“O maior problema é a fiscalização, a dois níveis, desde a ocupação ilegal e a construção desordenada, mas também nos espaços formais, onde assistimos a várias aberrações decorrentes do incumprimento do que foi licenciado. São problemas muito sérios para o desenvolvimento das cidades. Falta ter uma visão clara do que é uma cidade, o que representa, e depois cada um cumprir cabalmente as suas funções”, diz ao Expresso das Ilhas Francisco Duarte.
“A ilegalidade não pode ser vista apenas nos assentamentos informais, nos espaços formais também existem, cada um constrói à sua maneira, há um estímulo para a desordem. Há um sentimento que se pode transgredir. Portanto, não vamos apenas culpar as periferias, mas ver quais são as origens, e isso acontece nas zonas formais, onde o que está licenciado, nem sempre é o que se constrói”, refere ainda o arquitecto e docente universitário.
Segundo o INE, dados citados no Perfil do Sector de Habitação, existem cerca de 140 mil alojamentos em Cabo Verde. Não há dados detalhados sobre a oferta habitacional em termos de tipologia, porém, é razoável afirmar que pelo menos 80% destas unidades foram autoconstruídas, isto é, com a gestão de materiais e mão de obra diretamente pelas próprias famílias.
A qualidade resultante da autoconstrução varia significativamente em termos de material, assim como de técnicas construtivas – estima-se que em 2015 quase dois terços dos agregados familiares (64,1%) de baixa renda tenham problemas de infiltração no tecto (INE, 2018), assim como problemas de acesso a energia e saneamento.
“Não gostaria de generalizar para todo o Cabo Verde, na Praia é evidente, temos o Sal, a Boa Vista, São Vicente, mas nas outras ilhas não arriscaria a dizer que há informalidade, muito pelo contrário”, sublinha Francisco Duarte. “Já temos experiência para detectar os problemas reais e dar a resposta devida, falta agora atacar os problemas. Normalmente, essas informalidades, sobretudo as áreas de ocupação ilegal, têm muito a ver com a gestão do próprio país em termos de gestão do território”.
“Em primeiro lugar”, explica o arquitecto, “há diferenças entre o desenvolvimento, derivado dos investimentos realizados, e isso deixa a zona rural esquecida. Os investimentos não chegam à zona rural. Nas épocas de seca, as pessoas vão à procura de novas oportunidades, os jovens que não querem seguir a vida agrícola, vêm também para a cidade, o que provoca uma grande pressão nos centros urbanos”.
Poupar o máximo possível
“Outro problema é a própria construção da cidade, são investimentos que recorrem a mão-de-obra não qualificada, que recorrem a quem vem do campo. Essas pessoas, quando vêm, não vão gastar dinheiro, vão poupar o máximo possível, por isso não procuram casas, fazem-nas. Isto é uma realidade conhecida desde a independência, falta a solução, criar um espaço e construção assistida, e temos formandos em arquitectura ou em engenharia civil que poderiam estar ao serviço das autarquias”, refere o professor universitário.
Cabo Verde tem um défice habitacional aproximado de 8,7% (em termos de agregados familiares), o que corresponde a 11.119 agregados familiares. Nos dados desagregados por ilha, verifica-se que o Sal apresenta um défice crítico de 20,2% e a Boa Vista de 16,3%, correspondente respectivamente a 1.666 e 605 agregados familiares. Os concelhos essencialmente urbanos da Praia com 3.201, São Vicente com 2.762 e o Sal com 1.666 são os que apresentam mais agregados familiares em défice habitacional. Relativamente ao número de indivíduos vivendo em défice habitacional, observa-se que 39.023 indivíduos viviam nestas condições em 2015, sendo a maior parte da ilha de Santiago (17.602 indivíduos, ou 45,1% do total), seguida pela ilha de São Vicente (8.744 indivíduos, ou 22,4% do total).
A necessidade habitacional até 2030 em Cabo Verde, assim como o défice, é de natureza maioritariamente urbana. Para os próximos dez anos, prevê-se um aumento de 92.439 residentes nas cidades, e um decréscimo de 2.536 residentes nas áreas rurais. Serão necessárias, nesse período, mais de 26 mil novas habitações nas cidades (com uma média anual entre 1.700 e 2.000 unidades). A ilha de Santiago terá o maior acréscimo absoluto, com mais de 50 mil habitantes, seguida por São Vicente e Sal com 15 e 11 mil, respectivamente. Ilhas como Brava, Fogo e Santo Antão terão necessidades habitacionais muito menores.
Mas será possível assegurar todas estas habitações na próxima década? “É uma pergunta difícil”, reconhece Francisco Duarte. “Acredito que podemos, se não chegar a esse número, pelo menos chegar a um razoável. Mas há algo mais mais importante, penso que grande número dessas casas deve ser para os deslocados. O que se deve fazer? Uma previsão dos fluxos do campo para a cidade e para as outras ilhas, no fundo, antecipar soluções e não correr atrás dos problemas. É uma realidade de circulação, de mobilidade, e temos de prever espaços para essas ocupações, de forma organizada, com assistência técnica”.
E quanto aos bairros já existentes? “Não nos vamos desfazer deles, mas poderemos criar planos participativos e colaborativos para a melhoria dos bairros, ou seja, com a intervenção dos próprios moradores, e recuperar esses bairros. Isso é possível. O que aconteceu na Boa Vista e no Sal é que eram ilhas com população reduzida, com o advento do turismo e a construção dos hotéis, tiveram de importar mão-de-obra, claro que a mão-de-obra teve de arranjar o seu espaço e temos o que temos hoje”.
Segundo o Perfil do Sector de Habitação, o grande desafio em atender esta necessidade está na procura, ou seja, na possibilidade de pagamento dos cidadãos, tendo-se concluído que a família urbana média pode dispor de um total de 17.752 escudos por mês para pagar por sua moradia, entre outras despesas domiciliares. Sendo assim, com as condições de crédito actuais, tal família só teria condições de arcar com uma casa que custa até 1,59 milhões de escudos, impossível de conseguir para a maioria dos agregados no actual mercado formal, porque a habitação mais barata disponível custa aproximadamente 2,85 milhões de escudos.
A avaliação do Perfil do Sector de Habitação em Cabo Verde revela um conjunto de desafios e oportunidades. Segundo o documento, apesar de ainda apresentar um cenário crítico, questões cruciais no desenvolvimento habitacional podem ser corrigidas através da implementação de medidas institucionais e normativas apropriadas, que muitas vezes não exigem grandes investimentos financeiros, e que podem ser particularmente benéficas para novos assentamentos e moradias. Até porque, como se lê, não obstante sua abrangência, o quadro normativo actual é complexo e de difícil implementação. Há uma dispersão de normas relativas à ordenamento do território, urbanismo e habitação, muitas aplicadas em parte ou não implementadas, que geram não só esforços adicionais na condução de projetos, mas que também levam à informalidade.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 967 de 10 de Junho de 2020.