De acordo com o pensamento do Prof. José Vianna na “elaboração das decisões judiciais é preciso a existência de critérios. Estes são fornecidos basicamente pela ciência, no caso ciência jurídica. Dentre estes critérios se insere a necessidade de fundamentação judicial dotada de uma metodologia própria”(2).
O mesmo autor acrescenta que “a decisão judicial busca soluções sensatas, coerentes, razoáveis. Em uma palavra: justas”. Para concluir que “a ideia de justiça sem ciência é mera opinião”.
Para este especialista de direito que sublinha e enaltece o papel da ética nas decisões judiciais, sublinha que “a ética intervém como um freio, um fiscal íntimo do juiz a orientá-lo para que a decisão não seja um ato de vontade pessoal, e sim que esteja em consonância com os valores objetivos de justiça, assentados pela comunidade jurídica”.
E por que comecei esta reflexão assim, trazendo a ética à colação?
O meu questionamento decorre de inquietações, para não dizer preocupações, ao ler o acórdão do Tribunal da Relação de Barlavento que condena o Amadeu de Oliveira a pena de 7 anos de prisão.
Confesso que tinha uma grande expetativa em conhecer o conteúdo desse acórdão, conhecer a sua fundamentação teórica e doutrinária e, sobretudo, verificar a sua submissão aos ditames das normas e orientações constitucionais.
Sabia que não era fácil, face às acusações de que vinha acusado o Amadeu de Oliveira, o Tribunal encontrar elementos objetivos para, à luz da Constituição e da doutrina, o condenar de crime de responsabilidade.
No entanto, o tribunal, para condenar como condenou o deputado Amadeu de Oliveira de crime de responsabilidade, teria de decidir, de forma clara e com uma fundamentação coerente e convincente, sobre as seguintes questões essenciais:
1) Se se trata crime de responsabilidade, e qual ou quais foram os atos ou omissões cometidos pelo arguido;
2) Se o crime foi cometido no exercício de funções ou por causa delas, e quais os nexos de causalidade objetivamente identificados;
3) Ou, ainda, se foi respeitado o procedimento legal para detenção do deputado fora de flagrante delito, de acordo com o estipulado na Constituição de Cabo Verde.
Primeiro questionamento: O deputado Amadeu de Oliveira cometeu, na realidade, o crime de responsabilidade? E se cometeu algum crime, foi no exercício de funções e por causa delas?
A Constituição da República de Cabo Verde (CRCV) estabelece no seu artigo 123º a responsabilização dos titulares de cargos políticos com a formulação seguinte:
“1. Os titulares de cargos políticos respondem política, civil e criminalmente pelos atos e omissões que praticarem no exercício das suas funções e por causa delas, nos termos da lei.
2. Os crimes cometidos pelos titulares de cargos políticos no exercício das suas funções e por causa delas, denominam-se crimes de responsabilidade, cabendo à lei estabelecer as sanções aplicáveis e os efeitos destas, que poderão incluir a perda do cargo ou do mandato e a impossibilidade temporária de exercer cargos políticos.
3. Ficam, ainda, impossibilitados de exercer cargos políticos pelo período que a lei estabelecer os titulares sancionados com a perda de cargo ou mandato pela prática de grave ilegalidade”.
Da definição da CRCV, há a destacar dois aspetos relevantes para o caso em análise: a) pelos atos e omissões; b) praticados no exercício de funções e por causa delas.
No nosso ordenamento constitucional, os atos e omissões dos titulares de cargos políticos, que decorrem do exercício de funções, só podem estar ligados às competências e atribuições estabelecidas pela constituição, e, no caso de deputados, também pelo seu estatuto e pelo regimento da Assembleia Nacional.
Parece, neste ponto, clara a orientação constitucional de estabelecer as atribuições e deveres dos deputados, limitando-os à constituição, ao estatuto dos deputados e ao regimento da Assembleia Nacional.
