Uma teia de relações
Reportando-se à relação dialética entre a música e os músicos como problema sociológico, muitos estudiosos das ciências musicais têm, repetidamente, afirmado que ser músico não decorre apenas de uma competência meramente técnica, mas, em todo o caso, é preciso que o sujeito integre, de forma dinâmica, uma rede de relações sociais para que, primeiro, ocorram os processos de iniciação e aquisição de competências musicais e, depois, eventual profissionalização (Luís Campos, 2018). No caso concreto de Luís Morais, reputado compositor, intérprete e arranjador que, se estivesse vivo, completaria, 88 anos, hoje, 10 do corrente, importa, à partida, indagar e compreender melhor em que medida os contextos sociofamiliares de origem do artista mindelense, por exemplo, terão desempenhado um papel relevante na sua iniciação musical e, eventualmente, na configuração das suas relações com a música, enquanto “facto social total” (Anne-Marie Green, 2000) e “uma das mais abstratas formas de expressão artística”. (Luís Melo Campos, 2018).
À entrada da Ribeira Bote onde nasce em fevereiro de 1935, na Rua de Nhô Luís Rocha (Inês Moreno, 2022), e decorre quase toda a sua infância, entre a casa da mãe Guilhermina Antónia “Nhá Gadjome” Ramos e o pai Raimundo Conrado “Musa” Morais, o menino-prodígio constrói, na sua infância na “zona libertada”, uma teia de relações sociais, mais precisamente na Ribeira, onde havia muita areia e uma extensão de tarrafes, charuteiras e bombardeiras. Aliás, esse lugar simbólico do histórico bairro mindelense era palco, na altura, das célebres brincadeiras de mãos ao ar e má gatchada,que envolviam, entre outros, o próprio Luís e o seu vizinho e “menino de criação”, Toy Estêvão ou Toy de Nhana, nominho por que é vulgarmente conhecido António Teodorico Estêvão (2004), também ele ribeirabotense de gema. Descendente de uma família do Norte da ilha da Boa Vista, o percurso musical de Luís Morais viria a ser influenciado pelas suas raízes profundamente boa-vistenses e, em especial, pelo seu avô paterno, Pedro Doroteia Morais (Nhô Pitra), natural do Fundo das Figueiras, executante de “trombone de acompanhamento” (Manuel “Penha” Morais) e “falecido já velho, aos 77 anos de idade na Rua Guibarra, popularmente conhecida por Rua de Murguine, em S. Vicente” (Patronilha “Petula” Morais Matos, 2023). Ainda cedo, o patriarca da família Morais, colega de Luís Rendall e antigo foreman da companhia carvoeira Wilson Sons, “uma espécie de capataz geral dos capatazes encarregue do recrutamento e colocação de pessoal e homem influente na ilha” (António Manuel “Toy” Neves, 2023), migrou para S. Vicente, deixando para trás, no Fundo das Figueiras, na Boa Vista, a sua primeira mulher Josefa Ramos “Jata de Pitra” Morais e os filhos Georgina e Lúcio, todos eles cabreros já falecidos.
Dividido entre o ofício de carpinteiro e a atividade musical
A convite do sanicolaense Toy Fininha, Luís parte para o Sal, em outubro de 1954, para animar um baile de aniversário do seu amigo Toy, e, logo à chegada, teria ficado hospedado em Pedra de Lume em casa do seu conterrâneo Lela Tchau, carpinteiro na Oficina de Salins du Cap Verte, com quem, aliás, o clarinetista viria a trabalhar com o estatuto de ajudante de carpinteiro, durante algum tempo. (Alcides Spencer “Tchinoa” Brito, 2022). Mais tarde e antes que rumasse para a então Vila dos Espargos, Luís passa a laborar na Direção-Geral das Obras da Aeronáutica Civil Portuguesa nos Espargos como ajudante do Sr. Maçussa, chefe de carpinteiros, o que o obriga a mudar a residência para essa vila salense, até ao seu regresso à ilha natal. Perfeitamente inserido na ilha do Aeroporto, o clarinetista deslocava-se à Santa Maria aos sábados para tocar em bailes, sempre que fosse convidado, ou passar fins de semana, e, na sua mobilidade de um lado para o outro, fazia-se acompanhar amiúde de João Roberto “Djunga” Faial, já falecido, então funcionário da firma António Domingos Duarte. (Toy Duarte, 2004).
