Não sei se o terá feito na qualidade pessoal ou se na de Presidente do Conselho Superior de Magistratura Judicial (CSMJ), órgão ao qual compete de acordo com o artigo 223º da Constituição, em termos gerais, a “gestão e disciplina dos juízes, de administração autónoma dos recursos humanos, financeiros e materiais dos tribunais, bem como dos seus próprios”.
Independentemente de se saber em que qualidade o fez, resulta evidente uma tentativa de desconstruir a minha narrativa, contrapondo-a uma outra, eventualmente resguardada num manto institucional, visando conferi-la, porventura, maior credibilidade.
Começando pelo título do artigo, o Dr. Belarmino Delgado socorre-se da linguagem hiperbólica para, em vez de esclarecer os questionamentos feitos, apresentar argumentos, segundo os quais, as instituições nacionais estão a ser vítimas de ataques de pessoas que querem fazer mal a democracia e quiçá destruí-la. Dizer-se que o conteúdo do meu artigo “vilipendia” as instituições, é procurar, de forma fácil e intencional, misturar alhos com bugalhos, e eventualmente colher aplausos dos que, com a sua prática não condizentes com o Estado de Direito Democrático, acham que não há problemas no funcionamento das nossas instituições democráticas e que podem continuar a fazer o que têm vindo a praticar.
Aliás, essa deriva discursiva me fez lembrar de um episódio recente, ocorrido no parlamento europeu, em decorrência da descoberta de atos de corrupção de alguns dos seus deputados, envolvidos na operação Catar. A presidente do parlamento europeu, em vez de assumir as responsabilidades do parlamento e de pedir desculpas aos eleitores, decidiu fazer fuga em frente, dizendo entre outros quejandos que “o parlamento estava sob ataque”, externo claramente, e que a “democracia estava em perigo”, por forças ocultas, obviamente.
Essas derivas, habitualmente, não contribuem, em nada, para debates racionais e para um confronto salutar de opiniões.
A sua hiperbolização, visando, aparentemente, proteger as instituições dos ataques dos “inimigos da democracia”, não deixa de ter um propósito mais ou menos confesso: o mal está fora das instituições, porquanto estas estão a funcionar “lindamente”.
O exemplo do Brasil que utiliza, apenas pela metade, revela o como o Estado de Direito não deve funcionar. O que está a acontecer no Brasil, a emergência e consolidação do bolsonarismo, é resultado do ativismo judicial e da utilização da justiça para fazer política. Provavelmente já não se lembra do papel do juiz Sérgio Moro e do procurador Deltan Dallagnol (e de todos os que os acompanharam), que usaram e abusaram da sua condição, para ilicitamente apropriarem-se de processos, e sobretudo fazerem valer os seus interesses pessoais e políticos sob o manto da realização da justiça.
Se tiver a paciência de ler o meu artigo com atenção, verá claramente que não resulta evidente um ataque às instituições, nem um apelo a soluções fora da democracia, bem pelo contrário. O meu artigo procura, se quiser, analisar o estado da nossa prática democrática, e não a existência, ou não, das instituições; Procura chamar a atenção para os perigos que corremos, senão corrigirmos algumas das disfunções, e não o de desmoralizar ou etiquetar as instituições; Identifica comportamentos e atitudes que não ajudam a promover e fortalecer a democracia, e não o de sustentar demagogicamente soluções absurdas e irrealistas.
É da sua inteira responsabilidade estabelecer um nexo de causalidade entre o que escrevi e transcrevo: “A democracia e o Estado de Direito não rimam com a existência de instâncias judiciais que se julgam acima da lei e da constituição, quando proferem sentenças manifestamente inconsistentes, incoerentes, contraditórias, eivadas de preconceitos e de reservas mentais” com a sentença proferida no Tribunal da Relação de Barlavento. A minha afirmação decorre da leitura de vários documentos (sentenças e acórdãos) que suscitaram em mim dúvidas, inquietações e, nalguns casos, perplexidades.
Como pude constatar no seu artigo, o Dr. Belarmino Delgado, provavelmente influenciado pelo seu “métier”, quis sublinhar a expressão “reservas mentais” numa perspetiva estritamente de negócios jurídicos, de todo inaplicável no contexto da minha abordagem, quando o meu propósito era evidenciar a dimensão do problema numa ótica clínica, onde o termo equivale a reserva cognitiva, ou seja, o funcionamento mental num quadro de alguma perda de funcionalidade cerebral.