Acontece, no entanto, ao ler o acórdão do Tribunal da Relação ter constatado no ponto 91 da Fundamentação que “O arguido, Deputado Amadeu Oliveira, em pleno exercício das suas funções, pois que não tinha o seu mandato suspenso, usou da influência que advém da sua autoridade, ou de outros meios de persuasão”;Mais: no mesmo acórdão, o Tribunal reforçou ainda esse posicionamento no ponto 140 da Fundamentação quando afirma que “O arguido agiu, igualmente, no exercício das suas funções de Deputado e por causa delas, pois os atos praticados foram também no âmbito dessa sua esfera de atuação, estando ele ciente disso”.
Além desses pontos do acórdão citados, importa ainda ressaltar uma passagem na página 97 desse documento em que o tribunal, na tentativa de contrariar a tese da defesa, afirma que “Aceitar que os deveres dos Deputados só podem ser os previstos na Constituição, no Regimento e no Estatuto dos Deputados, além de ignorar uma norma expressa da Constituição que admite que por lei sejam estabelecidos deveres dos titulares dos cargos políticos, também privilegia uma leitura restritiva da expressão “Estatuto dos Deputados…”.
Porém, essa tese do Tribunal da Relação de Barlavento não deixa de ser curiosa, porentrar em flagrante confronto com o disposto no artigo 169º da CRCV que diz expressamente que os deveres dos deputados são os definidos na própria Constituição, no Estatuto dos Deputados e no Regimento da Assembleia Nacional.
O Tribunal da Relação ao socorrer-se do nº 1 do artigo 124º da CRCV, no qual enuncia que os titulares de cargos políticos estão sujeitos aos deveres estabelecidos na Constituição e na lei, visando refutar a posição da defesa, esqueceu-se que o enunciado do artigo 124º é concretizado pelo artigo 169º da CRCV, em sede constitucional do Estatuto de Deputados, em que definiu expressamente quais são os deveres dos deputados e as leis onde devem constar os demais deveres.
Para os deputados, enquanto titulares de cargo político, não existem outros deveres para além daqueles definidos na Constituição, no Estatuto de Deputados e no Regimento da Assembleia Nacional, conforme estatui o artigo 169º.
Para além disso, o Tribunal não conseguiu fazer a necessária diferenciação entre estar investido do mandato parlamentar e do estar em exercício de funções. Quando não, em certos momentos, os confundiu, tratando as duas figuras, como se fossem a mesma coisa.
A tese do Tribunal de que o arguidoestava “em pleno exercício das suas funções, pois que não tinha o seu mandato suspenso” inquieta e amedronta. Como não deixa de ser preocupante a ideia veiculada pelo tribunal de que “O arguido agiu, igualmente, no exercício das suas funções de Deputado e por causa delas, pois os atos praticados foram também no âmbito dessa sua esfera de atuação”.
Argumentos e fundamentação onde se confundem deliberadamente(?) exercício de funções com o mandato, sabendo o tribunal como todos sabem, que um deputado pode deter o mandato e não estar a exercer as funções, e o exemplo mais comezinho que se pode utilizar no caso presente, foi o fato do deputado Amadeu Oliveira ter estado preso por vários meses, sem que o seu mandato tivesse sido suspenso, e, por força dessa situação, esteve sem poder exercer as funções de deputado, caso impar que o parlamento certamente, tirados os devidos ensinamentos, não deixará de analisar e tratar para acautelar situações semelhantes no futuro.
Ter o mandato é condição necessária para se exercer as funções, mas o exercício de funções exige efetivamente ações concretas, atividades e atos de acordo com o que a lei definir como seu conteúdo funcional.
Ademais, em Cabo Verde, nem todos os deputados estão sujeitos ao regime de exclusividade absoluta no exercício de funções, em virtude do disposto no nº 2 do artigo 22º do Estatuto dos Deputados, como não existem impedimentos para o deputado exercer mandato judicial ou de ser perito ou árbitro em qualquer processo, desde que não seja contra o Estado (artigo 25º do Estatuto dos Deputados), havendo uma única exigência imposta pelo dever estatuído que quando se trata de assunto privado, o de não invocar a condição de deputado (alínea i do artigo 22º do Estatuto dos Deputados).