Nos Espargos, onde trabalhava de segunda a sexta-feira, Luís cultiva facilmente excelentes relações de amizade, que deixam marcas profundas e indeléveis decorrentes de relações amorosas mantidas, naqueles anos, na acolhedora ilha salense. Assim, da relação havida, primeiro, entre o músico e Gertrudes dos Santos Rocha, vulgarmente conhecida por Tudinha de Joaninha, residente em Ribeira Funda (Espargos) e falecida em fevereiro de 1983 com 53 anos de idade, nasce o seu filho primogénito, Carlos Manuel Rocha, também ele falecido prematuramente, em 2014, com 51 anos. Mulherengo como o avô paterno Pitra, Luís Morais viria, posteriormente, a estabelecer relações amorosas com Emelina Rocha Fernandes, mais conhecida por Guga Rocha, falecida em 2019 com 81 anos de idade, e das quais resultaria o nascimento da filha Ana Maria (Ana de Guga), em 12 de setembro de 1961, nos Espargos, funcionária do Hospital Regional do Sal Ramiro Figueira.
No Sal, Luís pautava a sua conduta pelo equilíbrio e respeito pelos princípios, valores e normas comunitários por que se regem as ditas sociedades de interconhecimento nessa ilha, via de regra. Em 1956, o músico conhece o Superintendente da Igreja do Nazarenos, Gilberto Évora, também ele natural da ilha de S. Vicente, e, entre ambos, se estabelecem relações de amizade, que se aprofundam e se consolidam no dia a dia, como refere em termos encomiosos o falecido Reverendo e saxofonista: “O Luís era um jovem educado, alegre, participativo, popular e de uma simpatia total perante a congregação nazarena dos Espargos. Crente e cheio de fé, frequentava a Igreja do Nazareno dos Espargos, praticava a música sacra e colaborava nos cultos, executando o saxe”. Curiosamente, naquela fase da juventude, Luís mostrava-se tão relutante em consumir bebida alcoólica, tanto assim que, em bailes, quem tocasse com ele não se levantava da cadeira, a não ser em intervalos, “precisamente para evitar copos a mais e por motivos de disciplina”, conforme explicava Toy Duarte, natural de S. Nicolau, antigo funcionário da firma António Domingos Duarte no Sal e companheiro do clarinetista (2004). No ano seguinte ao do estabelecimento de relações de amizade com Gilberto Évora, em 1957, Luís Morais regressa definitivamente à sua ilha natal, “quando os trabalhos da Obra terminaram” (António Francisco “Toy de Tuda” da Graça, 2003), e ingressa na tropa. Concluído o serviço militar, emigra para o Senegal onde Bana, já em Dakar, desde dezembro de 1961 (Raquel Ochoa, 2008), o aguardava ansiosamente para as lides musicais. Todavia, a viagem para o Senegal do clarinetista sanvicentino carecia da competente autorização sem a qual não poderia emigrar, razão por que teve, primeiro, de se deslocar à cidade da Praia, onde é detido pela então PIDE durante alguns dias para averiguações, tendo sido libertado, posteriormente, por interferência, a seu favor, de dirigentes da Associação Académica do Mindelo em cuja equipa de futebol atuava como médio de ataque, em 1962. Na Praia, enquanto aguarda a necessária autorização da polícia política colonial, Luís hospeda-se em casa do seu colega músico Cesário Duarte, até à sua partida para Dakar.