Entretanto, como cidadão atento deste país, não posso ficar indiferente quando leio numa sentença, a propósito de uma agressão física (sem recurso a armas) de um indivíduo contra um outro, ocorrida em março de 2021 e o julgamento realizado em outubro de 2022 (um ano e mais de 6 meses depois), o juiz escrever o que adiante cito, para justificar a prisão preventiva antes da decisão transitar em julgado, pois, o que eu vi, não é de deixar nenhuma alma viva tranquila. E o escrito é exatamente este: “Parece legítima pensar que se até a prolação desta sentença, o arguido se encontrava numa situação de relativa tranquilidade face uma falsa impunidade, esta com a prolação e conhecimento desta presente decisão, ficou mais próxima do seu desaparecimento e consequentemente a confirmação da sua condenação e cumprimento da pena” … Não satisfeito com a tese da “falsa impunidade”, perante uma pessoa sem antecedentes criminais, o magistrado acrescenta nesse documento de sentença que “Não é menos verdade, que dada à personalidade e motivação amplamente reveladas pelo arguido no cometimento do crime por que foi acusado e agora condenado, nada garanta a este Tribunal que em liberdade enquanto aguarda o trânsito em julgado da decisão que o condenou, o arguido não venha procurar a vítima e “concluir” aquilo que iniciara‘ ‘ ou deixar o pais, nota-se, furtando-se assim à ação da justiça.
As perguntas que se colocam são as seguintes: é legítimo um magistrado, à partir das suas inferências, sem nenhuma sustentação factual, projetar numa pessoa (perspetiva clínica) uma intencionalidade futura, e com base nisso decretar uma prisão preventiva? É legítimo um magistrado “insinuar” que se uma pessoa ficar em liberdade poderá “concluir aquilo que iniciara” (“concluir” aqui significará “matar”?), só para ter o fundamento para privar alguém da liberdade? Esse raciocínio levado até as últimas consequências não conduziria a decretação da prisão perpétua, se, por acaso, o nosso quadro legal tal permitisse?
Que ponderação de circunstâncias e direitos foi tida nessa decisão?
Criticar isso é vilipendiar ou vergastar as instituições?
Num artigo publicado na Revista de Processo, São Paulo, sob o título “Il controllo di razionalità della decisione fra logica, retorica e dialetica”, Michelle Taruffo sublinhava a importância da fundamentação que, segundo o seu pensamento, deveria ser estruturada de modo a justificar a decisão. A ideia não visa exercer um controlo sobre o juiz que pensou, mas sobre a racionalidade das razões que ele invocou para justificar o que decidiu. Tarrufo defende que “o controlo sobre a motivação não é um controlo sobre a validade e fundamentação das decisões feitas, mas sobre a validade e fundamentação das razões pelas quais o juiz se serve para tornar aceitável ‘aos outros’ a sua decisão”.
Felizmente, essa decisão foi derrubada pelo Supremo Tribunal da Justiça que, em tempo, repôs a normalidade. No entanto, apesar da decisão do Supremo, o indivíduo não deixou de passar noites nas celas de uma prisão porque alguém decidiu usar de um poder que, por ser delegado pelo povo, deveria ser usado com parcimónia e razoabilidade.
E fica uma questão no ar: Quem reparou os “estragos” na vida pessoal e familiar infligidos a essa pessoa, independentemente do grau de culpa que possa ter e para o qual possa vir a ser castigado nos termos que a lei determinar?
É nisso que estamos!
Um pouco exasperado, o Presidente do CSMJ me questiona: com que autoridade em Direito e Ética me pronunciei em matérias que provavelmente só diriam respeito aos “Deuses do Olimpo”?
Pois é, com que autoridade?
Acontece que a Democracia e o Estado de Direito trouxeram uma coisa que é uma “chatice” para muita gente que é o exercício da Cidadania.
A minha autoridade ancora nesse direito/dever de opinar e de exprimir o meu apoio ou o meu desagrado face àquilo que ocorre na nossa república, podendo a minha opinião ser refutada com base na autoridade da solidez dos argumentos contrários, e não simplesmente na invocação de posição de poder ou, pior ainda, da autoridade resultante da condição de se ter ou não diploma em determinados domínios do saber.
E, mantendo-se na ofensiva, o Presidente do CSMJ sublinha e questiona o meu “atrevimento” em meter-me em questões da interpretação ao ter dito/afirmado que teria havido a violação do nº 1 do artigo 148º da Constituição da República, aquando da decisão de autorizar a detenção de um deputado fora de flagrante delito.
No entanto, para que conste, o meu primeiro “atrevimento”, foi o de ter participado na elaboração da Constituição de 1992; de ter participado na aprovação de artigo a artigo, dos 322 que compuseram a Constituição de 1992; de ter sido um dos que esteve também presente na sua primeira revisão.