Isso significa que um parlamentar na posse do seu mandato pode desempenhar funções de deputado e outras funções que não sejam parlamentares. Importará é saber diferenciar quando o mesmo está a desempenhar funções parlamentares das que não são parlamentares como aliás ensina a doutrina, o que manifestamente o Tribunal da Relação de Barlavento não fez.
Ora vejamos o que a doutrina diz sobre o exercício de funções:
Para o Prof. Jorge Miranda, a expressão o exercício de funções deve ser entendida como “a prática de quaisquer atos tanto no local onde funciona a Assembleia - seja no plenário, seja nas comissões - como no seu exterior, em comissões de inquérito, em deputações ou missões ao serviço da Assembleia, junto de serviços da Administração pública ou em contacto com os cidadãos eleitores”(3).
No entender do Prof. Jorge Miranda, o exercício de funções se prende com atos praticados que tenham relação com poderes funcionais. Este constitucionalista faz uma distinção clara entre crimes cometidos fora do exercício das funções, por titulares de cargos políticos, porque continuam a ser cidadãos como quaisquer outros, dos crimes praticados no exercício de funções. Para o constitucionalista, os crimes cometidos fora do exercício das funções, ou seja, no âmbito da vida pessoal dos titulares de órgãos de soberania, respeitando aos seus interesses individuais, porque no seu entendimento os titulares de cargos políticos continuam a vestir a pele de cidadãos comuns, deverão ser julgados perante tribunais comuns, de primeira instância.
Na perspetiva de Maurício Zanotelli(4) “as funções parlamentares merecem uma interpretação ampla, contemplando as atividades desempenhadas pelo Deputado no Parlamento, apresentação de moções, projetos de lei, interpelações, votos, declarações de voto, respostas, participação em comícios, entrevistas (conferências, debates) à imprensa falada e escrita. Em todas essas possíveis atividades, o parlamentar estaria imune pela sua irresponsabilidade parlamentar, justamente por haver um nexo de causalidade com a sua função parlamentar”.
No entendimento de Fernandez-Viagas, (5) a expressão “no exercício das suas funções” deveria ser substituída “em atos parlamentares”, afirmando, na sua perspetiva, que atos parlamentares englobariam as opiniões expressas no exercício dos instrumentos (orais ou escritos) previstos pelo Regimento.
Parece claro e evidente que para haver crime de responsabilidade de um titular de cargo político, decorrente do exercício das funções, terá de haver um nexo direto e evidente de causalidade entre as funções e os poderes estabelecidos expressamente pela Constituição ao cargo e ao ato ou omissão praticado.
Citando de novo Maurício Zanotelli,(6) “Para melhor elucidar se o Deputado está cumprindo com a função institucional de parlamentar, tem-se que traçar uma relação do ato praticado com as funções de parlamentar expressamente elencadas pela Constituição da República, complementadas e especificadas pelos Regimentos Internos das Casas Legislativas e pelos Estatutos do cargo de Deputado ou Senador, devendo, ainda, corresponder a um nexo direto e evidente entre ambos, isto é, entre o ato praticado e as suas funções expressas constitucionais. Dessa maneira, o ato praticado estará em cumprimento da função institucional do parlamentar, se houver nexo direto e evidente com as funções atribuídas expressamente ao cargo”.
Ora, não havia melhor forma de ilustrar o significado de “no exercício de funções” do que esta explicação doutoral de Zanotelli que o Tribunal da Relação não quis valorizar.
Porém, esta é a grande exigência em termos constitucionais, quando se pretende imputar crime de responsabilidade: é preciso estabelecer uma relação linear, lógica e coerente entre o ato ou omissão praticado, exercício de funções e o crime atribuído, requisitos esses que o Tribunal da Relação não conseguiu preencher, não fazendo a necessária e imprescindível demonstração.