A mulher dos seus sonhos
Na cidade capital senegalesa, Luís Morais, em fevereiro de 1963, conhece a também sanvicentina Maria Graciela dos Santos, na boate Miami, no bairro de Medina, onde atuava como músico profissional, e, de comum acordo, ambos passaram a coabitar em regime de união de facto, durante alguns anos, em Liberté 3, também em Dakar, da qual resultaria o nascimento, em 12 de maio de 1965, do filho varão, Anildo Morais, radicado nas Antilhas, desde 1986, e a quem o pai dedicou uma faixa musical no seu LP Boas Festas gravado e editado em Roterdão pela Casa Silva com o selo das Edições Morabeza, em 1967. No ano precedente ao da edição do Boas Festas, em abril de 1966, a convite de Frank Cavaquinho, Luís emigra para a Holanda, enquanto a companheira, que chegara ao Senegal, como país de trânsito, em finais de 1955, escolhe a França como destino reemigratório. Entretanto, apesar da relativa distância física que os separava, os dois mantêm relações amorosas estáveis e, mais tarde, resolvem contrair casamento, precisamente no dia 28 de dezembro de 1968, na Cidade do Mindelo, perante o Conservador Américo Lima Rebelo. Ao casamento com a jovem sanvicentina de 30 anos de idade dominado, numa primeira fase, por um “grande amor” (Maria Graciela dos Santos, 2003), segue-se um período marcado por alguma desorientação e turbulência no relacionamento entre ambos, que viria a culminar no divórcio decretado por sentença de 14 de novembro de 1981 proferida pelo Tribunal Judicial da Região da 1ª classe de S. Vicente e solicitado pela própria mulher em apuros: “ O tipo de vida de artista do Luís, que tinha mulheres em todos os lugares aonde chegasse (…), fez-me sentir isolada e, perante a situação insustentável, obrigou a que cada um de nós fosse para o seu lado” (Maria Graciela dos Santos, 2003). A despeito de alguma briga pelo meio e alguns acidentes de percurso ocorridos ao longo da atribulada relação conjugal, Luís Morais também dedica um solo de clarinete à então “mulher dos meus sonhos”, na primeira faixa da face I do referido LP a solo Boas Festas. Mais tarde, no LP Bana à Paris, também gravado em Roterdão e editado pela V.C.V, em 1968, o músico volta a dedicar à sua antiga companheira outra composição da sua autoria intitulada Sodade de Maria Graciela. Dissolvido o casamento com a mulher do seu sonho, por divórcio, ditado essencialmente por “incompatibilidade de caráter entre ambos” (Maria Graciela dos Santos, 2003), Luís, que contava, na altura com 47 anos de idade, resolve contrair matrimónio, em segundas núpcias, com Isabel Vicência “Bela” Morais, por sinal, sua prima, também ela natural de S. Vicente (Chã de Cemitério), através de casamento civil celebrado a 19 de janeiro de 1983, em regime de comunhão de adquiridos, conforme o respetivo assento. Do casamento contraído com a “mulher da minha vida e companheira eterna” (Luís Morais), de resto marcado por excelentes relações conjugais, nasceria apenas uma filha, Arlinda Ramos Morais (Sissi), atualmente radicada nos Estados Unidos da América.
Um barulhento de alegria e humor simplório
De “trato simples” (Jaime António do Rosário, 2004), cordial e afável, muito espontâneo e sempre bem-humorado, Luís Morais, pai de nove filhos, era um homem extremamente simples, desprendido, generoso, exageradamente humilde, modesto, demasiado brincalhão, de risadas e gargalhadas sonoras. Para lá de todos os atributos, Luís era, sobretudo, para todos quantos tiveram de conviver com o músico, um homem fantástico e cheio de vida, persistente, que adorava a vida, muito extrovertido, “muito especial e amigo dos seus amigos, tratava as pessoas como o tratavam (…), se a pessoa o tratasse bem tratava-a dez vezes mais e melhor” (Carlos Alberto Spencer “Tólasse” Lima, 2004). Dotado de uma alma grande, “muito espontâneo nas suas tiradas e respeitado ” (Jaime António do Rosário, 2004), fabuloso, muito especial, “um feio bonito e conquistador persistente de mulheres” (Carlos Alberto Spencer “Tólasse” Lima, 2004), Luís era “uma criança autêntica” (Leonel Almeida, 2004), uma “figura mindelense carismática e luminosa” (João Branco, 2004), “o relâmpago mais brilhante que alguma vez surgiu no céu de Cabo Verde” (Valdemiro Jesus “Vlú” Ferreira, 2004), “um barulhento de alegria, fiel a amizades” (Dina Salústio, 2004), que tinha a enorme facilidade de lidar com todos os extratos sociais sem quaisquer preconceitos ou malícias, independentemente da sua condição económica. Extremamente correto e “de bom trato, bom camarada e sempre disposto ao que se queria” (Fernando Quejas, 2004),“o Luís não era guloso ou obcecado por dinheiro” (Adriano “Bana” Gonçalves, 2004), “não se zangava, não tinha o espírito de maldade, nem de superioridade (…), ele próprio não tinha a consciência daquilo que era como músico (…), nem a noção da verdadeira revolução que fez na música tradicional cabo-verdiana, ou sequer a noção exata da sua contribuição para a cultura musical cabo-verdiana” (Antero “Tey” Barbosa, 2004), a despeito da sua elevada estatura musical e idoneidade moral sobejamente reconhecidas.
