirmação do seu poder, enquanto órgão de soberania, reclama por respeito, e não pela subserviência.
Os deputados da nação terão na próxima sessão parlamentar uma oportunidade histórica para reafirmar o estado de direito, o respeito pelos direitos humanos e pela dignidade humana. Será o momento de se reafirmar o primado da lei, acima das tentações para ajustes de contas ou para incursões vingativas, “martelando” o direito e o princípio da justiça.
As questões que, a meu ver, deverão ser clarificadas em sede do debate parlamentar são as seguintes:
a) O parlamento deve aceitar que os seus membros possam ser detidos fora de flagrante delito para serem presentes ao juiz para o primeiro interrogatório?
b) O parlamento deve aceitar que os seus membros sejam presos preventivamente, fora os casos previstos na lei, sem que haja uma acusação definitiva?
c) O parlamento deve permitir que os seus membros sejam presos fora de flagrante delito, com exceção daquelas situações que a lei impõe, por indícios de crimes ainda não validados em sede de ACP ou equivalente?
d) Quais são os elementos que devem ser apresentados e a acompanhar o pedido da justiça ao parlamento para que este possa tomar uma decisão de forma segura, responsável e consciente?
Mas o parlamento deve, ainda, debater aspetos não claros, ao que parece, relacionados com a lei que regula os crimes cometidos por titulares de cargos políticos, os chamados crimes de responsabilidade, nomeadamente:
a) Crimes praticados por titulares de cargos políticos no exercício de funções (crimes funcionais);
b) Crimes praticados por titulares de cargos políticos não cobertos pelo exercício de funções (crimes de caráter pessoal);
c) O que é o exercício de funções e o que não é?
d) A atividade e funções do deputado vai para além das que estão estabelecidas na Constituição e no Estatuto dos Deputados?
Só discutindo e aprofundando o debate se poderá ter os elementos necessários para clarificar entendimentos e interpretações que poderão conduzir inclusive a revisão das leis ou supressão de lacunas legislativas, tornando-as mais clara, e menos passíveis de interpretação enviesada e interesseira.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1065 de 27 de Abril de 2022.