Alias, é o próprio Tribunal que admite, contraditoriamente, em vários momentos que o ato, eventualmente, incriminatório atribuído ao Deputado Amadeu de Oliveira não tem nada a ver com o exercício de funções parlamentares
Quando na página 106 do acórdão se diz expressamente que “Embora o arguido não tenha praticado nenhum ato formalmente típico das suas funções parlamentares, os elementos, dos autos, não tinham o condão de afastar a determinação que ele agiu e praticou ações enquanto estava no exercício das suas funções e vinculado ao estatuto de deputado”… para mais adiante se acrescentar que “Mesmo não tratando dum ato típico do exercício do mandato de Deputado, que se traduza na prática de poderes formais, trata-se, neste caso, dum exercício mais amplo do mandato, que inclui relação do membro da Assembleia Nacional com os eleitores e também com as demais instituições da República”.
Ora, estas passagens do acórdão se afiguram, em condições normais, como a afirmação pelo Tribunal de uma absolvição do Deputado Amadeu de Oliveira do crime de responsabilidade.
Afinal, o tribunal “reconheceu” que “o ato praticado pelo deputado não tem relação com o exercício do mandato”, relação essa que, no entanto, para incriminar um titular de cargo político de crime de responsabilidade, imperativamente terá de existir, por força do disposto na constituição (nº 1 do art. 123º).
Assim, não poderia concluir diversamente o Tribunal quanto à inexistência do crime de responsabilidade quando é o próprio que afirma que o Deputado “não praticou atos típicos das funções parlamentares” que, seguindo a lógica racional, haveria, apenas, uma conclusão a chegar: não existe base legal para imputação ao arguido do crime de responsabilidade.
Aceitar, com toda a humildade, que Amadeu Oliveira não cometeu crime de responsabilidade, não significa afirmar que ele não cometeu crime. Simplesmente o que se quer demonstrar é que aqueles crimes que lhe são imputados, muito embora ele fosse deputado, não tem literalmente nada a ver com funções de deputado, isto bem na linha do que ensina o Prof. Jorge Miranda de que “o exercício de funções se prende com atos praticados que tenham relação com poderes funcionais”, e não com outra coisa qualquer.
Suportado pela doutrina e pelas próprias conclusões do tribunal, se pode afirmar de forma enfática que o Deputado Amadeu de Oliveira não cometeu crime de responsabilidade, tal como definido no artigo 123º da CRCV.
Ponto 16 de Fundamentação do acórdão – diz-se queAmadeu Oliveira “teve intervenção nessas fases processuais, como defensor oficioso …, sustentando sempre, no processo e em público, que… (o seu constituinte) teria agido ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude”
Ponto 25 Fundamentação – se afirma que “Devido a afirmações e imputações de Amadeu Oliveira, atacando a honra, consideração e probidade de Juízes do STJ e ao próprio STJ enquanto instituição, foi movido procedimento criminal contra ele…”.
Ponto 26 Fundamentação – se descreve que “Iniciado o julgamento, ofereceu-se a Amadeu Oliveira a oportunidade de candidatar-se a Deputado à Assembleia Nacional nas listas da União Cabo-verdiana Independente e Democrática, a UCID”.
Ponto 32 Fundamentação – se indica que “Eleito Deputado Nacional, o arguido Amadeu Oliveira continuou a intervir como defensor de … (seu constituinte), sustentando sempre, no processo deste e em público, o entendimento de que este é inocente”.
Desses pontos de fundamentação citados, se alguma conclusão, com alguma lógica, se poderá tirar é a de que:
a) o seu estatuto de advogado oficioso de um arguido num processo é reconhecido pelo tribunal;
b) as suas criticas à justiça e aos realizadores da justiça são anteriores à sua condição de deputado;
c) uma demanda judicial intentada contra ele, em decorrência de atitudes de contestação às decisões judiciais, ocorreu antes de ser eleito deputado;
d) a sua relação com o seu constituinte revela-se evidente: é tipicamente de um advogado com o seu cliente, e não de um deputado com o seu eleitor.
Esses elementos, embora constantes do processo, não foram valorados pelo tribunal que os “ignorou olimpicamente”, porque se quis de qualquer jeito imputar ao arguido o crime de responsabilidade, ainda que o ato praticado por ele, que o próprio tribunal admite e reconhece, não tenha nada a ver com o exercício de funções.
