INTERILHAS, uma crónica de desassossego

PorLeão Lopes,10 mai 2021 6:44

2

​É madrugada do segundo dia de esperança para viajar de S. Vicente para S. Nicolau. Este é o nosso quotidiano insular para quem tem que viajar desta ilha para as demais que lhe estão a Nordeste e Sul: S. Nicolau, Sal, Boa Vista e Santiago. Digo de esperança para não dizer de angústia.

Não é a primeira vez que denuncio esta situação que, parece, nenhuma autoridade deste país quer pôr termo a bem da população que, tendo que deslocar para essas ilhas, não tem outra alternativa senão sujeitar-se a um serviço aleatório, desrespeitador do direito do utente e do cidadão a quem serve.

Sujeito a inadmissível tratamento de coisa ou de carga pela companhia de transporte marítimos INTERILHAS que detém hoje o monopólio do nosso desassossego, usando e abusando da nossa paciência e dos brandos costumes do ilhéu. Há quem se exaspera e silencia, há quem se indigna e se revolta manifestando-se no círculo mais próximo: o passageiro ao lado; o grupo de impacientes que há horas aguardam embarque sem qualquer informação sobre o tempo e a razão do atraso; o marinheiro que lhe está mais à mão e que, inocente, leva em cima com a raiva de todos desfazendo-se em explicações banais e irritando mais o espírito de quem espera ver ser respeitado o direito elementar à uma informação, o mínimo, que lhe sossegue o espírito já à beira de um estado de desespero. É como se a quem cabe sossegar esse angustiante desejo de ser informado e não o é: o passageiro que pagou antecipadamente o direito de ser servido e eventualmente bem; o que deixou a casa para viajar em seus negócios; que teve alta do hospital; que carrega duas ou três crianças, uma delas bebé (essa é uma das muitas mães em viagem); a parturiente acalentando nos braços o recém-nascido de dias… dizia: quem tem esse dever e obrigação não está lá, nunca esteve, goza pura e simplesmente com a paciência de gente que de boa-fé veio a horas, pôs-se ordeiramente na fila à espera de vez para embarcar.

Na véspera fez o teste à Covid, preparou a bagagem, marcou com o taxi a hora de chegar à gare, duas horas antes da partida. Põe o carrinho com a bagagem na fila, senta-se à espera com a devida distância social. O portão sanfonado da gare que dá para o cais num irritante abrir e fechar metálico e ruidoso, vezes sem conta, acentua mais a expectativa de quem se sobressalta de cada vez que entra e sai um funcionário do cais ou um polícia; pode ser que é desta que vai escancarar-se de vez para deixar passar a embarque o magote de impacientes passageiros. Mentira, ainda não é. E nisto fica-se as primeiras duas horas indicadas para estar na gare, somando para o desespero de todos mais as que forem por razões que só deus sabe, sem direito a uma palavrinha de conforto ou qualquer explicação – mesmo que esfarrapada – sobre o atraso, sobre a motivação técnica ou meteorológica que estarão a condicionar a viagem. Técnica nunca se sabe, meteorológica não é tão difícil adivinhar…

Nestas circunstâncias ficam em terra sem assunção de qualquer responsabilidade de seja quem for: todos. E suas vidas penalizadas, seus negócios comprometidos, seus compromissos pessoais adiados, suas outras obrigações suspensas no tempo, seus regressos sem data.

Só quem não lê esta angustiante crónica de indignação; só quem não está nem esteve lá para viajar; só quem nunca esteve à beira de um ataque de nervos por tudo o que relatei acima; só esses e apenas esses é que nunca saberão o que é viajar hoje pela companhia INTERILHAS, pelos caminhos de mar destas ilhas. Nunca saberão.

Três horas depois o irritante portão de ferro sanfonado escancara-se. Toca de dirigir para os carrinhos e empurrá-los ordeiramente para o cais. Desinfectam-se as bagagens com aspersor antes de as arrumar no pequeno camião. Caminha-se para o barco, sobe-se a amurada, entra-se e, aliviados, os passageiros instalam-se. Alguns, escolhem os cantos mais a jeito para estender cobertores e almofadas e acomodam os mais pequenos e os bebés, outros escolhem os melhores lugares para encarar a longa viagem. Sempre mais longa do que se deseja. A marinheira vem distribuir bolsas de plástico onde dentro em breve receberá o que os estômagos dos mais sensíveis rejeitam, mesmo antes de deixar o mar chão da baía.

Com mais de uma hora bem sentados e com o barco sem dar qualquer sinal ou intenção de partida, surge o capitão com toda a delicadeza informando que devido a um problema técnico, o barco já não vai partir, os passageiros terão que desembarcar. Mais, que a agência INTERILHAS, deverá vir logo de seguida dar mais informações. Mentira. Se foi, alguns passageiros já lá não estavam – entre os quais eu – depois de mais um tempo de intolerável espera.

Já não há viagem, toca de refazer a vida, dizem que será amanhã.

Muito bem. Desta vez recebe-se um SMS à noite a dizer para se estar de manhã cedo 2 horas antes do horário de partida. Cumpriu-se e viaja-se para S. Nicolau.

Agora, o regresso. Domingo. Dia 02.05.2021. Apresentação no cais: 7:00; Partida: 08:30; Chegada a S. Vicente: 13:00.

Parto de Preguiça às 5:30 para cumprir o horário. Às 9:00 não se vislumbra qualquer sinal de algum barco de INTERILHAS entrando na baía do Tarrafal. Não, não pode ser. Mais uma vez não! Está atrasado, com certeza, não se recebeu nenhum SMS (o que é normal com essa agência). Não há qualquer notícia. Dirijo-me à Enapor para ver o quadro das movimentações dos barcos. Nenhum de INTERILHAS. Peço que se entre em contacto com a agência em S. Vicente, a representante no Tarrafal não responde. Informação: “a viagem foi cancelada porque o barco entrou em manutenção. A viagem fica adiada para terça-feira”. Ponto final. Ninguém vai responder por tanto descaso, descarado descaso, por tanta falta de respeito por este país, por tanto abuso da paciência dos pacatos cidadãos destas ilhas obrigados a viajar por mar?

Esta empresa de transportes marítimos parece não estar à altura do que esperávamos; parece não saber o que é comunicação e seus deveres perante quem presta serviços dessa natureza; parece estar impune a quaisquer sanções sobre – entre outras eventuais faltas – a de cumprimento com os utentes dos serviços que presta e para os quais foi contratualizada com o Estado; parece estar nas tintas com o devir deste país cujo sector da economia que serve é exactamente aquele onde se aposta o futuro destas ilhas.

Não há mais paciência!

Tarrafal de São Nicolau, 2.5.2012

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1014 de 5 de Maio de 2021.

Concorda? Discorda? Dê-nos a sua opinião. Comente ou partilhe este artigo.

Autoria:Leão Lopes,10 mai 2021 6:44

Editado porAndre Amaral  em  18 fev 2022 23:20

2

pub.

pub
pub.

Últimas no site

    Últimas na secção

      Populares na secção

        Populares no site

          pub.