Apreciador e produtor de anedotas e, ainda, portador de um elevado sentido de vida social e de uma forte propensão para relações de sociabilidade, Luís Morais tinha, no dia a dia, uma forma simples de estar, extremamente aberta, cordial e leve, que transmitia, para alguns, a imagem de um misto de generosidade e ingenuidade, quiçá “embalado mais pelo lastro afetivo do que pelo intelectual” (Francisco Mascarenhas, 2004). Naturalmente brincalhão e “partioso”, Luís Morais “era palhaço, fazia as pessoas rirem muito. A música era tudo para ele, vivia para a sua música e para a sua terra, S. Vicente, a sua paixão, era egoísta porque sacrificava a sua família a favor da música” (Maria Graciela dos Santos, 2003).
Um misto de pureza, ingenuidade e desprendimento
O afamado clarinetista mindelense, que não cultivava a reverência, era “de uma pureza incrível e de uma certa ingenuidade no trato com as pessoas, mas no sentido positivo, sempre disponível, sem formalidade e sem maldade, generoso e desprendido” (Manuel Faustino, 2004). A ingenuidade de Luís Morais evidenciava-se, sobretudo, através de “brincadeiras de pouca profundidade” e simplicidade com que analisava determinadas situações mais sérias, “algumas de mau gosto” (Francisco “Chico” Serra, 2004), porquanto as suas limitações académicas, associadas à ausência de uma sólida cultura organizacional, não lhe permitiam, de forma alguma, atingir patamares de análises de questões mais sofisticadas. À semelhança da vocação musical herdada do seu avô paterno boa-vistense do Fundo das Figueiras, o dom de brincar adveio-lhe “do seu pai Musa e do seu tio Duca e não do lado da sua mãe e minha avó materna, Guilhermina, uma mulher muito reservada e discreta, falecida a 3 de novembro de 1994 em nossa casa, na Ponta de Tchitcharro, na Praia, onde vivia durante vários anos” (Filomena Mendes “Filó” Vaz, 2022). De facto, “a pouca formação académica do Luís bloqueava-o, às vezes, na solução de alguns problemas”. (Carlos Alberto Spencer “Tólasse” Lima, 2004), o seu limitado nível de escolaridade “condicionava-o e fazia-o desligar-se de outras coisas” (Francisco “Chico” Serra, 2004), pese embora a sua indiscutível estatura de músico, a fama, as simpatias e a popularidade que conseguiu granjear no seio da sociedade cabo-verdiana, de ponta a ponta.
Para lá das brincadeiras de “pouca profundidade”, que, “às vezes, ridicularizavam a pessoa visada” (Malaquias Costa, 2004), sem que, todavia, tivesse o músico a intenção deliberada de “ofender seja quem fosse” (Ricardo António “Cacói” Francisco, 2004), a ingenuidade de Luís evidenciava-se, igualmente, na opinião da sua viúva, através de “dinheiro emprestado que o meu marido dava às pessoas para pagamento de letras no Banco, sem qualquer contrapartida, o que confirma a sua simplicidade e o seu desapego material”(Isabel Vicência “Bela” Morais, 2004). Não obstante a personalidade forte e dominante do clarinetista, “o Luís era um pouco ingénuo (…), muita gente aproveitou-se das suas qualidades musicais sem qualquer contrapartida”. (Alberto Rui Machado, 2004), “era infantil, não levava as coisas a sério, ria-se de tudo e muita gente enganou-o” (Maria Graciela dos Santos, 2003). Porém, Manel d’Novas, companheiro de andanças e amigo íntimo do extinto músico, tinha um entendimento diferente, a propósito da suposta ingenuidade de Luís Morais. Diga-se, em nome da verdade, sublinha o saudoso compositor mindelense, “nos primeiros tempos, o Luís era ingénuo, tinha saídas ingénuas, que se expressavam através de anedotas, inclusive, alguns colegas da profissão enganaram-no. Todavia, com a independência do país, abre os olhos e ninguém o engana” (2004).