O tribunal ao admitir que Amadeu de Oliveira não praticou “nenhum ato formalmente típico das suas funções parlamentares”,que é condição para haver crime de responsabilidade, foi, no entanto, deitar mão às disposições legais, algumas anteriores à constituição de 1992, para fundamentar e justificar o cometimento de crime de responsabilidade.
Pois, a invocação pelo Tribunal da Lei n.º 85/III/90 que aprovou o Estatuto dos Titulares de Cargos Políticos,mais concretamente o artigo 12º, que trata dos deveres desses agentes, para, à partir dessa norma, condenar o Amadeu de Oliveira, é sintomático.
O tribunal não deu ao trabalho de analisar se essa norma da primeira república estava em vigor e se teria ou não sido derrogada pelo artigo 169º da CRCV de 1992 que além de tipificar os deveres de deputados, se refere expressamente aos demais deveres “constantes do Regimento da Assembleia Nacional e do Estatuto dos Deputados”.
Disso resulta uma conclusão lógica e intransponível: Não existem outros deveres de deputados senão aqueles estabelecidos na CRCV, no Estatuto dos Deputados e no Regimento.
Porém, parece que o Tribunal da Relação de Barlavento tinha um propósito inabalável: condenar de crime de responsabilidade o Amadeu de Oliveira custe o que custasse. Pois assim se percebe a tese exposta no acórdão, com uma amálgama de citações doutrinárias que não têm nada a ver com a nossa realidade constitucional, segundo a qual os crimes comuns praticados pelos titulares de cargos políticos podem ser transformados em crimes de responsabilidade. Passo a citar a passagem do acórdão a esse respeito: “certos crimes comuns, quando cometidos por titulares de cargos políticos, com flagrante desvio ou abuso de função ou com grave violação dos deveres inerentes, convertem-se em crimes de responsabilidades” (pág. 99).
Isso configura uma confissão pública do Tribunal de que não encontrou crimes de responsabilidade para imputar ao arguido, e portanto a solução é procurar um crime comum e o transformar em crime especial ou de responsabilidade. Ou seja: de um crime de auxílio a evasão converte-se em crime de responsabilidade só porque quem o cometeu é titular de cargo político.
Assim, para o tribunal é perda de tempo tipificar na lei os crimes de responsabilidade, pois que os crimes comuns, se cometidos pelos titulares de cargos políticos, passam a ser de responsabilidade, porquanto, na tese do tribunal, é dispensável o exercício de se saber se foi ou não cometido no exercício de funções ou por causa delas. Seguindo essa lógica do Tribunal da Relação de Barlavento, os titulares de cargos políticos que tiverem conflito familiar e cometerem crimes de VBG, esses crimes, por terem sido praticados por um titular de cargo político, podem converter-se doravante em crimes de responsabilidade.
E é isso mesmo o entendimento dum órgão que tem a responsabilidade de realizar a justiça?
E onde fica o postulado constitucional expresso no artigo 123º?
Está-se perante um Tribunal que parece não ser amiga da CRCV e que ignora deliberadamente(?) a supremacia da constituição. É preciso que se entenda inequivocamente que nem a Lei n.º 85/III/90 e nem a Lei 85/VI/2005 podem impor outros deveres aos deputados que não os definidos na CRCV, isso na linha de pensamento de Hans Kelsen(7) que afirma que a “A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas”.
No mesmo sentido vai o Prof. Luís Roberto Barroso (juiz do Supremo Tribunal Federal do Brasil)(8) que de forma enfática afirma que ”A Constituição se revela suprema, sendo o fundamento de validade de todas as demais normas. Por força dessa supremacia, nenhuma lei ou ato normativo — na verdade, nenhum ato jurídico — poderá subsistir validamente se estiver em desconformidade com a Constituição”.