Um outro “atrevimento” meu relevante foi o ter aprovado o artigo 246º da Constituição originária que instituiu pela primeira vez em Cabo Verde a figura de autogoverno das magistraturas.
Ocorre que o articulista, de forma até exaustiva, referiu-se não à minha pessoa enquanto cidadão, mas, especialmente, focando na minha condição de ex-governante, provavelmente no quadro da hiperbolização do discurso, visando impactar a sua narrativa. Já agora, para enriquecer o cardápio da minha trajetória, esqueceu-se de mencionar a minha condição de ex-parlamentar. Fui eleito deputado em dois períodos distintos, na primeira e segunda legislatura, da segunda república, onde participei na aprovação de instrumentos legais essenciais para as bases do nosso Estado de Direito Democrático.
Pois bem, voltando à questão da interpretação com relação à violação da Constituição, em decorrência da aprovação de uma Resolução que autoriza a detenção de um deputado fora de flagrante delito pela Comissão Permanente da Assembleia Nacional, mantenho a minha posição, respeitando democraticamente quem pense de forma contrária.
Importa, no entanto, sublinhar que não decretei a inconstitucionalidade da resolução, decisão que compete às instâncias constitucionalmente idóneas para o fazer, simplesmente opinei, no exercício pleno da minha cidadania.
Contudo, importa aqui recordar os seguintes:
O nº 1 do artigo 148º da Constituição da República de Cabo Verde (CRCV) diz: “A Comissão Permanente funciona durante o período em que se encontrar dissolvida a Assembleia Nacional, nos intervalos das sessões legislativas e nos demais casos e termos previstos na Constituição”.
Os nºs 1 e 2 do artigo 150º da CRCV estabelecem que:
1. A legislatura tem a duração de cinco sessões legislativas.
2. A legislatura inicia-se com a primeira reunião da Assembleia Nacional depois das eleições e termina com a primeira reunião da nova Assembleia eleita.
Depois o artigo 151º da CRCV, nos seus nºs 1 e 2, trata especialmente do regime das sessões legislativas estabelecendo que:
1. A sessão legislativa tem a duração de um ano.
2. O período normal de funcionamento da Assembleia Nacional decorre de 1 de outubro a 31 de julho seguinte, sem prejuízo das suspensões que o Plenário delibere por maioria de dois terços dos Deputados presentes.
Parece haver um encadeamento lógico e sistemático do texto constitucional, não se vislumbrando espaço para grandes lucubrações interpretativas.
O que nos dizem as regras de interpretação?
Elas nos ensinam que o primeiro ponto da interpretação são as palavras em que a lei se expressa (elemento literal). O elemento literal, também chamado de gramatical, são as palavras em que a lei se exprime, e constitui o ponto de partida do intérprete e o limite da interpretação. Depois disso, o recurso a elementos lógicos pode se justificar, nomeadamente para se perceber o espírito e o alcance da norma, fazendo o uso de elementos históricos, racionais e teleológicos, etc.
No caso da CRCV, parece que ela quer claramente sinalizar que a Comissão Permanente só funciona para substituir à Plenária da Assembleia Nacional, quando esta não está ou não estiver em funcionamento ( interpretação lógica).
Um segundo aspeto que a CRCV claramente define são os momentos em que essa substituição possa ocorrer (dissolução do parlamento, intervalo das sessões legislativas, nas situações previstas no nº 2 do artigo 152º e nas previstas no nº 2 do artigo 273º), logo há uma tipificação das situações e uma delimitação temporal em que a substituição da Assembleia Nacional pela Comissão Permanente se deva ocorrer ou processar-se.
O articulista problematiza a expressão constitucional “intervalo das sessões legislativas”, para questionar, na sua ótica e por absurdo, de que se uma sessão legislativa é de um ano, e se os anos se sucedem de forma ininterrupta, logo não haverá intervalo entre as sessões legislativas.
Na verdade, o Presidente do CSMJ esquece-se ou omite de forma deliberadamente o nº 2 do artigo 151º da CRCV, segundo o qual o período de funcionamento normal do parlamento é de 1 outubro a 31 de julho. Isso, significa para quem queira fazer uma interpretação lógica e ontologicamente falando, que há um espaço temporal definido pela própria Constituição, em como a Assembleia Nacional não funciona normalmente; e é esse espaço temporal que a Constituição chamou de “intervalo entre sessões legislativas” no qual previu a possibilidade de a Comissão Permanente funcionar em substituição da Assembleia Nacional.