Um rabugento saudável
Extrovertido, alegre e “partioso e direito” (Inês Mendes Vaz, 2022), desde a sua infância, na Ribeira Bote, Luís Morais, “não era ingénuo, ninguém o enganava, vendia instrumentos musicais à malta, defendia bem os seus interesses” (António Teodorico "Toy" Estêvão, 2004), se bem que não fosse “malabarista nem macaco-velho”. (Jaime António do Rosário, 2004). Mais brincalhão do que ingénuo, Luís era “um humorista simplório”, como diria o saudoso guitarrista e poeta boa-vistense, Mário Lima (2004), “um grande amigo e especialista, que respeitava o caboverdianismo na música, tirava notas boas no clarinete, que me admiravam muito como cantor. O Luís não era ingénuo, defendia bem os seus interesses, não era guloso”. (Adriano “Bana” Gonçalves, 2004). Homem fabuloso, muito aberto e “maleável” (Eduardo Monteiro, 2004), que “sabia lidar com as pessoas” (João António “Janito” Barbosa, 2004) e “não arranjava problemas sem necessidade” (Adriano “Bana” Gonçalves, 2004), Luís Morais “não era ingénuo, pelo contrário, sabia levar a água à fonte, valorizava-se e exigia às pessoas que pagassem o valor integral do cachet que ele próprio indicasse quando atuava em bailes e espetáculos. Rabugento saudável e persistente, não parava enquanto não alcançasse os seus objetivos. (Carlos Alberto Spencer “Tólasse” Lima, 2004). Aliado ao seu permanente humor e à popularidade, Luís Morais cultivava, defendia e promovia um elevado sentido de unidade nacional e patriotismo, que se traduzia na transmissão de determinados valores afirmativos da caboverdianidade e da solidariedade humana, em especial. Dotado de uma enorme capacidade de relacionamento interpessoal e de solidariedade, “o meu tio não era ingénuo, ele conseguia driblar e adaptar-se às situações. Capaz de fazer uma brincadeira apenas para se adaptar ao momento, tinha a sua própria personalidade, era honesto e extremamente solidário com a família, sabia defender os seus próprios interesses”. (Filomena Mendes “Filó” Vaz, 2022).
Ouvido absoluto e capacidade rara de improvisar
No plano meramente musical, a personalidade do clarinetista mindelense definia-se, em rigor, pela maneira como tirava timbres dos instrumentos de sopro que tão bem dominava e, igualmente, na fraseologia musical, ou seja, no discurso (Vasco Martins (2004), que, aliás, lhe imprimia uma marca distintiva. Mercê da sua “própria identidade musical” (Carlos Alberto Spencer “Tólasse” Lima, 2004), Luís Morais, que, de resto, tinha “melhor embocadura no clarinete” (Domingos António “Totinho” Gomes, 2004), imprimia à sua música uma “sonoridade muito peculiar que ele ajeitou em estilo próprio como uma espécie de marca distintiva” (Ondina Ferreira, 2004), e, do mesmo passo, ele conseguia transportar para ela o estado de espírito de alegria permanente que o rodeava. Não obstante a sua faceta humorística constante, Luís Morais tinha um sentido apurado da disciplina, particularmente em ensaios, onde era “rigoroso, essencialmente disciplinado e com uma preocupação de qualidade, aliás, uma caraterística marcante do músico” (Benjamin Roberto “Peixoto” Lima, 2004). Em casa, quando preparava as suas composições ou ensaiava, “o Luís, que dançava muito, costumava cantar com a sua voz rouca”. (Maria Graciela dos Santos, 2003). O seu “estilo próprio, vivo” “(Daniel “Nhelas saxe” dos Reis, 2004) e inconfundível, acrescido à extraordinária capacidade de comunicação e humor, particularmente através da géstica (risos, sinais, etc.), identificava-o facilmente com o público e com os músicos no palco onde, graças ao domínio que o mestre tinha do clarinete, sobretudo, conseguia mudar de notas sem aviso prévio, surpreender tudo e todos improvisando músicas novas, que não haviam sido ensaiadas, ou não faziam parte do reportório. (Antero “Tey” Barbosa, 2004).
Exigente, perfecionista e dono de um ouvido absoluto e de uma grande facilidade de escritura e extraordinária capacidade de improvisar, Luís vivia a música em permanência, tratava-a com seriedade e tinha uma personalidade musical própria, isto é, uma forma especial de estar na música, de resto, sobejamente espelhada na sua vasta e diversificada discografia e no seu sopro peculiar, diferente e vigoroso. A exigência musical do maestro tocava, às vezes, “raias de chato e, por isso mesmo, algumas pessoas não o entendiam e o acusavam de autoritário”. (Carlos Spencer “Tólasse” Lima, 2004). Considerado como um dos expoentes máximos e incontornáveis da música cabo-verdiana, Luís Morais impôs-se, também, como grande compositor instrumental e “arranjador muito particular, que desenvolvia o princípio do arranjo fragmentado, cortando as frases musicais, sobretudo na fase introdutória, e improvisando consoante o solista, numa espécie de contracanto” (Vasco Martins, 2004), num profundo amor à terra e ao cretcheu, ao longo de uma carreira de meio século, ao serviço da cultura crioula.
(Versão completa do artigo publicado no Expresso das Ilhas nº 1106 de 8 de Fevereiro de 2023)