O princípio da supremacia da Constituição deve ser escrupulosamente respeitado, tal como decorre do nº 3 do artigo 3º da CRCV, não sendo de ignorar que a própria Lei 85/VI/2005 queestabelece os crimes de responsabilidade de titulares de cargos políticos deva ser adequada à CRCV. O conteúdo do nº 1 do artigo 3º dessa lei extravasa claramente a autorização dada pela CRCV ao legislador ordinário a quem apenas incumbiu a responsabilidade de “estabelecer as sanções aplicáveis e os efeitos destas, que poderão incluir a perda do cargo ou do mandato e a impossibilidade temporária de exercer cargos políticos”, diferentemente do estabelecido no nº 2 do artigo 135º da CRCV originária de 1992, antes da revisão de 1999, que dizia que cabia “à lei defini-los, estabelecer as sanções aplicáveis e os efeitos destas”.
A omissão no texto constitucional da expressão “a lei definirá os crimes de responsabilidade” pressupõe que à partir de 1999 a própria constituição os definiu? Se sim, é preciso que se tire as devidas consequências.
Segundo questionamento: Foi respeitado o procedimento legal para detenção do deputado fora de flagrante delito?
Reza o acórdão do Tribunal da Relação de Barlavento que “Ora, atento ao conteúdo do disposto nos nº 1 e alínea a) do nº 5 do artigo 148º da CR, resulta que a Comissão Permanente também tem competência para autorizar a detenção de um Deputado – aliás, as demais competências confiadas a esse órgão nos parecem ser de grandeza tal (dada a importância e grau elevado de responsabilidade das mesmas) que não espanta o poder que lhe é confiado para autorizar a detenção de um Deputado, no âmbito das referidas disposições legais”. Porém, as considerações do tribunal não ficam apenas pela relevância dada às competências da Comissão Permanente. No acórdão proferido, vai-se mais longe quando se diz que “a tese do arguido, veiculada no decorrer da audiência de discussão e julgamento, segundo a qual não competiria à Comissão Permanente da Assembleia Nacional deliberar no sentido de autorizar a sua detenção, não tem base legal, pois que a Constituição da República confere a esse órgão tal poder”.
Mas afinal o que diz e estabelece a Constituição da República?
A CRCV no nº 1 do artigo 148º consagra que “A Comissão Permanente funciona durante o período em que se encontrar dissolvida a Assembleia Nacional, nos intervalos das sessões legislativas e nos demais casos e termos previstos na Constituição”.
A CRCV tipificou claramente as situações em que a Comissão Permanente pode substituir a Assembleia Nacional, desempenhando as competências próprias que a constituição e a lei lhe conferiu.
Para além do estabelecido no artigo 148º, a CRCV prevê no nº 2 do artigo 273º uma outra situação em que a Comissão Permanente pode substituir a Assembleia Nacional como é no caso “de ter terminado a legislatura na data da declaração de estado de sítio ou de emergência, as suas competências serão assumidas pela Comissão Permanente”.
Importa, porém, clarificar os conceitos parlamentares seguintes:
a) sessões legislativas;
b) sessões plenárias.
A sessão legislativa em Cabo Verde tem a duração de um ano, e o período de funcionamento efetivo da Assembleia Nacional decorre de 1 de outubro a 31 de julho, como resulta do estatuído nos nºs 1 e 2 do artigo 93º do Regimento da Assembleia Nacional, sendo que de 1 de agosto a 30 de setembro acontecem as férias parlamentares;
Já as sessões plenárias realizam-se, entre nós, na segunda e quarta semanas de cada mês, de acordo com o nº 2 do artigo 98º do Regimento da Assembleia Nacional.
A CRCV fala explicitamente “nos intervalos das sessões legislativas” o que significa que a Comissão Permanente só poderá funcionar em substituição do Plenário da Assembleia Nacional entre 1 de agosto a 30 de setembro, ressalvando as outras situações que não se aplicam na presente situação.
Parece claro que parte do nº 1 do artigo 43º do Regimento da Assembleia Nacional que fala da Comissão Permanente funcionar nos intervalos de sessões plenárias da Assembleia Nacional evidencia uma manifesta inconstitucional por violar o disposto no nº 1 do artigo 148º da CRCV.
Ora, partindo do que a CRCV estabelece, não cabia à Comissão Permanente, no dia 12 de julho de 2021, por não estar investida de legitimidade e nem de amparo legal para o fazer, autorizar a detenção fora de flagrante delito do deputado Amadeu de Oliveira, isto, tendo em devida conta o disposto no nº 1 do artigo 148º da CRCV.