Parece também de uma evidência cristalina que a Comissão Permanente não poderá funcionar no período legalmente estabelecido para o funcionamento normal da Assembleia Nacional, por uma simples e singela razão: a Comissão Permanente é um órgão(?) de substituição, apenas quando o plenário da Assembleia Nacional não estiver em funcionamento normal (racio legis).
Se alguma dúvida houvesse a esse respeito, podemos nos socorrer da fonte onde se foi buscar essas normas e as transportar para a nossa realidade jurídica constitucional.
Vejamos pois a constituição portuguesa (versão revista em 2005) onde Cabo Verde se inspirou.
O nº 1 do Artigo 179.º (Constituição Portuguesa) diz que: “Fora do período de funcionamento efetivo da Assembleia da República, durante o período em que ela se encontrar dissolvida, e nos restantes casos previstos na Constituição, funciona a Comissão Permanente da Assembleia da República”.
E a mesma constituição portuguesa estabelece nos nºs 1 e 2 do artigo 174.º que:
1. A sessão legislativa tem a duração de um ano e inicia-se a 15 de Setembro.
2. O período normal de funcionamento da Assembleia da República decorre de 15 de Setembro a 15 de Junho, sem prejuízo das suspensões que a Assembleia deliberar por maioria de dois terços dos Deputados presentes.
O que se verifica na análise dos normativos sobre a matéria nas duas constituições é a de que literalmente as disposições são semelhantes. Talvez a única diferença identificável reside no fato de na constituição portuguesa a formulação seja mais clara, porquanto em vez de se utilizar a expressão “intervalo das sessões legislativas” opta-se por uma frase equivalente “Fora do período de funcionamento efetivo da Assembleia Nacional”, exatamente o período que medeia/intervala as sessões legislativas.
Pode até aparecer alguém a sustentar tese contrária, mas fica-lhe muito difícil argumentar contra as evidências.
Uma coisa é certa: mesmo para interpretação há limites.
E a nossa própria Constituição impõe limites quando estabelece no nº 2 do artigo 17º o seguinte: “A extensão e o conteúdo essencial das normas constitucionais relativas aos direitos, liberdades e garantias não podem ser restringidos pela via da interpretação”.
Pois, tirar liberdade a alguém por via de interpretação, que não atenda nem a letra nem o espírito da própria constituição) é um caminho perigoso e pode abrir portas para à prática de arbitrariedades.
Num artigo intitulado “O Respeito à Intenção do Texto como Condição de Possibilidade para Decisões Judiciais Corretas: Os Limites da Interpretação (Jurídica) à Luz da Teoria Literária de Umberto Eco” publicado na Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional, em 2020, os especialistas em direitoLucas Sipioni Furtado de Medeiros e Alfredo Copetti Neto afirmam de forma enfática que “a atribuição de limites aos juízes e tribunais é, além de um problema jurídico, também um problema democrático, uma vez que em uma democracia presume-se (i) não só que o Direito seja produto de uma linguagem pública coletivamente construída, e não resultado da linguagem particular e da consciência individual do seu aplicador, (ii) mas também que as leis devem ser aplicadas pelo Poder Judiciário independentemente da visão pessoal/moral do juiz sobre essas leis. Em resumo, isso quer dizer que a legitimidade jurídica em um cenário democrático requer uma justificação que abarque, obrigatoriamente, o respeito ao texto das leis e da Constituição”.
O respeito ao texto é uma obrigação e é um imperativo de quem interpreta ou seja, como disse alguém “na atividade interpretativa, não se pode extrair mais do que se contém no objeto da interpretação”.
Para Peter HÄBERLE no seu livro Hermenêutica Constitucional, publicado 1997, defende que a constituição deve ser interpretada não só por entes estatais. Advoga esse autor que a inclusão da “sociedade civil, através de todos os interessados, em quaisquer segmentos sociais, na efetividade constitucional” é uma necessidade, implicando, como justifica na sua posição, a ideia de que o pluralismo interpretativo significa “a defesa de interesses dos vários segmentos sociais e do próprio Estado”.
Deste modo, me parece legítimo que os cidadãos se devam interessar pela gestão dos negócios da república, pois trata-se do exercício de um direito/dever que não pode ser alienado ou, de qualquer forma, espoliado por poderes públicos sob que pretexto for.
A sociedade aberta e democrática que almejamos desenvolver deve estar sempre sob escrutínio dos cidadãos, no uso dos mecanismos e ferramentas que os mesmos dispõem, e sobretudo, na utilização da sua liberdade de expressão e pensamento em prol de mais democracia, mais e melhor justiça, mais desenvolvimento e mais solidariedade.
(1) Pós-Graduando em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional
(2) Doutorado em Teoria do Direito e da Democracia
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1104 de 25 de Janeiro de 2023.