Trata-se de uma violação flagrante e grave da CRCV, que se não for devidamente equacionada, nos termos que a constituição determina, poderá constituir-se, aqui sim, num verdadeiro ATENTADO CONTRA O ESTADO DE DIREITO DEMOCRÁTICO.
Aqui neste ponto, não se está perante matéria de interpretação, pois a norma não oferece dúvida e nem encerra ambiguidades: a Comissão Permanente não pode funcionar fora dos períodos tipificados na constituição.
E não se trata de um problema de ter ou não poder para decidir sobre a matéria, como teria entendido o Tribunal da Relação de Barlavento, trata-se de uma questão de legitimidade que determina que a Comissão Permanente não estava, naquele momento, dotado de suporte legal para tomar conhecimento do assunto que era manifestamente da esfera e competência da Assembleia Nacional, mais concretamente do seu plenário, por força do que dispõe a constituição.
A resolução nº 3/X/2021, aprovada a 12 de julho, invoca o nº 1 do artigo 12º do Estatuto dos Deputados para autorizar a detenção do deputado Amadeu de Oliveira. No entanto, se a expressão “quando esta (Assembleia Nacional) não estiver em funcionamento efetivo” for entendida como intervalo das sessões plenárias, essa parte do nº 1 do artigo 12º briga com o disposto no nº 1 do artigo 148º da CRCV, logo não estando conforme à constituição, de acordo com a doutrina da supremacia da constituição, deve prevalecer a norma inscrita na CRCV.
Para além da determinação constitucional que define períodos específicos para que a Comissão Permanente possa funcionar em substituição da Assembleia Nacional, neste caso preciso do Deputado Amadeu Oliveira, a Comissão Permanente não respeitou o disposto na alínea c) do artigo 135º do Regimento da Assembleia Nacional que estabelece que as “deliberações sobre matérias respeitantes ao mandato e à imunidade do Deputado” estão sujeitas ao escrutínio secreto. Convém, no entanto, sublinhar que quando se fala em escrutínio secreto significa que cada deputado terá de colocar um boletim de voto numa urna, não havendo lugar, nessa situação, para votos por delegação.
Vejamos, por exemplo, a tramitação em Portugal em relação a pedido de autorização à Assembleia da República para prisão preventiva ou detenção de um deputado fora de flagrante delito como ensina Carla Amado Gomes(9):
“1) O Juiz competente encaminhará o pedido de autorização para tramitação de procedimento criminal (levantamento da imunidade) em documento dirigido ao Presidente da Assembleia da República…;
2) Na Assembleia da República, o expediente é designado para parecer da Comissão Competente…, em seguida, votada pelo Plenário, com a devida audição do deputado previamente,… por conseguinte, votado por escrutínio secreto … pelo Plenário, após a leitura do respetivo parecer;
3) A partir do resultado, edita-se uma Resolução que, dotada de fundamentação, seguirá para publicação, independente do resultado, se suspende-se o deputado ou nega-se o levantamento da imunidade;
4) Logo, com o levantamento da imunidade, o procedimento criminal terá seguimento; com a recusa, a instância suspender-se-á até o final do mandato, quando chegará ao seu término”.
Parece evidente que matérias relacionadas com detenção ou prisão e o levantamento da respetiva imunidade parlamentar para efeito perseguição criminal passam impreterivelmente pelo juízo do plenário. Carla Amado Gomes dá uma grande relevância à fundamentação da resolução que levanta a imunidade do deputado. No entendimento dela é através da fundamentação da resolução que o Parlamento poderá acompanhar à posteriori, e verificar a conformidade entre o que foi aprovado pelo parlamento e o desfecho do caso.
No caso vertente, a Comissão Permanente aprovou a resolução 3/X/2021 sem nenhuma fundamentação, ficando o parlamento sem nenhum meio de verificação à posteriori.
Resta e permanece uma dúvida, relativamente aos tipos de atos que a Comissão Permanente pode realizar.
O artigo 323º do Regimento da Assembleia Nacional, relativamente aos tipos de atos estabelece o seguinte:
“1. Os atos da Assembleia Nacional com eficácia externa assumem a forma de lei, regimento, moção e resolução.
O acórdão do Tribunal da Relação de Barlavento, em vários momentos e de forma abundantemente explícita, evidencia que o Amadeu Oliveira agiu, antes e depois de ser eleito deputado, como defensor oficioso de um arguido, como se pode ver a seguir:
2. Os atos da Mesa com eficácia externa assumem a forma de deliberação.
3. O diploma que regula a organização e o funcionamento da Assembleia Nacional assume a forma de regimento.
Da mesma forma, o Regimento da Assembleia Nacional no seu artigo 4º diz que são órgãos da Assembleia Nacional:
a) O Plenário;
b) O Presidente da Assembleia Nacional;
c) A Mesa da Assembleia Nacional;
d) Os Grupos Parlamentares
e) As Comissões Parlamentares.
A Comissão Permanente não é referida nem no artigo 4º quando se trata enunciar os órgão da Assembleia Nacional, provavelmente não o será, como não é incluída no artigo 323º quando se trata de definir os atos com eficácia externa dos orgãos da Assembleia Nacional.
A pergunta e a dúvida que ressaltam são as seguintes: a resolução 3/X/2021 aprovada pela Comissão Permanente considera-se implicitamente como sendo um ato da Assembleia Nacional? Se não, qual seria o tipo que deveria revestir o ato com eficácia externa da Comissão Permanente?
Concluo na linha com que iniciei, socorrendo-me da ética e das suas prescrições como o caminho seguro para a promoção da (justa) justiça que deva estar inserida nas decisões judiciais.
Como postula José Ricardo Alvarez Vianna(10)as “Decisões judiciais não devem expressar idiossincrasias. É aqui que a ética assume importância em relação às decisões judiciais. Antes de proferir qualquer decisão, o magistrado deve se questionar: o que devo fazer? Qual é a solução justa, conforme o Direito, para este caso?
Tais indagações só podem ser feitas se houver um censor interno com o magistrado; um fiscal que lhe convoque a agir de maneira correta. Note-se que neste espaço interno do magistrado a ciência ou o próprio Direito não penetram; a ética, sim. Será a ética que irá instá-lo a fazer o certo. A ética é que possibilitará esse diálogo interior do magistrado para consigo mesmo, compelindo-o à reflexão.
É a ética que postula no sujeito uma escolha racional; escolha esta que deverá ser pautada por valores objetivos (universais) de justiça, e não pessoais.
Porém, a dimensão ética e a sua influência na decisão judicial serão insustentáveis quando num acórdão se escreve umas preciosidades como estas: “O arguido, com o seu comportamento anormal e indigno…” (Pág.68)
O juiz, que pensa e escreve isso de alguém, está condenado a condenar. E condenará à partir dos seus valores, crenças e preconceitos, sem se submeter aos apertados crivos da ética e dos princípios da justiça (justa).
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Referências:
(1) Doutor em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL). Mestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Diretor e Professor da Escola da Magistratura do Paraná-
(2) Viana, José Ricardo in REVISTA JURÍDICA LUSO-BRASILEIRA, ANO 4 Nº 1, pag. 761-781
(3) Jorge Miranda, “Imunidades Constitucionais e Crimes de Responsabilidade”
(4) Maurício Zanotelli - CONTRIBUTO PARA UMA TEORIA DA IMUNIDADE PARLAMENTAR DEMOCRÁTICA (Tese Doutoramento)
(5) Fernández-Viagas. La Inviolabilidad e Inmunidad de los Diputados y Senadores: la crisis de los “privilegios” parlamentarios
(6) Idem
(7) KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 8ᵃ Edição. Editora Martins Fontes. 2009
(8) Luís Roberto Barroso - O controle de constitucionalidade no direito brasileiro
(9) GOMES, Carla Amado. As Imunidades Parlamentares no Direito Português. Coimbra: Coimbra Editora, 1998. p. 116-117.
(10) Idem